sábado, dezembro 21, 2024
26 C
Vitória
sábado, dezembro 21, 2024
sábado, dezembro 21, 2024

Leia Também:

WB Yeats, o maior poeta de língua inglesa do século 20 (parte – 2)

Dando continuidade à reflexão e demonstração da poesia de W.B.Yeats, temos então essa transição desta obra do poeta que começa no mundo de sonho e perfeição e que vai pousar, de modo nada suave, no mundo real de conflito e responsabilidades, criando novas demandas para o seu processo criativo como um todo, o que não o furtará, mais adiante, de criar seu próprio mito esotérico, como na obra “Uma visão”, publicado em 1925. O caminho realista, “desencantado”, já pode se ver na produção de Responsabilidades em 1914, como no poema “A Manta”, que está no livro, e que já nos leva, mesmo em metáfora, já não mais exultante de simbolismo, mas calcada na sua experiência de vida, e que neste poema aparece como suas “responsabilidades estéticas”, abandonado de vez sua cepa original de idílio e sonho (deixada de bom grado a seus imitadores), e que floresce em um estilo renovado de simplicidade e precisão, sem atavios e penduricalhos comuns à forma metafórica fetichizada dos simbolistas, entrando de fato no mundo moderno com uma propriedade até debitada a esta habilidade anterior, mas com sua orientação para a economia de imagens em função do real e não mais da enunciação puramente metafórica. “A Manta” é a ruptura oficial do poeta Yeats com seu estilo inicial, começando uma nova fase de sua produção criativa.
 
E tal virada radical pode ter causado uma impressão equivocada em alguns de seus leitores como uma secura ou ressecamento de sua seiva poética, o que era um erro, pois Yeats estava avançando com seu trabalho para além das formas estanques de uma poesia que ficaria datada ao século XIX, e inaugurando a sua linguagem para o século novo do XX, um despojamento necessário da expressão, uma certa amargura que beneficiará, no entanto, um tipo de poesia menos ingênua e inocente, favorecendo de todo o seguimento do que se faria a obra completa do poeta, vista de hoje. Este divórcio com a forma anterior aparece no poema, primeiro com sua falsa sinalização: “Para o meu canto fiz manta/Bordada com fantasias/De antigas mitologias/Do calcanhar à garganta;” aqui com o poeta fazendo referência explícita ao que deixou, mas aparecendo como um engano, o seu bordado ele diz que é este, mas logo em seguida dá uma rasteira em seus imitadores: “E os tolos em seu proveito/Exibiram sua beleza/Como se a tivessem feito.” É como se fosse uma “casca de banana” para os poetas incautos que ficaram ao léu com expressões que Yeats as deu e as abandonou, deixando tal música aos tolos, como se fossem deles, e não do velho Yeats, agora renovado e crítico. E, então, aparece a realidade cristalina: “Canção, aceita o ocorrido:/Existe maior proeza/No andar despido.” Yeats aqui coloca seu despojamento dos atavios já nesta metapoesia em poema e, para quem tem bom entendimento, a armadilha e a cura estão expostas ipsis litteris.
 
Nos poemas “Os cisnes selvagens de Coole”, do livro homônimo de 1919, e “O pescador”, dois poemas que estão na íntegra logo abaixo, nos dão este novo Yeats com madureza de expressão, um poeta hábil e autoconsciente, senhor de sua expressão, ao bel prazer da pena. Pois, com a publicação de “Os cisnes selvagens do Coole”, de 1919, e de “Michael Robartes e a dançarina”, que é de 1921, o poeta toma novos rumos, na sua busca de um equilíbrio maior de expressão, depois de sua ruptura no poema “A manta”, já na tentativa de síntese do sonho da fase inicial com a realidade do período subsequente. E, com esta mudança de direção, novamente, Yeats começa por mudar de público. Isso estando patente nestes dois volumes mencionados acima, onde já há uma insatisfação com a burguesia irlandesa, e no seu conhecido pendor por outras classes sociais, que são a aristocracia e o povo simples.
 
Na verdade, Yeats sempre se sentiu muito ligado à aristocracia protestante da Irlanda, que, apesar de superada em muitos aspectos, se reduzindo, conservava ainda, para o poeta, a nobreza de espírito, e algo caro a poetas, o refinamento estético. Aproximar-se deste mundo significava, para Yeats, recuperar algo de seus ideais da juventude, em que a beleza poética era mais importante que uma veia crítica ou da dura realidade. Assim, seus contatos com lady Gregory e família estreitavam-se: trabalhava com eles, visitou com eles a Itália e passava temporadas anuais em sua residência em Coole, no oeste da Irlanda. E tal é o cenário de “Os cisnes selvagens de Coole”, uma visão da beleza reinante que era simbolizada pelo bando de cisnes de graça aristocrática, era o poeta no seu idílio de riqueza, embora já com uma atenção que tenderia a se voltar ao mundo de penúria e guerra, logo a seguir.   
 
Como contraponto de seu apreço pela aristocracia, estava seu interesse pelo povo simples, repositório das melhores tradições nacionais e preservador da pureza original. Tal é o pendor presente no poema “O pescador”, por exemplo, onde temos a idealização de um homem do povo, diferente da burguesia corrupta e corrompida que Yeats verberaria num estilo ferino que lembraria o de Swift. No entanto, nem o povo simples nem a aristocracia representavam a grande solução para a poesia de Yeats, visto que o poeta continuava distante de estratos importantes do público leitor irlandês.
 
Foi então que se verificou um fato que alterou radicalmente a situação, que foi o levante da Páscoa de 1916. Um grupo de heroicos irlandeses, não confiando nas promessas da Inglaterra de conceder independência à nação tão logo terminasse a Grande Guerra, sublevou-se. Entre eles figurava John MacBride, o ex-marido de Maud Gonne. A revolta, porém, foi esmagada, e quase todos os seus participantes, executados como traidores. Neste caso do levante, um Yeats a princípio avesso ao tema da guerra, ficou, no entanto, cheio de patriotismo e emoção, escrevendo a comovente elegia “Páscoa de 1916”, que é como uma contraparte contrita de “Setembro de 1913”: pois para ele, toda aquela gente, que antes lhe parecia “vestida de arlequim” como se participasse de uma farsa, se revestiu então de dignidade, revelando-se plenamente à altura do heroico sacrifício. E então a “terrível beleza nasceu.”
 
O poeta começava a reconciliar-se com a realidade dura da vida prática, preparando-se para reinterpretá-la e recolocá-la numa nova tentativa de síntese, que viria por vias não muito ligadas ao mundo prático, mas que teria a revelação do fundo em que passará a se dar as suas metáforas, versos e poesia. Yeats estava agora pronto para tentar novamente a síntese do sonho e da realidade, e o seu sucesso já pode ser medido pelo que realizou em “Michael Robartes e a dançarina” (o volume que inclui os versos de “Páscoa de 1916”), embora alguns poemas dessa obra, não obstante o inegável mérito, ainda se prendam a atitudes antigas em vias de superação. Mas neste livro temos outros poemas, como “A segunda vinda”, que já nos trazem o Yeats da síntese final.
 
Tal síntese não foi fácil, mas podemos falar que houve algo de súbito e sobrenatural nesta história poética. O poeta persistiu, e se deu bem. Uma de suas máximas era: “O talento percebe as diferenças; o gênio vê a unidade”. E a visão da unidade passou a ser a sua maior ambição, o imperativo maior. E a grande questão de Yeats, para a sua poesia e a elaboração de seu pensamento, passou a ser como, entretanto, reunir todos os fragmentos? Como conciliar num sistema todos os opostos? T.S.Eliot, por exemplo, recorreu à religião estabelecida. Mas Yeats experimentava outras fontes, pois desde jovem voltara-se para a magia, o ocultismo, o espiritismo, o rosacrucianismo e a Sociedade Teosófica de madame Blavatsky (de quem fora amigo em Londres); lera também com avidez muitos filósofos e místicos, como Plotino, Boehme, Descartes, Vico, Swedenborg, Blake, Gentile e Croce. Com tais leituras, conseguira reunir algumas ideias essenciais, mas precisava ordená-las, isto é, encontrar um sistema em que todas essas coisas se encaixassem.
 
Estava nesse ponto quando, quatro dias após o casamento, surpreendeu sua mulher a receber mensagens psicográficas. Estimulou-a para aprofundar aquelas mensagens e, graças aos dotes mediúnicos dela, pôde recolher vasto material e com ele concluir a elaboração de seu sistema. A seguir, reproduziu-o com riqueza de detalhes, criando o tal sistema que ele buscava, e que resultou no volume “Uma visão”, publicado pela primeira vez em 1925, e em sua versão final em 1937. O sistema permitiu a Yeats alcançar a ambicionada síntese, abrindo-lhe o caminho para a sua fase de maior grandeza como poeta. E tal sistema deu a Yeats, também, uma teoria da psicologia humana, da vida após a morte e da história. A poesia de Yeats, por sua vez, ganhou em economia e intensidade. E as consequências práticas dessa grande síntese e desse novo estilo podem ser observadas já nos dois últimos volumes de poesia que aqui mencionamos, em poemas como “O pescador” e “A segunda vinda”. E com tais poemas, Yeats não só alcançou a grandeza de outros poetas modernos em evidência, como T.S.Eliot, pelo uso de uma linguagem direta e sem atavios na projeção de um mundo fragmentado, mas também muitas vezes os superou, pela originalidade das concepções e profundidade da percepção. A poesia de Yeats continuaria evoluindo, história que contarei no próximo texto, sobre a sua grande obra de poesia e de pensamento.
 
UMA MANTA
 
Para o meu canto fiz manta
 
Bordada com fantasias
 
De antigas mitologias
 
Do calcanhar à garganta;
 
E os tolos em seu proveito
 
Exibiram sua beleza
 
Como se a tivessem feito.
 
Canção, aceita o ocorrido:
 
Existe maior proeza
 
No andar despido.
 
OS CISNES SELVAGENS DE COOLE
 
O arvoredo refulge no esplendor do outono,
 
Nas veredas do bosque está seco o terreno,
 
O lago no crepúsculo de outubro
 
Espelha um céu sereno;
 
Nas águas, entre as pedras transbordando,
 
Cinquenta e nove cisnes vão-se em bando.
 
 
 
Já venho aqui por dezenove outonos,
 
Pelo que pude contar;
 
Mal terminei, voou o grupo todo
 
Para no azul se espalhar,
 
Girando em voltas descontínuas e grandiosas
 
Com asas clamorosas.
 
 
 
Tenho observado essas brilhantes criaturas,
 
E sinto no peito uma chaga.
 
Tudo mudou desde que, ouvindo no crepúsculo
 
Esse badalo de asa nesta plaga
 
Pela primeira vez cortar o espaço,
 
Pisava mais leve o meu passo.
 
 
 
Incansáveis ainda, amante junto a amante,
 
Remam no frio da amável correnteza
 
Ou escalam os ares;
 
Nos corações o tempo não lhes pesa;
 
Emoção ou conquista, aonde quer que vão,
 
São sempre o seu quinhão.
 
 
 
Mas agora deslizam na água calma
 
Com sua beleza e mistério.
 
Em meio a que caniços construirão?
 
Junto a que lago serão nosso refrigério,
 
Quando eu, despertando num aurora,
 
Notar que se foram embora?
 
 
 
O PESCADOR
 
 
 
Mesmo lembrando o sardento
 
Homem de cinza com vara
 
Que sobe a um lugar cinzento
 
Com roupas de Connemara
 
E na aurora vai pescar,
 
Já faz tempo que procuro
 
Ante os olhos invocar
 
Esse homem simples e puro.
 
Eu tinha olhado de frente
 
O que eu esperava que fosse
 
Escrever p`ra minha gente
 
E aquilo que o mundo trouxe:
 
Os vivos que dão desgosto,
 
O morto que era um amigo,
 
O covarde no seu posto,
 
O insolente sem castigo,
 
Canalha algum intimado
 
Enquanto um ébrio o aclamar,
 
O engraçadinho açodado
 
Com seu chiste mais vulgar,
 
O esperto que traz nos lábios
 
Algum bordão de palhaço,
 
O espaço que falta aos sábios
 
E a grande Arte sem espaço.
 
Por desprezo a essa plateia,
 
Há um ano do calendário,
 
De repente tive a ideia
 
De um homem imaginário,
 
Com o rosto bem sardento
 
E roupas de Connemara,
 
Onde a espuma da corrente
 
Escurece a pedra clara,
 
A dobrar o punho em riste
 
Quando o anzol lança risonho;
 
Um homem que não existe,
 
Um homem que é apenas sonho;
 
E, antes que velho, anuncio:
 
“Vou lhe escrever qualquer hora
 
Um poema talvez frio
 
E candente como a aurora”.
 
 
PÁSCOA DE 1916
 
Encontrava os seus vívidos semblantes
 
Quando voltavam ao cair da noite
 
De escritório ou balcão, entre o cinzento
 
Do casario do século dezoito.
 
Saudava-os com aceno de cabeça
 
Ou palavras corteses e vazias,
 
Não concluindo sem lembrar primeiro
 
Um chiste ou caso em tom de menoscabo
 
Capaz de divertir um companheiro
 
Sentado ao pé do fogo lá do clube,
 
Pois enxergava toda aquela gente
 
Vestida de arlequim – assim como eu;
 
Tudo mudou, mudou completamente:
 
Terrível beleza nasceu.
 
 
 
Ah, aquela mulher passava o dia
 
Na boa vontade de ignorância atroz,
 
E a noite inteira discutia,
 
Até esganiçar a voz.
 
Que voz se comparava à maravilha
 
Da sua, quando jovem e formosa
 
Galopava no encalço da matilha?
 
Este homem por sua vez tinha uma escola,
 
E o cavalo com asas cavalgava;
 
Este outro, auxiliar seu e amigo, flama
 
Igual nutria, e já desabrochava;
 
Talvez tivesse conquistado fama
 
Com sua sensibilidade rara
 
E o pensamento ameno e vigoroso.
 
Enfim, aquele outro homem eu sonhara
 
Um bêbado grosseiro e pretensioso.
 
Com pessoas que próximas me estão
 
Ele fora em verdade bem cruel;
 
Entretanto, eu o incluo na canção,
 
Porque também deixou o seu papel
 
Nesta comédia inconsequente;
 
Também mudança trágica sofreu,
 
E transformou-se inteiramente:
 
Terrível beleza nasceu.
 
 
 
Corações onde um só desígnio medra,
 
Seja no inverno ou na estação estiva,
 
Mudam-se por encanto numa pedra
 
Que turba o fluxo da corrente viva.
 
O cavalo a chegar da estrada além,
 
O cavaleiro, o pássaro que avança
 
De trambolhante nuvem para nuvem,
 
Minuto por minuto têm mudança;
 
Altera-se minuto por minuto
 
A sombra se uma nuvem na corrente;
 
Escorrega na margem uma pata,
 
E um cavalo chapinha mais à frente;
 
Chamando o macho para o seu reduto,
 
Mergulha a ave do brejo em rebuliço;
 
Todos vivem, minuto por minuto;
 
A pedra está no meio de tudo isso.
 
 
 
Um sacrifício prolongado
 
Pode mudar em pedra o coração.
 
Quando terá bastado?
 
Este é o quinhão do Céu, nosso quinhão:
 
Apenas sussurrar nome por nome,
 
Qual mãe chamando o filho com doçura
 
Depois que o sono finalmente doma
 
Seus membros após tanta travessura.
 
E não é só o anoitecer, o ocaso?
 
Oh não, não é o anoitecer, foi morte;
 
E não foi morte inútil por acaso?
 
Pois talvez a Inglaterra nos liberte
 
E a palavra que deu seja mantida.
 
De seu sonho sabemos o bastante:
 
Eles sonharam, e hoje estão sem vida;
 
E não foi um amor avassalante
 
Que os arrastou para a fatalidade?
 
Vou expô-lo em meu verso …
 
MacDonagh e MacBride,
 
E Connolly e Pearse,
 
Agora e para a frente,
 
Onde se usar o verde que era seu,
 
Mudaram, e mudaram totalmente:
 
Terrível beleza nasceu.
 
A SEGUNDA VINDA
 
Rodando em giro cada vez mais largo,
 
O falcão não escuta ao falcoeiro;
 
Tudo esboroa; o centro não segura;
 
Mera anarquia avança sobre o mundo,
 
Maré escura de sangue avança e afoga
 
Os ritos da inocência em toda parte;
 
Os melhores vacilam, e os piores
 
Andam cheios de irada intensidade.
 
 
 
Aí vem por certo uma revelação;
 
Por certo próxima é a Segunda Vinda.
 
Segunda Vinda! Digo essas palavras,
 
E do Spiritus Mundi vasta imagem
 
Turba-me a vista: ao longe, no deserto,
 
Um corpo de leão com rosto de homem,
 
O olhar vazio e duro como o sol,
 
As lerdas coxas move, enquanto em torno
 
Rondam sombras de pássaros coléricos.
 
Retorna a escuridão; mas ora eu sei
 
Que a vinte séculos de sono pétreo
 
Vexou o pesadelo de um bercinho;
 
E que rude animal, chegado o tempo,
 
Arrasta-se a Belém para nascer?
 
 
 
(Poemas de W.B. Yeats, tradução de Paulo Vizioli)
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

Mais Lidas