O branco do rodapé do canteiro central da Rua Itapetininga, no bairro Jóquei de Itaparica, Vila Velha, corria sob a água e uma senhora, pé ante pé, com bolsa e uma grande sacola nos braços, se equilibrava nele.
É preciso cuidado, o que se via nos passos cautelosos e no semblante aflito: toda aquela área sumira sob uma lâmina d’água de cerca de 30 centímetros, uma lagoa amarelo-escura que exalava um odor pestilento, mistura das águas da chuva e do valão do Canal Guaranhus, que corta a região. O branco do rodapé era sua única referência para um deslocamento seguro nas águas turvas.
Ainda nesta quinta-feira (26), diversos bairros de Vila Velha ainda permanecem alagados. A reportagem passou por Parque das Gaivotas e Jóquei. A situação é melancólica, as ruas só permitem o tráfego de veículos altos.
Em Parque das Gaivotas, O dono de uma pizzaria na Avenida Coronel Pedro Maia de Carvalho andava com o filho pelas águas. Ambos com galochas. “A última vez que a gente abriu foi sábado [21] à noite”, diz.
Na mesma avenida, num posto de gasolina próximo ao Supermercado Faé, um homem negro, o rosto todo suado, disse que nunca viu um alagamento tão renitente. “Alagava sim. Mas em algumas horas secava tudo”. O que confere alguma vida ao bairro são os bares: já que a única solução até ali apresentada é esperar a água ceder, homens reúnem-se às mesas para papear e tomar cerveja.
Pouco depois aparece o motorista de um caminhão-guincho, revelando por outro viés a proporção desse caos primaveril: a empresa já rebocou mais de três mil carros desde o início das chuvas.
Em Jóquei de Itaparica o quadro é mais desolador. Bairro eminentemente residencial, ali não há, como em Gaivotas, um supermercado por perto; o mundo comercial estava presente apenas no bar e no restaurante ilhados à beira da Rua Itapetininga. A sobrevivência depende de um enorme ânimo interior que vai combinar força de vontade e resignação.
É exatamente essa combinação que provoca movimento nas águas que engolem as ruas do bairro. Mulheres com sacos plásticos envolvendo as pernas e sacolas pesadas nos braços se arrastam pesadamente na água. Alguns homens, jovens, apenas de bermuda de tactel, caminham desprotegidos. A agitação das águas desfaz um cardume negro e volumoso de girinos que se formara. Parecem bolas de gude com inquietos rabinhos.
Ali, a lâmina d’água parece atingir meio metro. O alagamento é contumaz, as águas vandalizam as casas. Uma já estava sem o portão da garagem: podia-se ver a lembrança de caprichado esforço de paisagismo no canteiro quase submerso de lírios da paz e em solitárias floreiras de parede em madeira. O dono gosta de planta: inúmeros vasos ficaram à salvo da água sobre uma bancada.
Na entrada de Guaranhuns, bairro vizinho ao Jóquei, via-se moradores interditando as ruas com os próprios veículos para impedir a passagem de outros e assim proteger suas residências da invasão iminente pelas águas. No Jóquei isso seria uma estratégia inútil: nenhuma casa escapou. Quem tem um segundo andar, tem melhor sorte que aqueles confinados ao térreo.
Não demora e aparecem botes e caiaques, elementos sempre comuns a Vila Velha pós-borrasca. É a solidariedade trabalhando: com o grupo da igreja, um professor de uma escolinha de futebol saiu da Guarapari para ajudar flagelados canelas-verdes. No caiaque, procurava uma idosa de setenta anos necessitada de água e comida.
Outro barco apareceu com mantimentos e galões de água à procura da casa de uma mulher e seu filho de colo, que estavam há quatro dias dentro de casa. O barco apareceu para retirá-los de casa. “Não dava mais para ficar em casa só com comida e água”, disse o condutor. O do caiaque e o do barco são voluntários.
Moradores isolados contemplam a paisagem em silêncio, o céu nublado refletido no espelho d’água amarelo-escuro. Homens de meia idade sem camisa apenas olham tudo das janelas ou terraços. Às vezes, veem-se pai, mãe e filho sem trocar palavras, corpo apoiado nos parapeitos. Azar de quem é governado por prefeitos cosmopolitas.