sábado, novembro 23, 2024
21 C
Vitória
sábado, novembro 23, 2024
sábado, novembro 23, 2024

Leia Também:

Documentário resgata tragédia que matou mais de 200 índios em Pancas

Por que o homem branco tem sempre que falar pelo índio? Por que o índio não pode contar a própria história? Não teria ele aprendizado suficiente? Ainda hoje predomina a versão, chamada oficial, de que a morte de 233 índios guarani em Pancas, nos anos 40, fora causada por malária. Uma epidemia. Mas, como assim, uma epidemia que só acometeu os índios?
 
O documentário Genocídio Guarani registra o encontro de dois personagens para resgatar um massacre que a história ocultou sob um caso de epidemia. Um é o guarani Toninho Werá; o outro, o jornalista Rogério Medeiros, repórter que desde os anos 70 cobre o universo indígena do Espírito Santo. Logo, também desde lá acompanha o objeto do filme.
 
  

Desde o título o documentário toma sua posição: a de que vê seu fato como um genocídio, uma mortandade, e não como um golpe malfadado da sorte. O lance infeliz, mas do homem branco, executou-o o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ainda nos anos 30 ao implantar uma reserva indígena em Pancas para aldear os bravos botocudos, grupo cuja firme resistência à aculturação semeou a hostilidade dos brancos.

 
Naqueles anos o noroeste capixaba registrava um intenso processo de colonização, tanto ao feitio pomerano – grupos familiares cultivando pequenos pedaços de terra – quanto ao assédio voraz dos fazendeiros da sul. Encontra-se em Pancas as terras mais férteis do Espírito Santo e, em certo momento, os botocudos tomaram conta do Rio Doce. Então o SPI cria a reserva. 
 
Só que além de bons guerreiros, os botocudos são nômades. Não se deixariam confinar, mesmo numa reserva. Saíram. 
 
No Brasil, Uruguai e Argentina a nação guarani concentrava-se numa vasta área no Rio Grande do Sul. Era a República Guarani, constituída por jesuítas e depois devastada por Espanha e Portugal. Os guarani se dispersaram. Um dos traços mais fortes da cultura guarani é a crença de que eles estão de passagem neste planeta, a caminho da Terra Sem Males. Foi atrás dela, um local idílico e abençoado, que eles se puseram após a destruição da república. 
 
Três xamãs e seus respectivos grupos se espalharam pelo Brasil. Enquanto isso, havia um problema: em Pancas, a reserva estava inabitada. Se não fosse povoada, seria considerada terra devoluta, segundo a constituição da época. O SPI então localizou os xamãs e seus grupos (um estava no Pará; um outro, em Sergipe) para assentá-los em Pancas. Cerca de 300 índios chegaram em paus-de-arara.  
 
Seres de caráter dócil, os guarani se estabeleceram pacificamente na reserva. Por outro lado, sabiam que a busca pela Terra Sem Males tinha acabado. Uma vez que a caminhada fora interrompida, o sentido da vida dos guarani, a descoberta desse local abençoado, encontrou um termo. 
 
A essa altura, o grupo da xamã Tatantin-Roa-Retée, que veio a encontrar a Terra Sem Males em Aracruz, onde faleceu aos 104 anos, estava em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro. Anos depois, já na década de 70, ela foi procurada para discutir o ocorrido: mas dona de uma condição religiosa muito forte, vivia reclusa. 
 
Ou seja: nada sabia do envenenamento do Córrego Caboclo, que matou 233 guarani em Pancas enquanto ela buscava a Terra Sem Males no litoral fluminense.
 
A mortandade guarani não foi registrada em nenhum documento. Nem em Pancas, nem em Colatina, os arquivos de saúde registram o fato. Assim a história oficial prevaleceu. 
 
Quando os índios abandonaram as terras, estas passaram à categoria de “devolutas”. Portanto, a burocracia estatal registra qualquer transação de requerimento e venda. Em Pancas, mesmo diante de documentos oficiais, foi difícil arrancar dos pomeranos uma versão da tragédia. É um povo discreto, de organização social isolacionista. A história de anos atrás era como se fosse um segredo.
 
                        

Não surpreende que a obra tenha consumido cinco anos de trabalho. Colher depoimentos consistentes era tarefa das mais árduas. Daí a importância da figura de Werá. Fixado na Aldeia Boa Esperança, esta numa região próxima à divisa entre Rio e São Paulo. Medeiros e Werá uniram forças e geografias em nome da mesma história: um investigando o Espírito Santo e o outro no Rio.

 
Assim encontraram em Boa Esperança um guarani de 86 anos chamado José Bonifácio, que enriqueceu a história com um detalhado depoimento. Bonifácio tinha 16 anos quando deixou Pancas, guiado pelo xamã Capitão Pedro (o que foi encontrado no Pará), cujo grupo habitava uma parte mais alta da reserva. O xamã deixou Pancas e voltou, indo para Paraty e, depois, finalmente fundando sua aldeia. Assim nasce Boa Esperança. 
 
Os pomeranos não ficaram de fora do filme por um feliz acaso. No final de seu governo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou a criação de uma reserva florestal em Pancas. Ambientalistas festejaram, mesmo que a iniciativa previsse a remoção de inúmeras famílias pomeranas, justamente quem há anos preservava a mata local.
 
Um amplo debate constitui-se, mobilizando inclusive o então deputado federal Fernando Gabeira e a então senadora Marina Silva. O projeto da reserva foi reformulado ou, mais especificamente, flexibilizado com vistas à permanência das famílias pomeranas.
 
Os pomeranos são os únicos não-índios do documentário. Para a câmera, contaram a história dos guarani: comprovam o genocídio e refutam a tese da epidemia. São a testemunha de que os índios necessitavam para o levantamento da matança de seus irmãos. 
 
Ainda hoje sombras envolvem a tragédia guarani. A equipe foi a Pancas tentar convencer os fazendeiros donos das terras onde feneceram os guarani a cedê-las temporariamente para uma Cerimônia do Adeus. Eles negaram o favor. Um clima estranho pesou o ar. A Cerimônia do Adeus realizou-se na Aldeia Porã, em Santa Cruz, Aracruz.

Mais Lidas