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MPES pede condenação de Hartung e primeira-dama por viagens com dinheiro público

O Ministério Público Estadual (MPES) está recorrendo da decisão que absolveu o governador Paulo Hartung (PMDB) e sua mulher, Cristina Gomes, na ação popular pelos gastos de verbas públicas em viagens da primeira-dama entre 2005 e 2010. A promotoria entende que o casal nada provou sobre o interesse público nas despesas. Por isso, pede a nulidade da decisão prolatada em junho de 2015 pelo juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual. Caso a questão não seja acolhida, o órgão ministerial quer a condenação do casal ao ressarcimento do prejuízo ao erário, estimado em mais de R$ 83 mil.

O recurso de apelação foi protocolado no início de novembro passado e será distribuído a uma das câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Estado (TJES). A peça é assinada pelo promotor de Justiça, Luiz Alberto Nascimento, que defendeu a intervenção efetiva do MPES no caso para preservação do interesse público. Sob este argumento, ele levanta a nulidade da sentença sob alegação de que o órgão ministerial não se manifestou sobre o mérito da ação. “O problema, portanto, não é o julgamento antecipado da ação, mas a falta de intimação do Ministério Público, seja para se manifestar sobre eventuais provas que entendesse pertinente, seja para emitir parecer sobre o mérito da lide”, afirmou.

É justamente sobre o mérito das acusações que a manifestação do MPES é contundente sobre a ocorrência de erro no julgamento (do latim, error in judicando). Para o promotor, a sentença do então juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública, Jorge Henrique Valle dos Santos, hoje desembargador do TJES, está “totalmente dissociada do conjunto fático-probatório”. Na decisão de 1º grau, o togado entendeu que as viagens de Cristina possuíam “iminente interesse público envolvido”, acolhendo a tese da defesa que indicou a primeira-dama como uma voluntária na coordenação do projeto do Cais das Artes, na tentativa de descaracterizar os deslocamentos para uso pessoal – sobretudo, àqueles desacompanhada do marido.

No entanto, o promotor Luiz Alberto Nascimento atacou este ponto: “O que se questiona é tão somente o fato de o Estado do Espírito Santo ter custeado inúmeras viagens da primeira-dama, ora requerida Cristina, realizadas sem a companhia do governador, ou seja, de quem, de fato, representa o Estado, aparentemente realizadas sem qualquer propósito de interesse público ou correlação com as atividades inerentes ao exercício do cargo de governador, gerando, assim, dano ao erário, enriquecimento injustificado, além de gravame aos princípios que regem a Administração Pública”.

Logo em seguida no mesmo documento, o representante do MPES contesta o principal argumento da defesa do casal Hartung-Cristina, da qual as viagens seriam para tratar de assuntos referentes ao Cais das Artes. Segundo ele, o governador e a esposa não juntaram nos autos qualquer documento que comprove, de fato, que Cristina era coordenadora do projeto. O promotor assinala que a defesa se resumiu a juntar recortes de jornais – frisa-se todos ligados à mídia corporativa do Estado –, mas nenhum ato ofício sequer foi trazido à público.

“Como já dito, matérias de cunho jornalístico, dada a existência de imparcialidade e caráter informal, onde, como sabido, muitas vezes notícias são veiculadas sem qualquer respaldo documental que atestem sua veracidade, não devem ser admitidas como meio de prova absoluta. Devem ser consideradas provas tão somente se acompanhadas de outros documentos que atestem ser seu conteúdo verídico”, argumentou Luiz Alberto Nascimento, que citou o rol de documentos oficiais que, por exemplo, poderiam ser apresentados como a agenda oficial do governador nos dias das viagens – na maioria dos casos, aos finais de semana.

O promotor ainda prossegue: “É de se estranhar, douto Julgador, as razões pelas quais as defesas dos apelados não colacionam aos autos, sequer, cópia dos procedimentos administrativos nos quais foram autorizados os gastos com passagens e hospedagens da requerida Cristina, uma vez que tais documentos iriam dirimir, de vez, qualquer dúvida acerca da legalidade dos mesmos. É de se estranhar, também, as razões pelas quais não trazem ao conhecimento do Juízo cópia de atas ou decisões tomadas quando da realização das supostas reuniões que motivaram o deslocamento da apelada Cristina a outros Estados”.

Segundo ele, a ilegalidade nos pagamentos não se deve ao fato da primeira-dama ter que arcar com as viagens feitas na condição de mulher do governador ou coordenadora do projeto cultural, mas sim de não se saber quais foram os verdadeiros objetivos das dezenas de viagens pagas com dinheiro público sem qualquer justificativa. “Frisa-se, nada foi esclarecido e tampouco comprovado pelos recorridos [Hartung e Cristina]. A ausência total e absoluta da indicação do objetivo das referidas viagens fere o princípio da transparência, que é um dos mais importantes, além de ferir o princípio da economicidade, que estabelece somente se justificar uma despesa pública quando efetivamente necessária”, apontou.

Para o promotor do caso, o governador Hartung e sua mulher “descumpriram o ônus probatório quanto ao fato alegado”. Na ação popular, o estudante de Direito, Renato Aguiar Silva, questiona o pagamento das dezenas de viagens, com base na denúncia feita, com exclusividade, pelo jornal Século Diário, com base em documentos do próprio governo do Estado que atestam o pagamento pela Casa Militar de passagens aéreas e diárias em hotéis de luxo em São Paulo e Rio de Janeiro pela primeira-dama no período. As mesmas viagens também foram alvo de pedidos de informação pela Assembleia Legislativa, reforçando todas as suspeitas.

Por conta deste amplo leque de provas, o promotor concluiu que “o magistrado se dissociou completamente do acervo probatório constante dos autos, proferindo uma sentença que declarou, de forma genérica, a legalidade de inúmeras viagens realizadas” pela primeira-dama. Nessa linha de pensamento, o Ministério Público entende que a falta de comprovação do efetivo interesse público nas viagens impõe a reforma da sentença de 1º grau e o reconhecimento da procedência da ação popular, que pede o ressarcimento de todos os gastos aos cofres públicos.

Defesa de Hartung critica “fonte”

A defesa do governador e da primeira-dama apresentou, no início de fevereiro, suas contrarrazões ao recurso que será analisado pelos desembargadores do TJES. Por motivos óbvios, os advogados do casal Hartung-Cristina pedem a manutenção da sentença de 1º grau e tentam rebater os argumentos do Ministério Público, contudo, novamente sem utilizar uma linha sequer para explicar a motivação das viagens.

Pelo contrário, a peça da defesa tenta retirar a legitimidade das reportagens publicadas pelo jornal Século Diário, que basearam o autor da ação popular, apesar dela ter utilizado os recortes de matérias publicadas no jornal A Gazeta e A Tribuna na tentativa de caracterizar a primeira-dama como responsável pelo Cais das Artes.

“As matérias veiculadas pelo ‘jornal’ eletrônico Século Diário, que fundamentam toda a causa de pedir da demanda popular, tecem alegações genéricas e superficiais, munidas de uma infinidade de argumentações em tese, de conteúdo subjetivo, profundamente sensacionalistas e que possuem como único pano de fundo demonstrar meramente o inconformismo do jornalista e, no presente caso, do próprio Autor Popular, acerca das questões fáticas que nenhum deles logrou êxito em comprovar e, especialmente, que nenhum deles soube promover o adequado enquadramento jurídico”, narra um dos trechos da peça, provando, neste caso, o ataque ser a melhor defesa.

Chama atenção que a Procuradoria Geral do Estado (PGE) também saiu em defesa do governador, assim como ocorreu no caso do “posto fantasma” – cuja decisão pela extinção da ação de improbidade foi derrubada pelo Tribunal de Justiça, que determinou o reexame da denúncia ajuizada pelo Ministério Público. Nas contrarrazões do Estado, também citado no processo, os procuradores Lívio Oliveira Ramalho e Paulo José Soares Serpa Filho nem se dão ao trabalho de adentrar o mérito das acusações contra o casal Hartung-Cristina. A peça feita pela PGE tenta a todo o momento desconstruir a razão de existir da ação popular.

“Com todo respeito, a forma pela qual os pedidos e sua respectiva causa de pedir foram deduzidos, traduz nítida ofensa à regra do Código de Processo Civil (CPC), o que acaba descambando para a violação do devido processo legal, porquanto o caráter genérico do pedido  da causa de pedir prejudica, e muito, o exercício do contraditório […] Caracterizada tanto a dedução de pedido genérico fora das hipóteses admitidas, quanto a inadequação da via eleita, a extinção do feito, sem resolução de mérito, é a medida que se impõe”, sugeriu a Procuradoria como uma possível solução, caso os desembargadores anulem a sentença de 1º grau.

Em outras palavras, a defesa do Estado – que não deve ser necessariamente do governador – pede que, caso a decisão pela absolvição de Hartung e da primeira-dama seja revertida, o caso não deve ser sequer julgado – isto é, uma forma de “resolver” o processo sem que o mérito da acusação, se as viagens foram legais ou não, seja esclarecido pelo juízo.

Autor popular quer condenação do casal

No recurso de apelação do autor da denúncia, Renato Aguiar defende a aplicação de punições ao governador e sua mulher por conta das viagens sob alegação de que a sentença de 1º grau lança argumentos inconsistentes. O estudante destaca ainda que os requerimentos do Ministério Público foram ignorados pelo juízo na ocasião do julgamento na primeira instância, fato que por si só geraria a nulidade de todos os atos processuais que antecederam a prolação da decisão – que também se tornaria nula, caso seja reconhecida a falha.

Data vênia, a sentença não pode prosperar como decisão final do Poder Judiciário sobre esta causa popular. Primeiramente, não vinga a tese de que as despesas com viagens para outros estados e até mesmo para o exterior à custa do povo seria justificável pelo fato de a Casa Militar ser responsável pelo transporte do governador e de seus familiares. […] Também não convence o argumento de que a segunda ré [Cristina] ‘durante dado período podia ser qualificada como agente público’[…] A própria sentença refere ‘durante dado período’, ou seja, não houve comprovação de que durante todo o período das viagens em debate a ré desenvolvia suposta atividade de interesse pública”, afirma o autor da denúncia.

E continua: “De qualquer modo, mesmo que se admita a segunda ré como agente pública, ela deveria prestar conta de suas viagens, deveria instaurar, assim como todos os outros agentes públicos, um processo administrativo que justifique o pagamento de suas despesas bem como qual seria o interesse público nessas viagens. Nada disso foi feito, fato incontroverso!”.

Para o estudante, os atos foram lesivos aos cofres públicos, uma vez que “o Estado não ganhou nada com as viagens feitas, mas custeou todas as 86 viagens que não possuem nenhum tipo de documentação, muito menos prestação de contas”. Renato Aguiar juntou ainda decisões de tribunais superiores pela necessidade de efetiva comprovação do interesse público no gasto de verbas públicas. “Assim, por qualquer ângulo que se olhe, percebe-se a ilegalidade das despesas questionadas bem como a lesividade ao erário e à moralidade administrativa”, conclui.

Relembre o caso

As reportagens sobre as viagens da primeira-dama foram publicadas entre agosto e setembro de 2014, logo após um pedido de informação à Casa Militar feito pelo deputado estadual Sandro Locutor (PROS) sobre os gastos. A reportagem teve acesso ao Ofício SEG nº 79/2014, que reportou gastos na ordem de R$ 83,7 mil em gastos com viagens da psicóloga Cristina Gomes. Ao todo, a então primeira-dama utilizou 63 passagens aéreas – para destinos nacionais e internacionais –, além de 20 registros de hospedagem em hotéis de luxo, localizados em bairros nobres de São Paulo e Rio de Janeiro.

Segundo o documento, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro foram os principais destinos de Cristina Gomes, que realizou 59 viagens custeadas pelo Estado – sendo 33 trechos entre Vitória e os três aeroportos em solo paulista (Congonhas; Guarulhos; e Viracopos, em Campinas – este último, a aproximadamente uma hora e meia de São Paulo) e 26 vôos com destino ao Rio de Janeiro (com destino final nos aeroportos do Galeão e Santos Dumont). Somadas, todas as passagens nacionais totalizaram um gasto de R$ 26.337,50.

Além das passagens aéreas, o governo do Estado também arcou com gastos com hospedagem em hotéis de luxo nas duas cidades – todas as instalações com quatro estrelas, no mínimo. Ao todo, o Estado pagou R$ 9.639,30 em diárias que, em alguns casos, não têm relação direta com os registros de passagens aéreas. Entre os anos de 2005 e 2006, a primeira-dama fez 23 viagens para Rio de Janeiro e São Paulo ao custo de R$ 8,58 mil somente com passagens aéreas. Deste total, 14 viagens foram feitas sem a companhia de Hartung.

Na época da revelação do escândalo, o então candidato ao governo admitiu a realização de viagens pela então primeira-dama, até mesmo em trechos internacionais. No entanto, Hartung não deu qualquer explicação sobre os gastos de verbas públicas sobre as outras viagens de Cristina. O assunto ganhou repercussão nacional após a reprodução das informações na coluna do jornalista Cláudio Humberto, que é replicado em dezenas de publicações em todo o País.

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