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Junky, William Burroughs

William Burroughs é como o irmão mais velho da geração de doidões, sobretudo norte-americana, que surgiu nos anos 50, e que ganhou o epíteto de geração beat. Burroughs era nada mais que o velho “Old Bull Lee”, retratado genialmente por Jack Kerouac, em sua história romantizada, On the Road (Na Estrada), senhor sábio, entre jovens alucinados, relaxando as células em sua cabine de orgônios (invenção de Wilhelm Reich).  
 
Burroughs, que já tinha dado seu depoimento em Almoço Nu, numa narrativa fragmentária e cheia de nuances, ganha agora uma edição definitiva, com o texto original de sua obra Junky, uma viagem romantizada e autobiográfica, misturando literatura e história de vida, no mesmo caldo criativo do qual grande parte de seus escritos se alimentou. 
 
Pois então. Junky, obra também marcada por este viés de vida e literatura como uma coisa só, tem sua versão honesta, ou seja, sem os cortes e interferências (censura, não é mesmo?) que nublaram esta obra por décadas. Junky, então, se afirma como mais um dos grandes clássicos da contracultura, e Burroughs mostra toda a sua veia de um homem de inteligência metido em peculiares situações de riqueza biográfica.
 
A autobiografia de Burroughs, em Junky, pode parecer, aos olhos conservadores, uma coisa que não passa de um relato sujo e perdido de alguém doente, seja de caráter, ou mesmo de um exilado da vida “normal”. Tal normalidade, questionável, onde reina tanta boçalidade como nas pilantragens do submundo de que Burroughs se alimentou por anos. Esta aventura no submundo, por Burroughs, resultou nestes escritos. Mundo ignorado pelo sujeito dito normal, talvez tão perdido “moralmente” quanto os pobres junkies, e que não poderá ofertar senão o tédio de estar dentro de um sistema que se reproduz a si mesmo. 
 
Burroughs viveu e produziu. Ao contrário de quem faz sempre o mesmo, e não produz nada de novo e criativo, imerso num mundo que tem horror à arte, um mundo que não se atreve a pensar a si mesmo, sobretudo a partir dos outros mundos abertos pela arte, mesmo que, no caso de Burroughs, entrasse aí a receita questionável da adição monstruosa de drogas, principalmente o junk (heroína, morfina), o que o levou a conhecer os meandros da malandragem dos EUA, Nova York principalmente. Meandros e segredos que, depois de uma fuga da justiça, o levou ao México.
 
Bom, não se trata de uma vida que deva ser romantizada, Burroughs não é um bom exemplo, mas que o resultado, por incrível que pareça, deu em literatura, não é para todos. A maioria dos junkies não produz nada, e muitas vezes, ao sair do junk, caem no alcoolismo, na depressão, e se suicidam, como citado em alguns trechos do livro de Burroughs. 
 
William Burroughs, escritor beat, resume muito bem a vida junky neste trecho de seu livro: “Droga pesada não é um meio de aumentar o prazer de viver. Junk não é um barato. É um meio de vida.” Bom, analisando este trecho de Burroughs, fica claro que o modo de operação do junk é bem diferente do que se vê em outras drogas, como na maconha, por exemplo. Burroughs diz que a maconha é uma droga gregária, e que os “fumetas” (maconheiros), como ele diz, sempre querem atrasar o traficante, pois descambam a fumar a droga antes de dar no pé. Com o junk é bem diferente, reina uma objetividade fria. Burroughs diz, que quando seu vício se instalou, ele tinha que parar de sair à noite e de beber álcool. O junk é a rotina, ou de estar chapado, ao menos três vezes ao dia, ou, no momento que sobra, estar à procura de mais droga. O meio de vida de que Burroughs fala, é que tudo vira um périplo de, ou buscar morfina, heroína, ou de burlar receitas, com os chamados “coveiros” (médicos), para adquirir paregóricos, ou codeína, para quebrar a fissura. 
 
Tal rotina descrita por Burroughs, em Junky, revela uma mecânica que também leva o viciado ao tráfico, e, no meio desse imbróglio, se tem soluções excêntricas para a cura do vício. Uma dessas curas que prometem uma libertação indolor, é a famigerada cura chinesa. Na cura chinesa, sua promessa, é que se diluem placebos, para enganar o viciado, até ele estar injetando apenas água, o que, no caso de Burroughs, não funcionou, aumentando a lenda em torno deste método tão curioso de desintoxicação.
 
Em meio disso tudo, no périplo de Burroughs, loucos passam chapados de benzedrina, ou ligadões, com bolinhas de nembutal. Um conflito permanente com caguetes é o efeito colateral mais perigoso do junk, para Burroughs, isso sem contar os viciados implorando grãos, e toda uma saraivada de polícias estadual e federal, com os quais Burroughs joga muito bem, tentando sempre se safar pelo lado onde dá menos prejuízo, em meio ao endurecimento da lei norte-americana em relação às drogas e seus usuários.
 
Internações são feitas. Burroughs entra na fissura, encontra meios de controlá-la, fica meses sem usar junk, e sempre acaba voltando, tudo para, no fim deste périplo, tentar outros meios de experiências com drogas, uma vez que nem o peiote funcionou com ele, o levando a pensar, no fim de tudo, em uma viagem à América do Sul, para experimentar o Yage.
 
No fim do livro Junky, vemos um Burroughs fascinado pelo Yage. Uma planta, que diziam, despertava faculdades mentais telepáticas, sem contar a história que dela se extraía a telepatina, aumentando a credulidade de Burroughs misturada à sua convicção de que a telepatia era um fenômeno real. 
 
Uma vez que Burroughs conclui que estava, agora, em busca do barato que expande a mente, e não mais do junk, que, em sua opinião, e com conhecimento de causa, o leva a afirmar que o junk não expande, mas estreita a mente, toda a romantização possível que poderia se dar ao leitor incauto da obra Junky, cai por terra. Heroína e morfina, na língua de Burroughs, o junk, não dá barato, é só uma rotina, como ele bem diz, um meio de vida, é uma máquina de um mundo paralelo, uma realidade oca e ensimesmada. 
 
Quando Burroughs, ao fim de seu caminho com o junk, afirma que esta droga estreita a mente, fica bem claro que isto ocorre e como. Pois, quando o junk é o meio de vida, ele é bem mais viciante que drogas expansivas da mente. A doença junk é bem o tempo próprio em que entra o viciado. Burroughs diz que a rotina é sempre a mesma, e é só se saindo dela, depois de vários anos, que é possível perceber uma vida diferente. Pois, na verdade, haveria duas vidas: a rotina do junk, que é um mundo à parte, repleto de escravos, caguetes e malandros, além da lei atrás de todos, e o mundo após a libertação do junk, onde o que há não é mais a fissura, e nem a falta, mas uma curiosidade genuína de como tudo realmente pode ser bem diferente e interessante. Se sai de uma rotina, e se entra na vida. E agora, Burroughs busca sua expansão, talvez como esta busca da própria vida, na experiência mística do Yage, e não mais no estreitamento do junk, mundo estreito que é bem o nome que se deveria dar ao que ele chamava de rotina junk.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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