Sexta, 29 Março 2024

A ancestralidade pode curar o Rio Doce?

A ancestralidade pode curar o Rio Doce?

O sinal de celular não pega bem ali. É momento de outras conexões.


“Vamos descer o rio, vamos descer o rio, vamos descer o rio…”, canta Farinhada, artista popular de Minas Gerais que entre cada refrão chama as diversas etnias e grupos sociais que compõem esse encontro.


O refrão não é meramente simbólico. Muitas comunidades ribeirinhas desceram lá de cima até a região da foz do Rio Doce, mais especificamente na comunidade de Areal, próxima a Regência, onde o Doce encontra o Oceano Atlântico. É o III Encontro de Cultura Ancestral de Areal, comunidade que reivindica sua herança indígena botocuda.




Foto: Thaís Henriques Dias


Alguns dos visitantes vieram da comunidade quilombola de Airões (em Paula Cândido, Minas Gerais) que trouxe numerosa delegação e sua banda de congo com tocadores, cantores, mulheres, crianças. Animado, o grupo musical além de se apresentar, acordava os participantes e coordenava os cortejos até os momento de alimentação, onde fazia os agradecimentos.


Eles vêm da região em torno de nascentes do Rio Doce, onde as águas seguem limpas, pois estão antes de Mariana(MG), onde a barragem se rompeu. Apesar da proximidade, o carismático Mestre Boi conta que nunca havia ido até a nascente, coisa que fez recentemente inspirado pelo contato com os afetados pelo crime socioambiental da Samarco/Vale/BHP. De lá trouxeram água limpa, do mesmo rio, depositada física e simbolicamente na foz contaminada em Regência, numa emocionante cerimônia entre os participantes do encontro.


A banda de congo de Regência também se fez presente, apresentando, entre outras, uma cantiga que fala especialmente sofre o impacto da lama. Algo como: “Não tenho água pra beber / mas tenho muita água de coco / a lama da Samarco / acabou com o Rio Doce”, se bem me lembro.


Um aspecto muito interessante do Encontro de Cultura Ancestral, e do movimento Regenera Rio Doce, é o chamado para cuidar de nossas águas. Não só das águas externas dos rios, mares e lagoas, mas também das águas internas que trazemos (quase 70% do nosso corpo!), muitas vezes também contaminadas. Olhar para dentro, curar feridas, descontaminar. O debate de gênero nas rodas do sagrado masculino e sagrado feminino e a busca de reconciliação entre povos de origem indígena, africana e europeia, matriz de nosso país construído à base da violência.




Foto: Thaís Henriques Dias


Debaixo pra cima, no contato direto e afetivo, reconstruir o tecido social marcado pela tragédias recentes e muito antigas. Paulo Pataxó, ceramista indígena, pergunta emocionado, choroso, gritando: “O que estamos fazendo com nossa mãe terra?”. Com a folha de aroeira e um pouco de água, benze um círculo de quase uma centena de pessoas. “Eu quero água pra beber, água pra lavar, água pra benzer, eu quero água” é a cantiga entoada por todos nesse momento. No final, Paulo benze três crianças, branca, negra e indígena. Prelúdio de futuro.


Um grupo intitulado Escola de Arte Indisciplinada, veio de Belo Horizonte, especialmente para lidar com as crianças. Vieram - vejam só- aprender com elas! Brincam, cuidam e ensinam entre si.


Há uma nova geração crescendo que terá muito o que lutar nas margens do Rio Doce. “Vejo gente dizer que está cansada. Mas minha etnia luta há 218 anos contra a mineração”, diz Shirley Krenak, uma guerreira que se nota de longe. Os olhos pintados, expressão de uma sisudez que causa temor e admiração. Quando ela fala parece um vulcão. Não tem papas na língua e manda a mensagem sem querer agradar.


“Se as pessoas que estão paradas não agirem, essa comunidade vai desaparecer”. Os demais ouvem em silêncio, enquanto as anciãs de Areal concordam agitadas. Balançam a cabeça e repetem “ela está certa, ela está certa”. Algo está mudando, de dentro pra fora.


Voltemos à pergunta título: a ancestralidade pode curar o Rio Doce?


Pergunto a Hauley Valim, morador de Regência, um dos organizadores do encontro. “Essa foi a proposta. Perguntar às comunidades ancestrais o que fazer e como fazer, pois eles conhecem o ambiente melhor que qualquer engenheiro ou antropólogo. Estão aptos a fazer essa escuta, possuem uma sensibilidade que a gente não tem. Até hoje as medidas de transformação promovidas pelas grandes organizações são muito tímidas. Vamos escutar o que eles têm a dizer, as propostas para solução, eles nunca foram escutados”.


Outra das organizadores, Flávia Freitas Ramos mostra dedicação ferrenha na construção da auto-organização do encontro em que cada um é co-responsável pelo sucesso da iniciativa. “Não precisa de alguém fazendo por ou decidindo por nós. Enquanto rede podemos dar conta de mobilizar e fazer acontecer, porque existe um centro colaborativo”, diz criticando a forma de agir da empresa e da Fundação Renova, responsável por lidar com os atingidos.


O encontro fluiu como rio em sua natureza. Sem muitas amarras, movendo-se em meandros, construindo novos caminhos. Não como rio urbanizado, canalizado, retificado, previsível, buscando o máximo conforto e previsibilidade. A visita à foz, por exemplo, foi um desejo coletivo que não estava previsto na programação inicial. Da vontade coletiva, novos arranjos, dificuldades a superar, como transporte e alimentação. Mas coletivamente e solidariamente se constroem alternativas que fazem o desejo realidade.




Foto: Thaís Henriques Dias


Estiveram presentes delegações de Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Espírito Santo. Mais do que isso, diversas matrizes étnicas: botocudos, Krenak, Pataxó, Tupinikim, Guarani, Payayá, quilombolas, povos de manguezal, pescadores e outros. As mulheres bordadeiras, diversas religiões, as terapias alternativas e medicinas tradicionais, os comunicadores, acadêmicos, estudantes e tantos outros grupos.


Os eixos do encontro foram três: direitos da natureza, saúde coletiva e ancestralidade.


Pensar o Rio Doce como ente vivo e sujeito de direitos responde à uma ética que transcende o antropocentrismo da sociedade ocidental. A relação respeitosa e afetiva dos Krenak com Watu, nome com que chamam o rio, considerado como um ente integrante da comunidade, evidencia essa possibilidade de ir além.


Apesar do crime, Watu continua nascendo limpo nos quilombos de Airões. Nas regiões afetadas, para enxergar futuro, pode ser preciso olhar para trás.

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