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As cinzas daquilo que nunca fomos

As chamas que tomaram o Museu Nacional e os duzentos anos de história ali contidos se inscrevem, infortunadamente, em mais uma página do trágico enredo de um país que perdeu seu rumo, se é que um dia teve algum. Não será preciso aguardar o laudo da perícia sobre as causas do incêndio para tirarmos, enquanto nação, nossas próprias, necessárias e urgentes conclusões sobre o significado da perda do Museu.

Assim, pouco importará se o incêndio se deu pela queda de um balão ou por um curto-circuito. Certo é que é fruto do nosso descaso com a História, da ausência de uma política real de incentivo à ciência, à tecnologia, à arte e à cultura. As chamas queimam sobre a lenha do congelamento dos gastos públicos por 20 anos, ardem sobre o sucateamento de nossas universidades, sobre o cinismo de quem só agora passou a dizer da importância do Museu Nacional, que há décadas só sobrevive pela paixão de professores, pesquisadores e alunos. 

O incêndio dos 200 milhões de itens que compunham o acervo do Museu ocorre numa quadra decisiva da nossa história. Não por acaso, no momento em que grande parte de nós aplaude orgulhosamente a bestialidade e celebra o máximo da idiotice humana encarnada em determinadas candidaturas que solenemente menosprezam a História e vangloriam a estória que lhes convém. São projetos políticos com amplo apoio popular que negam a escravidão, os horrores da ditadura e as bases históricas do autoritarismo, do racismo, machismo e da homofobia que nos conformaram enquanto sociedade. 

Em certa medida, pois, a destruição do Museu Nacional simboliza o processo em curso de autodestruição de um enredo de projeto civilizatório. O incêndio não é um fato isolado na conjuntura brasileira, mas está conectado diretamente a vários outros episódios que escancaram a nossa decadência sócio-política. 

Um país em que o pacto constitucional já não significa nada, onde juízes grampeiam ilegalmente presidente da República e o máximo que ocorre é um pedido de desculpas, onde a presidente é tirada do poder sem crime sob a batuta da Suprema Corte, para dizer o mínimo, de fato, é um país que não comporta guardar o fóssil de Luzia, síntese de 12 mil anos de história. 

Um país de miseráveis, famintos, analfabetos e milhões de desempregados, cujo orçamento social encontra-se congelado, mas a classe política-jurídica insiste a continuar recebendo o escandaloso auxílio-moradia de R$ 4,5 mil mensais mesmo possuindo imóvel próprio é verdadeiramente um país que deve queimar sua mais importante coleção de paleontologia.

Uma nação que insistentemente nega a primazia dos direitos humanos, mesmo diante da tragédia de 60 mil assassinatos por ano, que aplaude a intervenção militar no Rio de Janeiro, que sai às ruas em protesto a favor da ditadura militar mesmo que depois não possa mais se manifestar, que acredita que violência se resolva com mais violência e que expulsa Venezuelanos a tiros e chicotadas, é mesmo um país que não vê razão alguma para guardar seus primeiros dinossauros descobertos.    

Assim, queima-se o acervo do Museu Nacional pelo menoscabo com a ciência e com a história ao mesmo tempo em que se derretem, sob altíssimas temperaturas, os princípios constitucionais e republicanos, os direitos sociais, assim como os próprios significados de democracia, ética, tolerância e dignidade humana.

O mais trágico, contudo, é saber que, neste caso, não haverá fênix a renascer das próprias cinzas, como na mitologia grega.

A um porque, ao contrário do que pensa o ilustríssimo prefeito do Rio, bispo Marcelo Crivella, por razões lógicas, é impossível recompor um acervo histórico e arqueológico. E a dois porque para que haja fênix renascida das cinzas, é preciso que antes das chamas tenha havido uma fênix real, aquele vigoroso pássaro com asas brilhantes e douradas. 

O Brasil nunca foi uma fênix do culto à história, à arte e à ciência. Nunca valorizamos nossa cultura. Ao contrário, no conjunto Estado-sociedade, o Brasil sempre relegou a promoção da cultura ao plano do supérfluo. Nossos museus são tratados por governos e pela sociedade como algo sem valor, como dispensas velhas e empoeiradas, onde só o mofo tira algum proveito. 

O renascimento do Museu e de tudo o que ele sintetiza exigiria que suas cinzas representassem consensos sociais, a começar pelo valor que a educação – aqui compreendida na sua mais ampla acepção – possui como direito inalienável do ser humano e como meio de transformação do mundo ao redor e de si mesmo. Exigiria a compreensão de que nosso presente é apenas a ponte entre o passado e o futuro, daí a essencialidade do conhecimento e preservação da história para construirmos o Brasil que sonhamos.

As cinzas de hoje, todavia, longe de significarem renascimento ou esperança, como no caso da fênix mitológica, só representam o nosso completo fracasso ao tempo que nos advertem daquilo que pode nos aguardar no dia depois de amanhã. 


Bruno Alves de Souza Toledo – professor de Direitos Humanos e Doutorando em Política Social pela Ufes.

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