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Reportagem especialSobrevivi

Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Porã
 
Foram 1.140 transfusões. César Toledo, o pai, ainda lembra a franqueza do médico: “Você quer o número? Eu dou. Dou 15% de chance de ela sobreviver”. A filha era um leito transbordante de hemorragia. “E se ela escapar, subir para a UTI, vai morrer por infecção generalizada”, prosseguiu. Mas Paula contrariou o doutor. Há uma explicação racional?
 
“Não. Racional, não. Porque eu fui muito machucada, quebrada, esmagada. Além do atropelamento, do arrastamento, eu tive esmagamento. Entre o tórax até o joelho. Não tinha nenhuma chance. Nenhuma”. Na maca do pronto-socorro, Paula ouvia o rumor do próprio sangue escorrer na bacia, depois gotejar, pingar e finalmente cessar. Ela não sabe quantas vezes perderia todo o sangue do corpo novamente, mas seriam muitas.
 
Em 30 de setembro de 2008, uma controladora de carga do Terminal Especializado de Barra do Riacho (Portocel), em Aracruz, deu entrada no pronto-socorro do Hospital Metropolitano, na Serra. Eram 11h20, segundo o prontuário. Onze toneladas tinham desfigurado a face direita do corpo da mulher: nove de uma empilhadeira e dois de um fardo de celulose.  
 
Quando chegou, só se via o rosto; o resto era uma superfície empapada e vermelha. Bacias foram dispostas ao redor dela para drenar o sangue e não inundar o centro cirúrgico – mais tarde Paula saberia que uma enfermeira auxiliava a drenagem com uma singela canequinha.
 
Um a um, 20 médicos especialistas acorreram para examinar o caso mais grave do Metropolitano naquele dia. Ortopedista, cardiologista, cirurgião vascular, cirurgião plástico, cirurgião geral…. A mesma enfermeira também recordaria: “Paula, 20 especialistas compareceram ao centro cirúrgico quando você deu entrada. E um a um foram saindo”. 
 
Firmou-se uma espécie de consenso tácito de que seria inútil qualquer esforço para recompor aquela massa úmida e amorfa em que mal se distinguia onde estava o quê – o umbigo, por exemplo, onde estava o umbigo de Paula? Na região entre o tórax e o joelho desenhou-se um mosaico horripilante de ossos, vísceras e músculos. Houve desmaios – médico, enfermeiro, técnico. 
 
Com as mais elevadas intenções, um doutor incumbiu a enfermeira da canequinha: “Segura na mão dela. Em 15 minutos ela parte”. 
 
Os 15 minutos se passaram, assim como os 20, os 30. Paula resistia e resistia bem. Não perguntei se nascera com ela a serenidade com que me desenrolava sua história – a voz suave, uma expressão sem grandes arqueares de sobrancelha – mas tal era o clima. 
 
O que, no entanto, não deixa de se ser intrigante. Mostrava-se lúcida desde a chegada. Falava naturalmente com a enfermeira enquanto esta lhe amparava a mão. Mas não lembra o que falou, apenas da advertência da enfermeira: “Paula, para de falar um pouquinho”, como que protegendo os últimos fiapos de vida da mulher que velava. Disso é o que Paula mais ri quando conta.
 
Ademais, ao entrar no hospital, deu com os pais e acenou com um joinha, lembrando até que a mãe lhe reconfortou, “Oi filha, estamos aqui”. E ouviu todos os atestados de óbito exarados verbalmente pelos médicos. Inclusive o dos 15 minutos. 
 
Quando retornou dois terços de hora depois, o médico não viu apenas a mão de Paula ainda entre as da enfermeira, como viu também uma chama de vida ainda ardendo sem quaisquer expedientes. Daí a tenacidade e o espanto destas palavras: “Essa menina não vai morrer. Tem uma ordem acima da gente que não vai deixar ela morrer. Agora somos nós que não vamos deixar ela morrer”. 
 
Convocou toda a equipe de volta. Paula foi envidada para a unidade de tratamento intensivo.
 

Controlado pela Aracruz Celulose – Fibria (51%) e pela Cenibra (49%), Portocel iniciou as operações em 1978. É o único porto do Brasil especializado no embarque de celulose, exportando cerca de 70% da celulose produzida no Brasil. 

 
O posto lhe assegura números superlativos: em 2012, o terminal escoou quase seis milhões de toneladas de celulose para exportação. Desde 78, mais 60 milhões de toneladas saíram do porto rumo ao mercado internacional. Além da Aracruz Celulose e Cenibra, outras empresas do setor utilizam o terminal.
 
Paula estava há 46 dias na empresa. Antes, fizera um ano e meio de estágio. Fazia Engenharia Mecatrônica em uma faculdade particular e estava na reta final; o estágio era pré-requisito para se formar, coisa que em função do acidente ainda não ocorreu: só falta apresentar o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
 
Em dezembro de 2008, a Aracruz abriu um concurso interno para preenchimento de vagas em diversos cargos. Foram abertas 10 vagas de controlador de carga, para as quais 33 pessoas se inscreveram. Apenas um  concorrente passou: uma ex-estagiária, que entrou em um meio predominantemente masculino.   
 
Foram 45 dias de trabalho e muito aprendizado. Paula operava por escala, trabalhando seis dias e folgando quatro. Criou boas expectativas com o emprego: falaram-lhe que, como ela tinha se saído muito bem nos testes, se encaixava no perfil traçado pela empresa para subir no cargo.  
 
Em seu quadragésimo sexto dia de trabalho, Paula entrou às 8h; 15 minutos depois, sairia dentro de um furgão, em cima de uma maca.
 
Grosso modo, a função do controlador de carga é fiscalizar a movimentação da carga dentro do terminal. Naquela manhã, Paula recebia caminhões com celulose da Veracel, acompanhando a estocagem no armazém, tarefa realizada por operadores de empilhadeira orientados pelos controladores de carga: “Chegou o caminhão X, com a carga Y, que será colocada no armazém Z”.
 
Paula foi interrompida por um caminhoneiro enquanto orientava os operadores. O homem buscava uma ajuda simples: chegara às quatro da manhã e ainda esperava alguém para retirar a carga do caminhão. Estava esgotado. Pelo rádio, ela convocou um colega controlador de carga para socorrê-lo. “Muito obrigada minha filha”, agradeceu o caminhoneiro. Paula foi retomar suas tarefas. 
 
Assim que se virou, alguma coisa lhe atingiu pelas costas. Sentiu uma pancada muito forte na cabeça. Um movimento instintivo a fez virar a cabeça e olhar para cima, como que para ver de onde partira a pancada e, assim, talvez, safar-se. Não houve tempo: a coisa lhe jogou brutalmente contra o chão, o rosto bateu com força no cimento e o sangue começou a fugir pelo nariz. 
 
A coisa tenta avançar sobre o corpo de Paula, estatelada e machucada, força a passagem, mas não consegue vencê-lo. A máquina emperrou. E quando a máquina emperrou, ela teve noção de tudo: viu sobre si a empilhadeira, ameaçando destroçá-la por completo. 
 
Ao mesmo tempo, uma vez que o veículo apresentava dificuldade para seguir, ela até pensou que o operador suspenderia o movimento para verificar por quê. Não. A máquina insistia, forçava, e Paula gritava ao operador para que parasse, ouvia o trec dos ossos, sentia o peso implacável da máquina sobre a coxa, os glúteos, a bacia, quase atingindo a coluna. 
 
O operador não via nem ouvia nada. Simples: primeiro porque um fardo de celulose mede 1,80m de altura por 1,60m de largura, sem contar que é içado a mais 45cm pela empilhadeira. O certo, tanto por observância às normas de segurança quanto por bom senso, seria conduzir a máquina de ré – o que não ocorreu. Segundo porque ali protetor auricular é equipamento obrigatório. 
 
“Para a máquina porque você está matando a menina. Para e não desce a carga”, gritou um homem. Era justamente o exausto caminhoneiro que minutos antes Paula ajudara. A máquina parou e fez-se o alvoroço. Colegas acorreram; houve quem sucumbisse à cena, por vômito ou desmaio. No desespero de socorrer a colega que oscilava entre a vida e a morte, alguns tentaram levantá-la, sem saber que naquele estado um osso solto vira uma faca dentro do corpo.
 
Estirada no pátio do terminal, Paula não sentia dor, chegava a pedir calma aos colegas que a cercavam: é apenas uma perna quebrada, dizia a si mesma, sem saber que, exemplo, o acetábulo vazara pelos glúteos. Não foi socorrida por ambulância nem por equipe médica. Ela nunca viu isso no porto. 
 
Foi então despachada para o ambulatório da Aracruz Celulose, distante quatro quilômetros do porto. Lá o médico perguntou nome e função, talvez para testar sua lucidez. Ela respondeu. O médico abriu sua calça jeans. “Aí houve desmaio para todo o lado”, ri. E gritos. Reações tão contundentes aguçaram sua curiosidade, mas não a deixaram apurar o que a calça escondia. 
 
De repente, apagou. Só despertou dentro da ambulância da empresa, sacolejando aos quebra-molas de Jacaraípe.  
 

Hoje Paula Passos Costa Toledo Piza rememora tudo numa voz afável, pincelando certas passagens com uma autoironia doce, emoldurada pelo sorriso de dentes grandes e alinhados. Anda normalmente, só não pode correr. Acha que seu caso foi uma vitória, que compartilha em testemunhos aos seus irmãos da Igreja Maranata. 

 
No final da entrevista, realizada no apartamento dela, um fisioterapeuta chegou para mais uma sessão. Paula faz fisioterapia de segunda a sexta, motora, respiratória (perdeu uma parte do pulmão esquerdo e, de dois anos para cá, do direito) e linfática (imperiosa, após mais de 60 cirurgias). E quatro vezes por mês realiza consultas médicas.
 
Tal tem sido sua rotina após três meses de UTI e um em quarto de hospital – sete dias em coma profundo, quatorze em coma induzido e o resto vivendo vegetativamente, jazendo na cama em repouso absoluto. Pelo corpo espalhavam-se 18 bombas de infusão para injeção de soro e medicamentos no frágil organismo, compensando a precária circulação sanguínea. Seu corpo também acolheu aparelho de traqueostomia, quatro fixadores, dreno de tórax e hemodiálise por dois meses.
 
O abdômen permanecia aberto para a lavagem dos órgãos. Para os médicos, era o expediente mais prático para contornar uma hemorragia que não conseguiam conter e assim evitar um corte e costura a todo momento.

Em 22 de janeiro de 2009, Paula voltou para casa. Final feliz? Nem tanto – apesar de ter contrariado uma previsão inicial de passar um ano e dois meses na UTI.

A alta foi antes uma estratégia para evitar o contágio por bactérias mais resistentes em meio hospitalar. Mais seguro seria realizar os procedimentos, como os curativos, na própria casa, resguardada por todos os cuidados médicos de um hospital. Isso iria requerer um serviço chamado Home Care (assistência médica domiciliar), prestado por empresa particular. Paula minguou 20 quilos. Retornou usando fralda descartável (os órgãos genitais foram comprometidos) e pontilhada de feridas e escaras (úlceras de pressão).

 
Aqui entraria o zelo de uma empresa por sua funcionária. Mas a família sentiu empecilhos começarem a brotar à sua frente quando solicitou o Home Care junto à Mediservice, prestadora de saúde da Aracruz Celulose. Primeiro vinha a justificativa de que ela poderia dispensar o serviço. A família insistia. Depois solicitavam documentos. A família despachava. Quando diziam que a documentação esta ok, vinha mais esta: a liberação do serviço dependia de autorização da empresa de celulose.

Exemplo: no último dia 21, a Portocel enviou um documento a Paula em que comunica “o encerramento dos serviços contínuos do técnico de enfermagem domiciliar a partir de 25/03/2014”. Ao final, o documento ainda traz uma pérola: “Esclarecemos que a concessão de tais serviços está sendo feita em caráter excepcional e personalíssimo, ou seja, sem reconhecimento do mérito da obrigação”. Ou seja: o que a Portocel faz por Paula é nada mais que um delicado favor.   
 
Segundo Paula, a recomendação contradiz as recomendações prescritas por seu médico pessoal – as do documento acima são assinadas pelo médico do trabalho da empresa, que mal sabe quem ela é. Uma máquina dentro sua coxa direita expande a região, inteiramente religada. Há necessidade de acompanhamento, não apenas pelo risco de rejeição ao aparelho, mas também pela questão do funcionamento vascular. Sem contar as sequelas de pulmão, coração, os anestésicos e a ingestão de antibióticos, que podem comprometer o comportamento de alguns órgãos.
 
Esse desgaste acontece tanto com o Home Care quanto com cirurgias. No final, em casos anteriores, a Aracruz sempre cedia, embora ainda hoje haja ameaças de suspensão do serviço de atendimento domiciliar.
 
Paula não pode trabalhar. Sobrevive com cerca de R$ 1.300 que recebe do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ela também era empresária: comandava um negócio de prestação de serviços elétricos para grandes empresas. O acidente a afastou e a empresa acumulou multas na Receita Federal, que César pagou. Teve que ser fechada.
 
Tem um filho de nove anos para cuidar e, ainda, aluguel, condomínio, água, luz, internet, gás, TV a cabo, escola e gasolina: tudo isso é o pai quem cobre. Ela solicitou pagamento integral do salário – cerca de R$ 5.200 – já que não houve quebra de vínculo empregatício. A legislação trabalhista, defende, lhe garante esse direito.  
 
Pouco depois de sua filha dar entrada no Metropolitano, um dos diretores confidenciaria a César: “Tenho 20 anos de especialidade nesses casos e te digo que a cada 10 pessoas que sofrem fratura de bacia, nove não resistem”. 
 
Mas Paula resistiu, assim como resistiu seu irmão Victor. Em abril de 1998, um acidente chocou o Espírito Santo: o portão de 250 quilos da paróquia São Francisco de Assis, em Laranjeiras, Serra, despencou em cima do menino de sete anos. “Ele bateu com a cabeça no meio-fio e um ferro entrou na cabeça dele”, contou César a Século Diário. 
 
Pela filha, César reviveu toda a guerra que o descaso da Igreja Católica do Espírito Santo lhe impusera 10 anos antes: não saber de onde tirar dinheiro para assegurar a sobrevivência e subsistência da filha. Além da alma devota, César é corajoso. Em nenhum momento se curvou, nem aos pecados do poder religioso, nem aos do poder econômico. E sempre acreditou em forças superiores.
 
No hospital, sem conseguir conter a severa hemorragia, chegou-se a preparar a bandeja de amputação para retirar a perna direita de Paula. Uma doutora veio a César: “Só quero fazer uma pergunta a você: a perna ou a vida?”. Ele ergue o queixo. “A vida”. A doutora então lhe entrega um documento, uma espécie de termo de ciência do procedimento. Ele não assinou.

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