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Reportagem especialLaços de família

A presente reportagem é uma história digna de ser contada por se tratar de um filho que viveu 68 anos com um pai que não era o seu e só recentemente veio a saber quem era de fato seu pai biológico. Embora fadada a ser um drama, como tantos outros da mesma origem, acabou diferenciando-se por ter se passado dentro de uma mesma família, debaixo do mesmo teto, com uma enorme e permanente carga emocional diante da possibilidade de vir à tona a versão correta de que o irmão não era o irmão, mas o próprio pai, diferente do layout da paternidade exercida pelo avô.
 
Mas essa revelação chega tardiamente e sem chance nenhuma de recolocar as posições corretas pelo seu campo emocional. Pois quando o filho tomou conhecimento da troca dos pais já havia vivido uma vida inteira com o avô na condição de pai e o pai na do irmão. Os dois também já haviam morrido e o nosso personagem entrado no rol dos sexagenários, estava já com 69 anos de idade e felicíssimo com o pai que o criou e com o irmão que o fez enxergar o socialismo como instrumento de luta político.
 
Os dois foram básicos para a formação do caráter do nosso personagem embora fossem opostos no que refere à atividade e ao estilo de vida. O pai adotivo era um tocador de tropa e o biológico um comunista, com as maiores passagens de suas vidas pela região do Rio Doce, no município de Aimorés, em Minas Gerais, na fronteira com o Estado do Espírito Santo. Pela natureza de suas atividades, fizeram diferentes histórias de vida. Como também veio a fazer a mãe do nosso personagem. Mais um pouco o leitor vai também conhecer a sua história e constatar que ela encaixa-se perfeitamente no modelo de atividade diferenciada.
 
Embora filho de tropeiro, o que sugere um homem rude bruto e de pouca instrução, encaminhou o filho (o pai biológico) no ensino. Ele fez duas faculdades: Farmácia e Direito. A tropa de animais de carga, nessa época (anos 30), era uma atividade econômica relativamente rendosa. Por falta de estradas, fazia a vez do caminhão no transporte de mercadorias e safra agrícola. Tanto que garantiu ao pai adotivo uma posição de destaque na pirâmide social da região. Foi vereador em mais de uma legislatura. Pertenceu ao Partido Social Democrático da época. E era adversário do próprio irmão que foi prefeito pela União Democrática Nacional (UDN). E o irmão foi um do homens mais temidos da região do Rio Doce e do norte do Espírito Santo pelas dezenas de mortes que mandou executar, em favor de suas elites rurais.
 
Já o pai biológico enveredou-se, na ocasião, por um caminho político de extremo risco, se tornou um agente comunista na propagação da luta contra o capitalismo, numa região conservadora e violenta, com permanentes conflitos entre camponeses e latifundiários como resultado de uma ordem social perversa. Ele também foi um compulsivo mulherengo. Homem de serenatas e de conquistas amorosas. Exímio acordeonista, era comumente encontrado animando bailes e festas da região.
 
Mas não foi nessa arena que conquistou a cigana com que viveu um escondido o mais tórrido romance que acabou gerando esse filho de “pai trocado”. Mesmo acostumado à vida de perigo, não deu para encarar esse romance às claras. Ele já era casado e com filhos e ela também tinha um companheiro. Sugerindo que os dois haviam pulado as respectivas cercas das suas relações matrimoniais.
 
Quando o caso com a cigana caminhava para virar um escândalo, surgiu o avô com uma solução um tanto radical para o pai biológico e para a mãe cigana, que aquela altura andava em crise conjugal para causa do filho fora da relação. O avô pegou a mãe, a cigana, e o filho e foi morar em outra paragem. A mudança acabou também dando solução a uma tensa divergência política em que ele vivia com o irmão-prefeito.
 
Resultou no fim de sua carreira política. Mas àquela altura o importante para ele era salvar o neto que estava adotando como filho. Em matéria de filho, ele só teve o pai biológico. Só que para ele essa sua decisão salvava o casamento do filho e libertava uma mulher, discriminada pela natureza de sua origem cigana, de um casamento destruído, que poderia pôr em risco o futuro daquela inocente criança.
 
Foram para Barra de São Francisco, no noroeste do Espírito Santo, onde o avô deixou de ser avô e passou, para todos os efeitos, a ser o pai e o marido da mulher na companhia, formando uma nova família. Com relação ao campo do trabalho, ele teve que se reinventar. O novo local escolhido para viver, já era relativamente servido de estradas, dispensando o transporte por animais de carga. Decidiu mexer com lavoura. Adquiriu uma propriedade agrícola nas imediações da sede do município de Barra de São Francisco. 
 
Viveu com a mãe do nosso personagem até o dia da vinda dele para Vitória. Mas manteve-se ligado no filho. O prelúdio desse desenlace só seria possível pela morte.
 
Mas antes de chegar a ela, o curso dessa história indica à necessidade em dar agora os nome aos seus protagonistas. Sinalizando, de antemão, que não se trata de nenhum drama shakespeariano, por mais que possa parecer. Ele é totalmente nosso. Coisa do nosso sertão. Vamos começar pelo filho, por ser em torno de quem gira todo esse drama. Atualmente ele é o subsecretário de Direitos Humanos do Estado, Perly Cipriano.
 
 
Dono de uma vida política mais que agitada. Quando estudante universitário participou de diretório acadêmico de onde saiu para a União Soviética (hoje Rússia), para aperfeiçoar sua preparação política, destinada à organização do socialismo no Brasil. Entrou na clandestinidade para combater à ditadura militar – pegou cadeia e cumpriu, em regime fechado, 10 anos. Do cárcere saiu para fundar o do Partido dos Trabalhadores (PT) no Espírito Santo.
 
O seu pai adotivo chamava-se Dorico Cipriano. A mãe, Orondina Maria Ramos. O pai biológico, Ramiro Cipriano. Torna-se também necessário revelar a identidade do irmão do pai adotivo e seu adversário político. Que até um determinado tempo seria tio de Perly. Mas, com a correção da pirâmide familiar, passou a ser tio-avô. Trata-se do coronel (coronel da roça) Bimbim. Aquele mesmo que comandou uma organização criminosa no sertão capixaba e na região do rio Doce, chamada Sindicato do Crime. Responsável por muitos mortes (foi objeto de uma reportagem especial minha e de um livro do escritor mineiro Roberto Drumond).
 
Quanto aos seus pais Dorico e Orondina, Perly não se cansa em dizer que eles foram o melhor presente de sua vida. Cresceu cercado de carinho e do amor dos dois. Sem ter levado uma única surra, tanto do pai como da mãe. Levou apenas três chinelas (justas), no dizer dele próprio, por uma covardia que havia feito com um primo chamado Lico.
 
 
 
 
Cresceu filho único da sua mãe. Mas quando criança tinha medo em ouvir dizer que no juízo final todos estariam juntos. Ficava pensando quem, nessa hora, estaria ao seu lado. Dúvida com relação ao verdadeiro pai só lhe ocorreu quando da sua matrícula no ginásio. Exigiram a sua certidão de nascimento. Foi quando constatou que ele não tinha sobrenome. Na certidão estava grafado apenas Perly. Os pais recorrem à Justiça para acrescentar o Cipriano.
 
 
Na cadeia, era um peso a angustia diante da possibilidade de sair a sem encontrar o pai com vida, As notícias que recebia do estado de saúde do pai, era de que sua vida andava por um fio. A angústia aumentava à medida que o tempo passava para o velho pai, sem que ele atinasse para a impossibilidade de ir juntar-se a ele. O pai já havia entrado na casa dos 90 anos. Todo o ano havia uma parente fazendo previsões de que Perly chegaria. E os anos iam passando, mas a esperança de ver o filho serviam de estímulo para prolongar a vida do pai.
 
 
As lembranças que Perly tem da mãe é de uma cigana bem alinhada nos seu trajes reais: de saias coloridas, muitas pulseiras distribuídas pelos braços, brincos reluzentes, anéis espalhados pelos dedos, e lenços coloridos na cabeça, que, vez por outra, cedia o lugar a uma flor. Compondo muito bem com os dentes de ouro que abrilhantava o conjunto.
 
E era figura de destaque num terreiro ligado à religiosidade afro em Barra de São Francisco. Respeitada na cidade por seus poderes inerentes à sua relação com o sobrenatural. Quando ela morreu, Perly ainda se encontrava na antiga União Soviética. E soube de sua morte por uma carta do cineasta capixaba (já falecido) Toninho Neves, que estava em Kiev, na Ucrânia. Por coincidência, era data de aniversário da Revolução Soviética e ele se encontrava em plena celebração. A notícia o fez festejar o aniversário da Revolução Soviética chorando a morte da mãe.
 
 
E foi nessa hora que veio a lembrança da sua partida de Barra de São de São Francisco para fazer universidade em Vitória. O pai, Dorico, chorando e a mãe estrilando com ele: “Que isso, homem! O nosso filho está partindo para o bem do seu futuro. Eu estou é muito contente. Vai com Deus, meu filho.”
 
Se ele não teve oportunidade em despedir-se da mãe, com o pai foi diferente. Pois o pai aguentou alguns anos para proporcionar uma despedida à altura da vida de afeto e de amor que levou com o filho. Assisti a cena majestosa desse encontro final. A expressão da vitória no olhar do pai e de espanto no Perly ao dar de cara com pai agonizante em cima de uma cama. Num gesto lento, Perly abaixou-se para beijá-lo. O pai encontrou ainda forças segurar as mãos do filho. Olhando bem nos olhos de Perly, deu por encerrada a sua passagem pela terra: “Agora posso morrer em paz. “
 
Morreria alguns meses depois.
 

Refazendo a árvore genealógica
 
Quem desvendou essa história do pai, que confirmei com Perly, foi a sua mulher, Regina. Na hora em que ele botou o olhos no Dorico e no Ramiro desconfiou que não era o Dorico o pai, e sim Ramiro. Juntou-se a um dos filhos do Ramiro, o Raul. Que tinha a incumbência de tomar conta do avô Dorico e era filho do Ramiro, cuja dúvida com relação à paternidade não existia. Costumava dizer que Perly não era o seu tio e sim o seu irmão. Morreu com essa certeza.
 
A certeza do Raul despertou em Regina a ideia em tocar para frente a investigação sobre a paternidade de Perly. Puxa para um lado, puxa para o outro, e ela acabou chegando em mim e falou de sua desconfiança. Não tendo como evitar, confirmei que já sabia dessa troca desde os anos 70, quando andava por Barra de São Francisco pesquisando a revolta do Cotaxê.
 
Regina cobrou porque eu não tinha contado a história para o Perly. Respondi que tratava-se de vida pessoal. E que tinha aprendido que vida pessoal é pessoal.
 
Bom. Regina foi parar em Belo Horizonte onde moravam cinco filhos homens e uma filha mulher do Ramiro. Daí para o exame de paternidade foi um pulo. Não deu outra: Ramiro era o pai biológico. De repente, seis sobrinhos de Perly passaram a ser seus irmãos. Seus filhos Raoni e Yure deixaram de ser netos do Dorico e passaram a ser bisnetos e os seus primos viraram tios.
 
Nota do repórter: Desculpe-me Perly, mas não poderia deixar passar em branco uma história de vida dessa.

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