Antes de responder se o BRT é tecnologia adequada para as características físicas de Vitória, a professora Martha Campos, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), evoca uma velha e procedente questão, sempre levantada por urbanistas respeitados: como queremos viver em Vitória?
Ela traça um quadro desalentador a partir de um ponto específico do projeto de vias exclusivas para ônibus do governo Renato Casagrande. “Existem estudos que mapeiam as zonas mortas no entorno dessas estruturas viárias elevadas, o entorno imediato de um viaduto quase sempre se esvazia, destrói ou reduz a vitalidade dos usos das edificações e dos espaços públicos (de ruas e praças) em suas imediações, entre outros danos para a vida cotidiana das cidades”, afirma.
Martha classifica de “ideia fora do lugar”, a ideia de “BRT com viadutos e pontes”.
Ainda mais importante que projetar o impacto das intervenções a partir de um traçado físico específico – ruas estreitas, interseccionadas e dimensões acanhadas – é reafirmar as particularidades que dão aura única e irreproduzível ao local.
“Vitória é formada por estruturas urbanas que articulam seu ambiente construído (traçado urbano e edificações) e natural (hidrografia, vegetação e relevo) numa harmonização rara. Entre perdas e danos ainda temos um patrimônio urbano e natural excepcional”, pondera.
O problema não está apenas no BRT em si, com suas pontes e viadutos. A professora lembra que no novo século cidades mundo afora se reconciliam com o transporte coletivo, dado o fracasso do carro como signo de mobilidade. Ok. Bem diferente é fazê-lo a qualquer preço.
“Somos moradores de uma cidade de fundação colonial, com frações do território remotíssimas, de valor histórico cultural imensurável. Isso não é pouco. É tanto que não se mede, ou se atribui valor e protege ou se destrói”, diz. “Ou as políticas públicas de transportes valorizam e protegem as cidades ou as destroem. Isso depende mais do conceito que se quer de cidade e menos da tecnologia a ser adotada”, prossegue.
No sentido inverso ao que aponta no BRT, ela dá um exemplo das chamadas “práticas urbanas criativas”, práticas de microplanejamento que agem em microescala: os projetos ciclísticos/cicloviários, surgidas a partir de apropriações de espaços e demandas coletivas específicas. Aqui, já que falamos de bicicletas, Vitória tem exercido bem tais práticas, embora infelizmente nem sempre com êxito. São ações que partem sempre de baixo para cima.
Preservar o patrimônio paisagístico e territorial de Vitória não significa submeter-lhes a um congelamento temporal. A dinâmica de uma cidade é a mudança, e não a estagnação. “Se trata sim de proteção das permanências, a luz de certas mudanças reconhecidas como importante por aqueles que vivem e usufruem deste lugar, presencialmente ou não. Enfim, é preciso levar o urbanismo adiante e não retroceder”.
É sob esse prisma que ela traz à tona os casos dos armazéns do Porto de Vitória e da Praça do Cauê quando analisa de impactos simultâneos à paisagem e ao uso de território. “Defendo a permanência dos armazéns do porto a despeito do BRT. Não é um evento novo, se trata de uma decisão adiada, que se prolonga e continua a mercê de interesses absolutamente conjunturais”.
Martha engrossa o grupo que acha que o BRT reforçará a característica de mero corredor de passagem de Vitória. Sempre com a questão primordial na cabeça – que cidade queremos hoje e no futuro? – ela desconfia dos bons dividendos do projeto capixaba ao privilegiar a circulação de veículos sob rodas. É pobre como solução.
“Hoje o BRT tal como proposto, hierarquicamente mais importante (no âmbito dos investimentos e enquanto intervenção de macro reestruturação viária) que os demais modos de circulação da cidade, é absolutamente danoso”, critica.
Outro equívoco é, juntamente, adiar a discussão sobre a intermodalidade. “É preciso pensar a intermodalidade agora, como matriz conceitual, a partir da qual seja possível explorar o que se tem e o que se pode modernizar. Temos que circular entre distâncias menores, andar mais a pé, de bicicleta, de barca, de VLT (e até de BRT), desde que se tenha como meta minimizar os impactos que a vida urbana gera no cotidiano”.
“E isso não está pronto. É preciso inventar”, destaca a professora.