Quinta, 25 Abril 2024

Produzindo a própria guitarra a partir do lixo

Produzindo a própria guitarra a partir do lixo

Lincoln Samarina conta que há três anos teve um sonho. Nele, andava pelas ruas com seu violão a tiracolo quando foi parado por um mendigo que pedia esmolas. Colocou a mão no bolso e para sua surpresa tirou dez reais e deu ao homem. Seguiu seu caminho, mas o homem lhe chamou de volta e entregou um presente, uma espécie de violão artesanal. Acordou com a ideia fixa de fazer um instrumento similar, que confeccionou na casa dos pais.


Ao mostrar a um amigo o instrumento que havia feito, ouviu dele: “Que legal, uma Cigar Box”. Foi assim que descobriu que havia feito uma espécie de Cigar Box Guitar. “Foi um instrumento que primeiro eu construí e depois eu descobri a história dele”, conta.


A Cigar Box é uma espécie de guitarra feita de maneira artesanal. Popularizou-se na década de 1930 a partir dos negros das zonas rurais dos Estados Unidos. Na década da Grande Depressão, diante da crise, na dificuldade de ter dinheiro para comprar coisas e sem acesso a produtos importados, usaram caixas de charuto para confeccionar as guitarras, daí o nome Cigar Box (caixa de charuto em inglês). 


Duas ou três cordas de violão, ralos de cozinha, puxador de gaveta e outras coisas reaproveitadas ajudam a compor o equipamento. Para tocá-los, se usa em um dos dedos um “slide”, que desliza pelo braço da guitarra, feito com gargalo de garrafas de vinho ou de cerveja. Foi o primeiro instrumento de ícones do blues como Blind Willie Johnson.



“É uma guitarra muito rústica, você escuta esse som primitivo que não é aquele blues da guitarra elétrica, um blues que vem dos trabalhadores, agricultores”, explica Lincoln, embora destaque que hoje também se produz Cigar Box Guitars elétricas. “Não me considero um luthier, me considero um artesão, quero ser um artesão. Eu construo e ensino a construir de forma artesanal, bem primitiva, bem arcaica”.


Foi a partir da primeira Cigar Box artesanal que fez sem saber, que Lincoln passou a pesquisar sobre o instrumento e esse “blues raiz”, que busca resgatar tanto no trabalho artesanal de produção como em suas performances musicais como artista. Morador de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, ele esteve pela segunda vez no Espírito Santo para ministrar oficinas ensinando como fazer seu próprio instrumento, a convite de Alexandre Brunoro, que o conheceu a partir de um anúncio pela internet. 


A oficina começa ainda antes, na coleta do material necessário para a construção das Cigar Box. “Basicamente a oficina tenta trabalhar com material reciclado, é importante porque trabalha questão da reciclagem, meio ambiente, sustentabilidade. Catamos algumas coisas na rua, cada um trouxe algo de casa e gastamos R$ 10 numa madeireira”. 


No primeiro dia de oficina, o foco é no teórico. Lincoln conta um pouco de ecologia e reciclagem, da história do instrumento e do blues, mostra a guitarra, seus detalhes, toca. A partir do segundo dia, é mão na massa. Cada um começa a montar seu próprio instrumento.



Mas a questão vai muito além de mexer com a madeira.  “A carpintaria e marcenaria lidam com centímetros e a luthieria lida com precisão. Se você errar, o instrumento não vai afinar, não vai dar o tom. Para a afinação do instrumento estar perfeita, tem que ver a angulação do braço com a caixa, a altura do braço em relação ao corpo, coisas relacionadas com precisão mesmo”.


A oficina realizada na última semana em Vila Velha contou com oito pessoas, entre artistas e artesãos, interessados pela sonoridade única e a estética particular do instrumento, além da vontade de produzir com suas próprias mãos. “É uma coisa que representa independência em relação ao mercado de instrumentos. Por que vou comprar um instrumento caro se posso fabricar um?”, pergunta Alexandre.


É o mesmo que pensa Carlitos Cachoeira, outro participante da oficina: “Acho até um tanto anárquico, porque é no estilo ‘do it yourself’, faça você mesmo, numa maneira bem autogestionada". Junto com Amora Gasparini, Carlitos integra o grupo de palhaços e atores de rua La Carta. “Trabalhamos com o linguagem do excêntrico musical, ressignificando instrumentos e objetos”, explica. “Já temos uma finalidade específica para a guitarra que estamos produzindo, que é o espetáculo. O número eram duas pernas de pau e vimos que encaixa”, explica Amora.


Outro que pretende utilizar o instrumento que começou a produzir na oficina é Leonardo Prata, do grupo Trinca Ferro Orchestra. “Eu me interessei porque gosto de trabalhar com madeira, tenho banda num estilo folk, em que tocamos com objetos pouco usuais. Tinha conhecimento da Cigar Box, mas pude me aproximar mais do instrumento”.


Então, não estranhe se encontrar esse instrumento tão particular por aí...

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