Texto: Henrique Alves
Fotos: Rogério Medeiros
A senhorinha travava uma luta que parecia vã contra a chuva fria que caía com generosidade. Curvada aos pés do amarelo vivo da sepultura, escondia-se sob a sombrinha, escorando o cabo entre os braços para as mãos se ocuparem em riscar o fósforo e acender a caixa de vela. Era pequena, os cabelos brancos presos com desleixo. O vestido vermelho de bolinhas brancas dava-lhe uma aparência ainda mais frágil.
As circunstâncias desfavoráveis – a chuva, um vento leve, o corpo frágil, o espaço exíguo – pareciam fazê-la mais obstinada. Riscou um, dois, três, quatro, muitos fósforos enquanto a chuva banhava a superfície da sombrinha. De repente o fogo vingou. A idosa depositou a caixa no nicho, ciciou algo entre lábios, empertigou-se e foi embora.
A chuva amainava quando ela deixou o túmulo da cigana Adélia Gomes Kostichi, os passos miúdos evitando as poças e a lama da trilha de paralelepípedo do Cemitério Santo Antônio, em Vitória. Perguntei por que ela viera até ali, naquele dia. “Obrigação. Apenas obrigação”, foi o que respondeu, um tanto arredia. Baixou a cabeça e encerrou-se em silêncio.
Esse sábado (2) foi um típico Dia de Finados: um cinza tingia soturnamente o céu e uma chuva regava tristemente a terra. No Santo Antônio, em especial, também foi um típico Finados para o jazigo mais visitado do cemitério.
Entre 8h e 12h, a cigana recebeu inúmeros devotos. Sim, devotos: este não é um termo exatamente inadequado. Edith Magalhães, uma sorridente senhora de 79 anos, católica, visita a cigana de 15 em 15 dias. Desde os 14 anos. “Todo mundo tem devoção por ela”, diz, simpática, após depositar um ramo de margarida sobre o túmulo.
Balas, moedas, pulseiras, broches, esmaltes, garrafas d’água, lenços e uma exuberância de flores e rosas, naturais e artificiais, se espalham pela superfície do túmulo, uma caixa hermética de concreto pintada de amarelo-ouro.
A cena é comum em dias normais. Os funcionários do cemitério testemunham visitas em qualquer dia, que se multiplicam em Finados, junto com as oferendas.
A dona de casa Maria da Penha Lima foi visitar entes queridos e a cigana. Com uma rosa na mão, chegou, sussurrou palavras breves e deixou um rosa sobre o túmulo. Católica, não sabe explicar sua atitude. Mas revela gostar da cigana. “Dizem que ela faz milagres”.
Marluce Sá (acima), uma senhora que alisa panelas no Galpão das Paneleiras, em Goiabeiras, também é católica e dá explicação semelhante para sua devoção à cigana. “É pela magia dela. A cigana tem magia”. Ela havia acendido velas, mas a traquinagem dos garotos que tiram um trocado lavando os jazigos as apagou.
Um batia o pé no chão para levantar água contra as velas. Meia hora depois Marluce retorna. “Eles mexem com o que não conhecem”, diz numa voz complacente. E reacendeu as velas.
Maria da Penha diz que já ter sido atendida pela cigana. O pedido mais recente diz respeito ao marido, ferroviário aposentado há 13 anos pela então Companhia Vale do Rio Doce, onde entrou em 1976. Hoje a família luta na Justiça por direitos trabalhistas relativos à aposentadoria dele. A leveza do semblante transmite confiança e fé.
O sorriso de Edith ou a tranquilidade de Maria quase sempre dão lugar a fisionomias pesarosas como a da dona Elizabeth Muzzi, que derramou algumas lágrimas enquanto contava sua história.
Servidora pública aposentada, trabalhou como agente penitenciária no Complexo Penitenciário de Viana, numa Unidade de Internação Provisória (Unip) e na Unidade de Internação Socioeducativa (Unis). Não tinha problemas com os internos. Ao contrário: ela diz que era adorada por eles. Mas um acidente vascular cerebral (AVC) interrompeu sua carreira.
Há seis meses, perdeu a irmã, que lhe ajudou a criar os dois filhos. Um atropelamento na Avenida Vitória. Elizabeth parece que ainda não se refez. Ela recorda que, enquanto trabalhava, a irmã, que morava na Glória, em Vila Velha, ia para Caratoíra cuidar das crianças. Há uma década Elizabeth deposita oferendas no túmulo de Adélia; quando chegou, afagou com a mão direita a placa de granito inscrita com o nome da cigana.
Buscava um pouco de alívio para a alma
Aquele amarelo vivo coberto de objetos se destaca facilmente na paisagem do cemitério, em que prevalece o jogo sisudo de preto e branco dos mármores em que os únicos objeto de adorno são alguns crisântemos, lírios ou margaridas, dispostos parcimoniosamente.
Destaca-se também pela localização, praticamente à beira do acesso lateral ao cemitério, atraindo sem esforço a atenção de quem entra ou sai. Enquanto Edith celebrava aos quatro ventos sua devoção à cigana, duas elegantes madames que deixavam o Santo Antônio estacaram para ouvir a conversa. Mostravam interesse. Finalmente, desviaram o caminho e foram ao túmulo, qual turistas. Permaneceram um breve tempo, trocando comentários.
“Olha que trem feio”, disse outra mais tarde ao deparar com o berrante túmulo, também ao deixar o Santo Antônio. “Ela era vaidosa, tomava cervejinha”, comentou, sozinha, surpreendida tanto pela quantidade de acessórios para adorno quanto pelo latão de Skol 550ml, que, no geral, semeava um cenho franzido em muitos transeuntes, habituados à tradição da oferta de flores e rosas.
Um mistério absoluto envolve a vida de Adélia Kostichi. Nos registros do cemitério, a única informação é de que ela foi enterrada em 12 de fevereiro de 1955. Quem deu entrada foi Miguel Kostichi, um parente, provavelmente.
Nas poucas vezes que a chuva cedeu, um grupo formava-se em torno da sepultura. Eram mergulhos solitários em busca de conforto, quando debaixo do céu cinza só há mágoa e desavença.
Homens e mulheres, católicos ou não, se avizinhavam da cigana em passos respeitosos. Uma mulher beijou a rosa vermelha antes de deitá-la sobre o túmulo; outra, olhos cerrados, braços abertos e mãos espalmadas, sussurrava com fervor.
Um casal de motociclistas chegou, capacetes nas mãos, envergando uma pesada vestimenta preta de calça e casaco contra a chuva. Ela permaneceu à distância enquanto ele, gestos silenciosos, tirava flores e uma caixa de velas da sacola. Cumprido o ritual, saíram em silêncio.
“Nós somos muito fracos”, diz Dirce Freitas, o cigarro entre os dedos. Estava com um pouco de pressa, uma carona lhe aguardava. À primeira vista, transmitia serenidade. Mas quando revelou que pedia pela saúde de uma criança, a voz embargou, tremulou. Vacilou. O olhar umedeceu levemente. Não disse mais nada e seguiu caminho.
Ao túmulo da cigana não acorrem somente o suplício de almas desassistidas. O ritual envolve também agradecimento, como atestam a placas em granito com a inscrição Graça Alcançada encravadas na lápide. Morador da Ilha do Príncipe, o encarregado de serviços gerais Leonardo Burim, 26, ficou até as 3h da manhã de sexta-feira (1) na Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos, em Ilha de Santa Maria.
No dia anterior, saíra de casa ir à Vila Rubim para comprar pó de café no Extrabom ração para seu gato. Quando saiu da Fumaral com a comida do bichano, correu, fugindo da chuva. Não teve tempo para reação quando um policial chegou apontado-lhe a arma. Algemado, foi conduzido para a delegacia.
Ocorrera um roubo de carro na região. A vítima acusou-o. Leornado soube depois que, segundo testemunhas, o meliante trajava roupas muito semelhante às dele. “Segunda-feira [4] vou ao Balanço [Balanço Geral, programa da TV Vitória], ao Ministério Público. Não quero dinheiro. Se tiver que ganhar, que ganhar. Só quero restaurar minha imagem. Cheguei aqui e todo mundo está me olhando”, desabafa.
Candomblecista, Leonardo ostenta uma corrente de contas brancas no pescoço. Diz ser conhecido no Santo Antônio, onde vai toda segunda pedir à cigana “saúde, paz e sorte na vida” para si e para os outros. Quando chegou, depositou moedas e advertiu um garoto de olhos ávidos: “Não. Depois que eu for embora você pega”.
Na quinta-feira (31), havia sobre o jazigo uma tigela de barro cheia de bala. No sábado, as balas estavam jogadas a um canto da trilha. Mas a tigela permaneceu lá, vazia, recebendo as águas da chuva. Foi com essa água que uma senhora de trajes humildes banhava o tornozelo esquerdo: ela enfiava a mão na tigela e afagava o local com a mão úmida.
Uma touca preta aprisiona-lhe os cabelos. Usa aparelho auditivo. Anda com dificuldade, em função do corpo volumoso e da topografia irregular da trilha de paralelepípedo. Após dizer palavras que talvez nem ela tenha ouvido, acendeu uma caixa de velas e pousou uma flor sobre o túmulo. Com a mão, banhou novamente o tornozelo esquerdo outras duas vezes.
Era visível uma mancha ali. Indaguei o porquê do gesto. Respondeu entre dentes algo como “izipela”. Erisipela, é o que talvez tenha enunciado. Descobriu a cigana há poucos dias. Quem lhe recomendou? A resposta é vaga: “Foi o pessoal. O pessoal disse que ela faz milagres”.