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Secretaria de Saúde ‘brinca’ de fazer licitação e põe em risco atendimento em nove hospitais da rede pública estadual

Além dos casos de corrupção que começam a supurar na Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) — destaque para o episódio da compra superfaturada de repelentes envolvendo o então subsecretário de Saúde José Hermínio Ribeiro, preso nessa quarta-feira (18) —, a pasta comandada pelo secretário Ricardo de Oliveira tem sido desastrosa também na gestão. A propósito, quando Paulo Hartung (PMDB) trouxe Ricardo de Oliveira para compor sua equipe de governo, enalteceu justamente as qualidades técnicas do secretário, alegando que o problema da saúde sempre foi relacionado à gestão, e estava escalando um “craque” no assunto para mudar essa realidade. 
 
Desde que entrou em campo, porém, o “craque” vem decepcionando. Há quase dois anos à frente da pasta, vem marcando um gol contra atrás do outro. A condução das negociações com as cooperativas médicas talvez seja o caso que melhor denuncie a incapacidade de gestão do secretário. 
 
Logo que assumiu a Sesa, Oliveira quis mostrar que teria tolerância zero com as cooperativas médicas que atuam há mais de duas décadas prestando serviços na rede pública estadual de saúde. O secretário queria na verdade desarticular a Federação Brasileira das Cooperativas de Especialidades Médicas (Febracem), que congrega oito cooperativas no Estado. A estratégia de Oliveira era enfraquecer a federação para negociar individualmente com as cooperativas ou com os próprios médicos a renovação dos contratos que se encerrariam, depois de todas as prorrogações possíveis, em julho de 2015. 
 
Desde então a relação entre Sesa e cooperativas vem se acirrando. De um lado, as cooperativas pleiteando a participação nos novos certames; de outro, a Sesa manobrando para enfraquecer os cooperados. A intransigência da Sesa impediu qualquer acordo. Sem poder renovar os contratos com as cooperativas e correndo o risco de deixar a população sem o atendimento de cerca de 1,2 mil médicos, a saída encontrada pelo secretário foi recorrer à Justiça para manter os cooperados trabalhando sub judice
 
Em maio deste ano, a Sesa abriu novos editais de licitação, e as cooperativas, que vinham mantendo o atendimento em toda a rede pública, reivindicou a participação nessas concorrências. As cooperativas, em sua maioria, após vencerem os pregões de menor preço, assumiram novos contratos com a Sesa
 
Mas nem todas conseguiram se enquadrar às regras dos editais. Foi o caso da Cooperativa dos Cirurgiões Gerais (Cooperciges), que aceitou manter os mesmos valores que vem praticando com o governo, mas não concordou com a redução dos postos de trabalho, o que comprometeria a qualidade do atendimento, colocando a população em risco.
 
Apesar do impasse, Ricardo de Oliveira não quis ouvir os argumentos dos médicos, que acumulam a experiência de mais de 20 anos de atendimento, e voltou a adotar a estratégia de pressionar os médicos para tentar convencê-los de que as regras do jogo seriam as impostas pela Sesa ou nada. 
 
Em maio, a Secretaria da Saúde chegou a anunciar o Instituto Excellence para assumir os serviços de cirurgia na rede. A empresa, porém, acabou sendo inabilitada por não atender as exigências do edital. Afinal, a empresa vencedora teria de assumir as cirurgias gerais, torácicas, pediátricas e de onco-hematologia em nove hospitais da rede pública estadual, o que representaria contar com um plantel de mais 200 médicos. Só a cirurgia geral — segunda cooperativa em números de médicos — tem atualmente cerca de 250 profissionais atuando na rede pública. 
 
A expressividade dos números deixa evidente, mesmo para um estagiário em gestão pública, que a substituição de um contingente dessa importância não é tarefa fácil. Como o secretário é considerado um “craque” em gestão, é difícil assentir que ele não tenha percebido o tamanho do problema. 
 
É exatamente esse ponto que dá margem para suscitar que Ricardo de Oliveira estava “jogando” com as cooperativas e, por tabela, com a população. A estratégia era a mesma desde o impasse criado em julho de 2015 com o fim dos contratos, ou seja, pressionar as cooperativas para que elas cedessem aos cortes de gastos impostos pelo governador Paulo Hartung. Embora o ponto de discórdia não passasse necessariamente pelo valor dos contratos, mas sim pela redução do número de vínculos, que derrubaria a qualidade do serviço. 
 
A Sesa impôs no novo edital o máximo de 150 vínculos de 24 horas (cada vínculo equivale a um plantão). Atualmente, para manter o atendimento de cirurgia geral nas urgências e emergências nos nove hospitais da rede, as cooperativas trabalham, já no limite, com 186 vínculos. A redução imposta pela Sesa tornaria o serviço vulnerável, expondo os pacientes a riscos e comprometendo a qualidade do trabalho dos médicos. 
 
De Amparo para o ES
 
O pregão eletrônico da Sesa apontou uma empresa do interior de São Paulo como vencedora do certame. A Amparo Med Care Serviços Médicos, da cidade paulista de cerca de 70 mil habitantes (a 150 km da capital), teria nas mãos um contrato milionário com a Sesa, que poderia romper a casa dos R$ 36 milhões. Bastaria, porém, que ela cumprisse todas as exigências do edital para não ser inabilitada como a empresa do certame anterior.
 
O primeiro passo dos médicos Akinori Hirata e Ellington José Spricigo foi alterar a composição societária da empresa criada em maio de 2012. Hirata e Spricigo assumiram o controle da empresa e os outros três sócios saíram. O registro com a nova composição societária foi registrado em cartório no dia 21 de junho último. Começaria a correria contra o relógio e contra a distância de mais de mil quilômetros que separa Amparo de Vitória para assumir mais de 200 postos de trabalho. 
 
O Cooperciges, que saiu derrotada do certame, pediu a inabilitação da Amparo. Aliás, sobravam motivos para questionar vícios na licitação. A empresa paulista apresentava irregularidades a começar pelo endereço. A documentação entregue à Sesa informa que a sede da empresa fica na avenida Carlos Augusto do Amaral Sobrinho, 206 – sala 10 – Jardim São Roberto, Amparo-SP. A reportagem de Século Diário fez contato telefônico neste endereço e descobriu que no local funciona um escritório de contabilidade (Luciano Micai SC Ltda.). Depois de a reportagem supor que se tratava de um engano, a recepcionista esclareceu que poderia acionar um representante da Amparo para entrar em contato com a reportagem, mas não soube explicar por que na suposta sede da empresa funcionava, de fato, um escritório de contabilidade. Aliás, o dono do escritório assina como testemunha o novo contrato da empresa.
 
O telefonema da representante da Amparo veio logo em seguida, e só aumentou as dúvidas em relação à empresa. Depois de não esclarecer sobre o “conflito” de endereço da sede da empresa e do escritório de contabilidade, a advogada Janaína Nogueira Muller foi evasiva nas respostas. Ela não foi clara ao tentar explicar se não havia irregularidade no fato de a empresa ter os códigos de descrição de atividades econômicas que não contemplam as exigências do edital. A empresa, de acordo com o registro no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, pode desenvolver apenas atividades médicas ambulatoriais restritas a consultas e atividades médicas ambulatoriais com recursos para realização de procedimentos cirúrgicos. 
 
Para atender às exigências do edital, a Amparo teria que ser habilitada no código 8610-1/02, que prevê as atividades de atendimento em pronto-socorro e unidades hospitalares para atendimento a urgências e emergências. Questionada se o não cumprimento dessa exigência já não seria motivo para inabilitar a empresa, Janaína afirmou que as perguntas estavam partindo para um viés técnico e que não responderia mais por telefone. Exigiu que a reportagem enviasse as demandas por escrito. 
 
A reportagem ainda tentou insistir sobre o faturamento da empresa. Perguntou por que a empresa apresentou à Sesa balanço financeiro referente a 2015 de cerca de R$ 3,9 milhões e distribuiu os lucros entre os então cinco sócios, sem que houvesse registros de despesas com a contratação de outros profissionais, o que parece não ser contabilmente razoável, já que para isso tão e somente os cinco sócios teriam que fazer todos os atendimentos dos serviços prestados pela empresa.
 
A advogada também preferiu não comentar se considerava ético e válido os médicos Hirata e Spricico, donos da Amparo, apresentarem Atestado de Fornecimento e Capacidade Técnica expedido pela Santa Casa Anna Cintra, de Amparo, levando em conta que Spricico é o diretor Clínico da Santa Casa e quem, em última análise, seria o responsável para abonar o documento.
 
Alguns dos questionamentos feitos à representante da Amparo já haviam sido feitos pelo Jurídico da Cooperciges ao Setor de Licitação da Sesa, que desconsiderou as irregularidades apresentadas e ratificou a Amparo como vencedora do certame. 
 
Há vagas
 
Embora a Sesa tenha ignorado as supostas irregularidades técnicas, havia outra barreira a transpor para entregar o contrato milionário à empresa: apostar que Amparo fosse capaz de contratar mais de 200 médicos para garantir o atendimento em nove hospitais da rede pública estadual. 
 
Nas últimas duas semanas, além de correr atrás da documentação pendente, a empresa foi obrigada a sair literalmente à caça de médicos. O que leva a supor que a estratégia era vencer a licitação, aumentar a pressão sobre as cooperativas e ir convencendo, aos poucos, os cooperados a prestarem serviço para a Amparo, já que, em tese, os médicos estão desempregados desde 31 de julho último. 
 
A data, que caiu num domingo, foi marcada pela despedida dos funcionários dos hospitais aos cirurgiões. Afinal, estamos falando de uma relação profissional e de amizade que, em alguns casos, se estende por mais de duas décadas. 
 
Como no dia 31 os funcionários já sabiam que os médicos cooperados deixariam seus postos para que a empresa vencedora da licitação assumisse o atendimento, fizeram festas de despedidas, com direito a bolinho e tudo mais, pelos nove hospitais da rede, houve choro e abraços apertados de adeus. Mas os próprios médicos, no fundo, duvidavam que a desconhecida empresa paulista teria condições de assumir quase 200 vínculos de 24 horas em todo o Estado. 
 
Havia motivos de sobra para os médicos ficarem com os dois pés atrás. Muitos deles haviam recebido mensagens “desesperadas” da Amparo, implorando pelos serviços dos cooperados. 
 
Numa das mensagens, do dia 9 de agosto, a representante da Amparo identificada como Josi Lopes, faz o convite tentando convencer um médico: “Carga horária semanal livre (a critério de cada plantonista); Plantões de 12 horas. Valor estimado R$ 1.100 (dependendo da especialidade). Temos a disposição algumas coordenadorias médicas para cada lote (12 lotes) valor da coordenação R$ 5.000,00 por coordenadoria (um médico pode pegar mais que uma coordenadoria fora os plantões). Hospitais são em Vitória, São Matheus, Colatina e Barra de São Francisco. Contratação por meio de PJ. Existem Plantões fixos e de sobreaviso. A escala completa lhe envio assim que assinarmos o contrato, depois de sexta feira. Precisamos de pelo menos mais 07 CV de cirurgião Geral, e mais 04 de cirurgião Pediátrico para fechar o contrato. O prazo para entrega dos documentos para assinatura do contrato é na quinta feira, desta forma, caso o Dr. consiga nos ajudar nesse momento, precisamos somente da cópia do CRM, diploma e certificado de especialidade do médico por email mesmo, ate quarta feira fim do dia”. 
 
Com o passar dos dias e não manifestação dos médicos cooperados, o desespero da Amparo foi aumentando. Novamente Josi insiste na urgência. “Cabe esclarecer que nesse primeiro momento a nossa grande angustia é fechar o contrato com o estado do espirito Santo. Participamos de uma licitação no estado, ganhamos os lotes de cirurgia geral, cirurgia pediatrica, cirurgia torácica, para atuação em nove hospitais estaduais. Ocorre que nesse processo, houve a ruptura do contrato com a cooperativa que atuava em todo estado, havendo nesse primeiro momento uma resistência desses profissionais em aderir a equipe da nossa empresa. No próximo e-mail, passo os hospitais e um resumo da escala para melhor visualização. Mas como antecipei, a nossa aflição é que para assinarmos o contrato, precisamos, independentemente desses profissionais atuarem nesse primeiro momento aqui, precisamos dos documentos de alguns profissionais para assinatura do contrato. A principio, precisamos de 8 cirurgioes gerais, com certificado de cirurgia geral, e 4 cirurgioes pediatricos e 1 toracico. Teria como iniciarmos nossa parceria com o envio desses documentos, para após a assinatura do contrato, marcarmos uma reunião para agilizarmos o fechamento das escalas e equipes”, pergunta a representante da Amparo.
 
Quando Josi diz que houve “a ruptura do contrato com a cooperativa que atuava em todo estado, havendo nesse primeiro momento uma resistência desses profissionais em aderir à equipe da nossa empresa”, ela deixou de explicar por que os médicos cooperados estavam tão ressentidos com a Sesa
 
Na verdade, o subsecretário da Assistência em Saúde, Fabiano Marily, também temia que a empresa não conseguisse arregimentar cerca de 200 médicos em um prazo tão exíguo. Trazer médicos de fora do Estado seria financeiramente inviável. O piso de cerca de R$ 12 mil para quatro plantões mensais de 24 horas, subtraindo as despesas com transporte (passagem aérea e deslocamentos locais), hospedagem e alimentação, tornava a proposta pouco atraente para médicos de praças como Rio de Janeiro, Minas e São Paulo — estados mais próximos ao Espírito Santo. 
 
Contratar mão de obra local, também sabia Marily, seria uma aposta que poderia não funcionar. Prevendo que o contado com a Amparo poderia naufragar antes de ser cumprido, Marily se reuniu que representantes da Cooperciges mesmo já sabendo que a Amparo era a vencedora do certame. Marily pediu a prorrogação dos contratos por mais 180 dias ou até que a empresa vencedora concluísse o processo de qualificação para consolidar o novo contrato com a Sesa.
 
A proposta foi submetida em plenária aos associados que, preocupados com a manutenção do atendimento à população e também interessados em continuar prestando serviço ao Estado, aceitaram a postergação. Marily, porém, precavido, conseguiu um mandado judicial para assegura a prorrogação dos serviços até 31 de dezembro de 2016. 
 
O desfecho de mais esse imbróglio protagonizado pelo secretário Ricardo de Oliveira, confirmaram as suspeitas já levantadas pelos cooperados e que a própria equipe da Sesa também já previa: a empresa paulista não conseguiria contratar cerca de 200 médicos em 15 dias. 
 
Nessa segunda-feira (15), a reportagem de Século Diário solicitou à Sesa vista do processo de licitação para saber se a Amparo entregara a relação de médicos habilitados, já que o prazo, após prorrogação solicitada pela empresa, teria vencido na última sexta-feira (12). O pregoeiro responsável, Rafael Freitas Araújo, afirmou que recebera a documentação da empresa na sexta, mas disse que não cabia a ele emitir parecer técnico sobre o documento. 
 
Araújo também informou que o seu setor remetera, naquela manhã, a documentação para o subsecretário Fabiano Marily, que emitiria parecer técnico sobre o documento. 
 
Ainda na segunda-feira (15), o subsecretário submeteu a documentação a uma comissão para a avaliação técnico-profissional da empresa. Na terça (16), a comissão emitiu parecer concluindo que a empresa não atendia as exigências técnico-profissional do edital. 
 
A comissão, como já havia alertado a Cooperciges, constatou que a Amparo Med Care possui cadastro apenas nas especialidades de clínica médica e pediatria, o que não a qualificaria para prestar serviços cirúrgicos de urgência e emergência em hospitais. A comissão também flagrou na relação de médicos apresentada, vários profissionais sem título de especialista, além de apontar que o número de médicos apresentado pela Amparo é insuficiente para executar as exigências previstas no edital. 
 
Ainda na terça, Marily ratificou o parecer técnico da comissão, tornando a Amparo Med Care Serviços Médicos inabilitada para prestar serviços à Sesa.
 
A sucessão de trapalhadas, mesmo após a Cooperciges ter entrado com recurso apontado as irregularidades da empresa paulista, confirma que a Sesa queria usar a licitação para pressionar as cooperativas, mesmo sabendo de antemão que a empresa do interior de São Paulo não teria condições de assumir um contrato desse porte. 
 
Para se manter firme na queda de braço com as cooperativas, a Sesa pôs em risco o atendimento a milhares de capixabas que depositam todos os dias suas vidas nas mãos dos médicos da rede pública estadual. 
 
Ricardo de Oliveira e equipe precisam saber que não se deve jogar com vidas humanas.

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