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Encontro Regional consagra Caparaó como local sagrado para o Povo Guarani

“É como um espaço de retiro espiritual. Pode ser um espaço que venham outras famílias de outras comunidades pra ficarem por um período, se restabelecerem, se fortalecerem espiritualmente, depois voltarem pra suas aldeias, suas localidades, voltarem fortalecidos dessa questão espiritual. Isso é o que a gente observa aqui”.

É com essas palavras que o coordenador geral da Comissão Guarani Tvyrupa (CGY), Marcos Tupã, define a singularidade e a importância da Aldeia Yyrexãkã (Espelho d´Água), no Caparaó Capixaba. Morador da Aldeia Boa Vista, no litoral norte de São Paulo, Marcos Tupã foi uma das 20 lideranças que participaram do Encontro Regional da CGY, ocorrido na aldeia caparaoense entre os dias 16 e 18 de outubro.

Durante os três dias, lideranças de Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo realizaram plantio de árvores nativas e discutiram as prioridades e estratégias de luta neste pedaço do Brasil. O Encontro Regional da CGY é itinerante e sua vinda para o Caparaó este ano teve objetivo de fortalecer o trabalho de reconhecimento do local como parte do território Guarani.

O lugar

Uma hora de caminhada morro acima, numa estreita trilha em meio à mata, separa a estrada que liga os distritos de Mundo Novo/Dores do Rio Preto e Patrimônio da Penha/Divino de São Lourenço à Aldeia Yyrexãkã, no alto do Córrego Veadinho, no Caparaó Capixaba.

A subida já conduz o visitante a um estado mental e emocional mais compassado com o ritmo da floresta, da água, do ar puro. Pequenas aberturas em meio à vegetação, vez ou outra, revelam um vale e encostas cobertos completamente pela densa floresta montana.

Estamos dentro do Parque Nacional do Caparaó, maior unidade de conservação de proteção integral do Espírito Santo, que abriga a terceira maior montanha do país e ponto culminante da Mata Atlântica, o Pico da Bandeira, com 2.892m de altitude.

O conflito

Criado em 1961, o Parna teve sua área ampliada para os atuais 31,8 mil hectares – 80% deles no Espírito Santo – em 1997, quando passou a incorporar a terra que fora doado aos Guarani por um grupo de apoiadores dos indígenas, entre eles o diretor deste Século Diário, jornalista Rogério Medeiros.

As poucas casas erguidas no cenário paradisíaco da Aldeia Yyrexãkã são de estuque – técnica primitiva, que inspira as novas tecnologias de construção da moderna Permacultura – e apenas o pequeno centro de convivência ainda improvisa um telhado temporário de lona.

Não há água encanada nem luz elétrica, mas as famílias vivem bem, há cerca de oito anos, período em que têm resistido bravamente às agressivas investidas do Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Natureza (ICMBio – administrador do Parque) e da própria Fundação Nacional do Índio (Funai), que tentam, de todas as formas possíveis, destruir a Aldeia Caparaó, sob alegação de ilegalidade da ocupação.

Os Guarani vivem uma perseguição semelhante em outras partes do país, onde aldeias se instalam dentro ou nas zonas de amortecimentos de unidades de conservação. No caso do Caparaó, a pressão exercida contra eles destoa de qualquer padrão de esforço de retirada de outros proprietários, que, por sua vez, fazem, de fato, uso conflitante do solo, em relação aos objetivos de conservação do Parque Nacional.

Quatro chefes já passaram pela gestão do Parna Caparaó desde que os Guarani subiram a montanha sagrada e esta repórter já ouviu, pessoalmente, de pelo menos um deles, a declaração de que há casas irregulares, loteamentos irregulares e outras situações de conflito evidente que não recebem o mesmo tratamento direcionado aos Guarani.

São centenas de proprietários ocupando, há vinte anos, a área ampliada do Parque. Que critérios definem a priorização de um ou outro caso? Interpretação da legislação ambiental nacional – especialmente o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) – e do Plano de Manejo, o que torna as decisões carregadas de subjetividade e, no caso da Aldeia Yyrexãkã, explicita o preconceito contra os indígenas.

O diálogo possível

O conflito suscitado pelos órgãos ambientais federais está sendo analisado pelo Ministério Público. A partir de um relatório elaborado pela comarca de Cachoeiro de Itapemirim, a regional do Rio de Janeiro está elaborando um laudo, após a realização, também de duas audiências, uma delas na própria aldeia. O laudo deveria ter sido concluído em setembro, por isso os indígenas o aguardam a qualquer momento.

“No meu entender, eu creio que pode ter algum contraditório, mas vai ter sim pontos a favor do Território Guarani”, pondera o cacique da Aldeia Boa Esperança, em Aracruz/ES, Werá Kwarai (Toninho), e representante capixaba na CGY.

Marcos Tupã entende que o que falta para o Estado é vencer o preconceito contra os indígenas e reconhecer e respeitar a cultura dos povos originários. Afinal, se por um lado a legislação não permite a permanência de indígenas dentro de parques nacionais, na prática, as Terras Indígenas são os territórios que melhor protegem as florestas, alcançando índices equivalentes aos das unidades de conservação de proteção integral. Já passou da hora da lei, portanto, se adequar à realidade.

O hábito da caça, por exemplo, a princípio o mais contraditório com os objetivos de conservação de um parque nacional, precisa ser analisado a partir o olhar do respeito às tradições e do seu efeito prático, no dia a dia de uma aldeia.

“E o ciclo da natureza tem uma época que pode caçar e tem uma época que não pode caçar e nem pescar. Então a gente procura outros meios pra se manter nesse período. Então, caçar também não é sair depredando tudo, é uma questão de subsistência, de alimentação, mesmo. Então aí se você consegue matar um ou dois, uma queixada, uma vez por mês, isso acontece porque os próprios donos oferecem a você. Porque todos os animais pra nós têm o seu dono, os donos protetores. Só consegue ter aquele alimento, a caça, quando os donos oferecem; é como uma oferenda. A gente tem como os anjos protetores pra cada entidade: pros rios, pras pedras, floresta, mata, e principalmente pra caça – todos os animais têm os seus anjos protetores. Tudo é questão das rezas, estar voltando pra Opy (casa de reza]. Um guarani que vai caçar não pode simplesmente pegar seu arco e flecha e sair caçando, a torto e a direito. Não é uma caça esportiva, é uma caça que de fato necessita pra sua alimentação. Então esse é o nosso conceito”, descreve o coordenador geral da CGY.

Marcos Tupã lembra ainda que, uma vez estabelecendo-se uma aldeia, uma comunidade indígena, a floresta adjacente fica mais protegida. “Às vezes uma região de uma aldeia entram muitos exploradores das cachoeiras, da mata, ou caçadores. E quando se instala uma comunidade nessas localidades, os próprios caçadores e outros já ficam com receio de entrar”, conta.

Os estudos do Instituto Socioambiental (ISA) e outras instituição de pesquisa brasileiros confirmam, com dados, o que diz o cacique. “As Terra Indígenas protegem muito a floresta”, afirmou a coordenadora do Programa Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA, Fany Pantaleoni Ricardo, em entrevista concedida ao Século Diário em abril deste ano.

Na ocasião, Fany citou os números referentes ao desmatamento de 2015 e a estimativa de 2016, vindos da análise dos dados do PRODES-INPE – órgão do governo federal responsável pelo monitoramento das áreas protegidas – e que mostram que 98,31% das florestas em Terras Indígenas na Amazônia Legal Brasileira encontram-se preservadas, com uma média estimada de desmatamento de 1,69%.

“Quanto às UCs [Unidades de Conservação] de Proteção Integral [como parques e reservas biológicas], o desmatamento é de 1,35% de suas florestas e, nas UCS de Uso sustentável [como APAs e Reservas de Desenvolvimento Sustentável], o desmatamento é de 2,44%”, comparou a coordenadora do ISA.

As crianças e as mulheres

No último dia do Encontro Yvyrupa, a reunião realizada pela manhã na Opy, num terreno mais afastada da área residencial, era observada, repetidas vezes, pelos curumins da aldeia, que adentravam o austero recinto, defumado pelos cachimbos e pelo fogo feito em uma pequena fogueira no chão pelas mulheres presentes.

Visitas silenciosas e respeitosas dos curumins, mas mesmo assim impensadas dentro da cultura não-indígena, onde as crianças são regularmente confinadas a espaços específicos, que via de regra não combinam com os ambientes de reuniões e decisões de líderes.

Mas entre os Guarani e outros parentes de pele vermelha, as visitas dos pequenos é saudada com alegria e naturalidade. “O espírito das crianças fortalece a nossa reunião”, afirma o cacique Werá Kwaraí, diante dos olhares surpresos dos cara-pálidas presentes.

Entre um pronunciamento e outro na Opy, duas jovens lideranças nos concederam entrevista.  Pará Poty (Neusa Quadro), secretária nacional da Comissão, é moradora de uma aldeia de mesmo nome que a caparoense, no interior de São Paulo, e enfatizou o papel das lideranças femininas. “Me sinto muito valorizada, muito respeitada, porque não quero só pra mim, porque trabalho pra comunidade. E sempre procuro incentivar, trazer mais mulheres para a liderança”, conta.

O vice-cacique do Jaraguá, aldeia localizada na região metropolitana de São Paulo, Werá Xondaro (Mateus Vidal), contribuiu com a conversa revelando vislumbrar um futuro próximo onde haverá mais líderes mulheres que homens entre os Guarani. “Na minha aldeia, a cacique é uma mulher. Tenho duas filhas e ensino pra elas o português, para elas terem voz de luta.  A Sonia Guajajara é a lideranças indígena mais poderosa hoje. Temos orgulho de sermos representados por ela”, declara.

O futuro

De volta ao círculo dentro da Opy, Toninho celebra: “A vinda da Comissão aqui fortalece a nossa luta, as pessoas da região veem que não só duas famílias nessa terra”. E sentencia, solene e sereno: “Que a nossa organização seja mais forte. Tem que pensar as coisas positivas para o futuro”.

Que assim seja! Aguyjevete!

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