Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, no primeiro governo do PT, em janeiro de 2003, disseram que ele seguraria o violino com a mão esquerda mas tocaria com a direita (ou de mão trocada), num típico governo de coalizão que, se distribuiu benesses aos pobres, o fez sem tirar privilégios dos ricos.
No segundo governo, tivemos mais do mesmo, com a “marolinha” da crise econômica global atrapalhando o fechamento das contas.
No terceiro governo petista, a presidenta Dilma esticou ao máximo as cordas do violino ao liberar recursos para os programas sociais Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, bolsas de educação e mais um amplo esquema de desonerações fiscais que beneficiou principalmente a indústria automobilística e, ainda, verbas para obras de infraestrutura viária.
No afã de segurar a onda do crescimento com pleno emprego, Dilma depenou a galinha dos ovos de ouro, deixando órfãos, à esquerda e à direita, os defensores do seu governo e açulando a fúria da oposição.
Mesmo sem saber da missa metade, a maioria do eleitorado reelegeu Dilma. Foi demais. Antes mesmo de tomar posse no quarto mandato do PT, uma presidenta estressada entregou o violino a um virtuose do mercado financeiro chamado Joaquim Levy.
Um ano depois de reeleita, a presidenta está nas cordas (do ringue, não do violino), tendo de passar pela suprema humilhação de ver dirigentes do seu partido e de partidos aliados condenados por corrupção. E ainda por cima tendo de viver sob a suspeita de ter feito vista grossa às maracutaias na Petrobras na época em que presidiu o conselho da estatal, como ministra de Minas e Energia.
A situação chegou a tal ponto que o Tribunal de Contas da União, um organismo até aqui figurativo, sem força nem prestígio, rejeitou as contas do governo federal referentes a 2014, sob a alegação de que foram praticadas graves irregularidades contábeis – as chamadas pedaladas fiscais, artifícios para mascarar o fechamento das contas de receitas e despesas.
Pedalar é coisa que toda empresa faz e os governos sempre fizeram, mesmo sob a vigilância da Lei de Responsabilidade Fiscal, baixada no último governo de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002). No entanto, por querer manter na parada de sucessos a canção Sem Medo de Ser Feliz, Dilma está na marca do pênalti, autuada por um tribunal de segunda classe que atua como órgão auxiliar do Congresso, aliás constituído por uma maioria de picaretas, como o constatou o deputado Lula, em 1988. Três décadas depois, tanto a Câmara como o Senado estão sob a presidência de dois indiciados em “pedaladas” comuns nos altos escalões da república.
Voltas que o mundo dá para chegar ao mesmo lugar: a esquerda, que precisou fazer malabarismos para chegar ao governo, sofre um massacre não apenas por ter cometido erros, mas por praticar políticas sociais progressistas.
Ao insistir na articulação de um impeachment presidencial, a oposição repete um comportamento autoritário recorrente na história brasileira, enquanto o PT e seus aliados mais próximos não têm base política para sequer propor um programa de reformas estruturais. A moral da história é amoral: o governo se tornou refém do PMDB, um partido que se especializou em levar as coisas em banho-maria.
Até agora, a única reação mais ou menos organizada ao massacre do governo partiu de uma centena de especialistas e um conjunto de entidades como a Fundação Perseu Abramo, o Centro Celso Furtado, o Fórum 21 e a Plataforma Política Social, que elaboraram o documento Por um Brasil Justo e Democrático. Trata-se de uma proposta alternativa à política oficial de ajuste fiscal.
Entre as propostas defendidas, estão a regulação do mercado cambial, a adoção de bandas fiscais, a mudança no cálculo da inflação, um projeto de reindustrialização que dialogue com o problema da sustentabilidade ambiental, uma mudança no padrão de relação do Estado com o setor privado, a construção de uma política de distribuição de renda, uma mudança no modelo de tributação vigente no país e uma rearticulação externa do Brasil.
Outro esboço de apoio ao governo veio, surpreendentemente, de setores da Igreja que tentam se organizar a partir de atitudes e mensagens do Papa Francisco. Bem ou mal emerge das catacumbas a Teologia da Libertação, a melhor criação da Igreja Católica desde o advento do cristianismo.
Mas tudo isso ainda é pouco. O quarto governo petista está estrangulado por uma crise econômica que veio de fora para dentro e se combina com a crise de representação política. O Congresso não corresponde aos anseios da sociedade, que clama por igualdade e justiça social. Enquanto isso, os meios de comunicação social repetem o mantra de que o país precisa voltar a crescer.
Crescer para quem?
À luz das aspirações da maior parte da população, seria melhor que o país crescesse 1% ao ano mas distribuísse melhor a renda. Assim, no longo prazo, teríamos um país menos desigual. De que adianta crescer a 5% mantendo ou agravando a concentração da renda?
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A verdade é aquilo que sobra depois que você esgotou as mentiras”
Millôr Fernandes