Texto: Henrique Alves
Reproduções: Leonardo Sá/Porã
Posição nasceu fazendo uma pergunta: “Será POSIÇÃO um jornal diferente?”. Era 26 de outubro de 1976. A melhor reposta não foi a que veio a seguir, um tanto retórica: “Sim. Porque é um jornal de jornalistas. E não de um industrial, de um empresário”. A melhor resposta veio já à última página da edição de estreia.
“De repente, há menos de 10 anos, o pequeno município capixaba de Aracruz começava a sentir a presença tentacular de um grande empreendimento. Surgiram tratores, surgiram corretores de terras, surgiram senhores respeitáveis em grandes carros. E surgia o desmatamento, o desequilíbrio ecológico com a predação”, dizia a matéria Aracruz Celulose: o eucalipto contra o homem.
Logo abaixo, Barra do Riacho vai acabar contava a história do pescador Abdon Pereira, morador há 31 anos do distrito de Aracruz e uma vítima entre tantas da miséria que a chegada do eucalipto impôs aos nativos.
Sim, Posição foi um jornal diferente. E não esse diferente eufemístico, tirante a neutro, inodoro e insípido. Ser diferente, no caso de Posição, significava ser contra a ditadura militar. Foi diferente em um tempo e uma época em que ser diferente exigia audácia – sobretudo para um jornal e, ainda mais, bem mais, para um jornal alternativo, caso do personagem desta matéria.
Era um tempo em que os jornais da terra estavam comprometidos com os militares. O Grupo João Santos, proprietário de A Tribuna, tinha em seus quadros uma das figuras mais importantes do regime, o marechal Cordeiro de Farias.
A Gazeta, embora tenha apoiado as reformas de base no curto período do governo João Goulart, imediatamente aderiu ao regime após o golpe, a ponto de substituir um diretor-jornalista por um general, Darcy Pacheco de Queiroz, membro da família proprietária do jornal.
As trilhas do tempo nem sempre são tortuosas: em termos socioeconômicos, muito do que se vê no Espírito Santo de Posição, ressalvando-se naturalmente o modelo político, se vê no Espírito Santo de hoje. Bebíamos e ainda bebemos a ambrosia dos grandes projetos industriais. A diferença é que lá a sensação tinha ainda a doçura e o frescor das novidades.
Ao mesmo tempo nem parece que quase quatro décadas separam a inauguração da Quarta Usina da Samarco, quinta-feira (3) em Ubu, Anchieta, do parágrafo final desta matéria de julho de 77: “A Samarco Mineração […] está apenas fazendo em Ubu, Anchieta, Espírito Santo, aquilo que centenas de poderosas multinacionais fazem, diariamente, em centenas de países subdesenvolvidos. E sempre impunemente”.
Por sorte, no mesmo dia, José de Anchieta era canonizado no Vaticano. Agora que o beato é santo, talvez haja saída.
A questão ambiental era uma das frentes a que Posição se lançava e que compunham o “ser diferente” do jornal. Está ali estampada a história sórdida da instalação e expansão da eterna Aracruz Celulose (hoje Fíbria) em Aracruz ; está lá o futuro sinistro que chegara com o Porto de Tubarão; estão lá os proféticos alertas de Augusto Ruschi.
Um desenvolvimentismo alegre e maroto vinculava as grandes plantas industriais à redenção da economia capixaba. Os corolários ambientais e sociais… Bem, se ainda hoje eles sofrem uma solene indiferença, imaginem há quarenta anos.
Daí que Posição alvejasse o poder político formal – sobretudo os prepostos do regime, como os governadores biônicos Cristiano Dias Lopes e Élcio Álvares – e o informal – as elites capixabas, representadas em figuras como Otacílio Coser ou, piada do jornal, Graciano “Fundap” Espíndula. Quando tratava desses assuntos a coragem e a inteligência de Posição fulguravam no fundo escuro da ditadura.
A terceira edição, de dezembro de 76, trazia matérias como Tubarão: siderúrgica onde a pressa é inimiga da urbanização e O escândalo monstro do Dr. Cristiano. A mesma tacada atingia o ufanismo desenvolvimentista da ditadura e um títere dos militares e das elites locais.
Homens sem terra, terra sem homem, de outubro de 77, revela a tática pouco educada pela qual a Aracruz Celulose expandia suas terras e alimentava a concentração fundiária do Espírito Santo, onde 10% dos proprietários detinham 52% da área rural capixaba.
“A tática utilizada pela Aracruz Celulose para abocanhar as terras dos lavradores indefesos é quase sempre a mesma. Um grupo de jagunços – normalmente comandados pelos tristemente célebres coronel Argeu e tenente Merçon – visita um lavrador que tenha a posse de uma área de ‘terra devoluta’. Ameaça-o de morte e oferece uma quantia irrisória pela posse da terra”.
Os dois personagens, Leivino e Paulo da Penha, este de Aracruz, aquele de São Mateus, conheceram a tática. Lavradores de parca instrução e poucas posses, perderam para o eucalipto aquilo que lhes garantiam o pão de cada dia.
Veículo quinzenal, Posição viveu pouco, apenas três anos, entre 76 e 79. Era editado por Jô Amado e, na fase inicial, tinha dois diretores de redação, Rogério Medeiros e Pedro Maia (recentemente falecido). Ter dois diretores responsáveis era antes estratégia que excentricidade.
Visitas à Polícia Federal ou ao 38° Batalhão de Infantaria para, digamos, elucidar algum material noticioso eram praxe. Na falta de um, sempre haveria o outro diretor e, assim, não ficaria descoberta a lei que exigia a existência de um responsável pelo veículo.
É que Posição, além de tudo, também se metia a cutucar diretamente a ditadura. Em abril de 77, O Super Censor expunha os faniquitos de Alberto Monteiro, advogado e assessor de Segurança da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Monteiro via conspiração até na própria sombra e ainda mais em palestras, bailes estudantis, recepções de calouros. O Super Censor também dedurava ao regime os estudantes “subversivos”.
Uma rápida pesquisa no Google nos diz que, certo dia da década de 40, o jovem Otacílio Coser vagava pela Praça Oito, no Centro de Vitória, quando foi abordado por um senhor chamado Lauro Laperriére, então um dos principais corretores de café do estado. O homem perguntou o que o garoto fazia ali; o garoto procurava emprego; o homem empregou o garoto.
Como sabemos, anos depois o garoto, que hoje é um senhor, criaria um colosso empresarial chamado Grupo Coimex.
Otacílio Coser, um mestre do golpe, de março de 77, não pintava assim tão liricamente o perfil de um dos homens mais poderosos que o Espírito Santo já produziu. A matéria conta uma historia, assim, um pouco diferente.
“Pouco tempo passou antes que o velho Laperriére sofresse um ataque cardíaco, vindo a falecer logo depois e deixando seus negócios praticamente nas mãos de seu fiel auxiliar, Otacílio Coser. Foi a sua vez de ir à forra da humilhação que sofrera pouco antes: ele simplesmente açambarcou os negócios da família Laperriére a ponto de, quando procurado pela viúva para um acerto da situação, mostrar-lhe que até a última mesa e o telefone da firma já haviam sido vendidos para o pagamento de inexplicados débitos”.
E olha que esse foi apenas o introito do texto: o grande empresário, o visionário, arrojado, inovador Coser, ou, singelamente, o “seu Otacílio”, foi retratado em cinco casos.
O das Guias Frias (“transações ilícitas de ‘guias frias’ para exportação de café), o do Café Pintado (revenda de café já vendo e subsidiado ao Instituto Brasileiro do Café – IBC – o que lhe valeu inquéritos instaurados pelo instituto e Justiça Federal); o do Contrabando (de café, no litoral de Aracruz, nos anos 50, caso confiramdo, segundo o jornal por antigos funcionários do fisco estadual), e o do Arsenal (“processado pela Justiça Federal por armazenamento irregular de um arsenal de armas de guerra).
O bigode fino e a ampla testa do visionário empreendedor estampavam a capa de Posição 8 sob a manchete Procura-se: os processos contra Otacílio Coser.
O primeiro governador indicado pelo regime militar tinha uma firma de importação e exportação que operava pelo finado sistema Fundap – cujo funcionamento foi autorizado pelo o próprio em maio de 70.
Aliás, engrenagem e suposta eficiência do Fundap para o desenvolvimento regional foi questionada em larga matéria de Posição de julho de 77, sob o sugestivo título de Me dá um dinheiro aí. “É muito dinheiro, quase de graça, para poucas empresas e poucos resultados no programa de desenvolvimento regional”.
Mas falávamos de Cristiano Dias Lopes Filho. Em dezembro de 76, Posição noticiava um pecado da firma ex-governador. O título: O escândalo monstro do Dr. Cristiano. Interessante notar que, acima do primeiro parágrafo, vinham duas palavras em modo de verbete de dicionário: Duplicata e Estelionato. E assim finalmente florescia a matéria:
“Para se entender em pormenor o escândalo do estouro de um bilhão de cruzeiros novos na praça de Vitória pelo qual é tida como responsável a firma Irmãos Ferreira S/A Exportação e Importação, de propriedade do ex-governador Cristiano Dias Lopes Filho e três cunhados seus, é fundamental compreender, em linguagem leiga, a gravidade das acusações que se esconde por trás do hermético jargão jurídico. Ora, as acusações principais contra essa firma são as de derrame de ‘duplicatas frias’ e ‘estelionato’. Há outras, mas essas são as principais”.
Posição tratava de temas sérios, mas não era sisudo – afinal, se era época de prisões e torturas, o era também do humor subversivo d’O Pasquim. Naquele contexto, um riso dizia mais e melhor que páginas de circunspeção.
Ou seja, sempre havia espaço para se tirar um sarro de alguém, especialmente se este fosse poderoso. Veja-se o hoje deputado estadual Élcio Álvares (DEM). A Excelência ainda deve se lembrar de uma carta que Posição lhe enviou em agosto de 77. Ei-la:
“Sr. Governador, vimos por meio destas mal traçadas linhas requerer pagamento no valor de Cr$ 150,00 (cento e cinquenta cruzeiros), referentes aos exemplares de nosso jornal requisitados pelo senhor, sr. governador, para fins não declarados. Na certeza de que o senhor, sr. governador, conhecedor das dificuldades que enfrentamos – editando o único jornal independente do Estado – saberá dar a devida atenção ao nosso requerimento, agradecemos antecipadamente a sua atenção. Mui respeitosamente. Jornal Posição”.
A história é a seguinte: no dia 31 de julho foi um domingo de sol e de festa no Em Afonso Cláudio. Na pracinha, o palanque coalhado de autoridades esperava a chegada do governador. E na mesma pracinha encontrava-se à venda a edição 17 de
Posição, que continha uma certa matéria:
Élcio Álvares, campeão de impeachments.
“Pela segunda vez em menos de um ano, o governador do Espírito Santo foi obrigado a enfrentar um pedido de ‘impeachment’, recorde pouco invejável na carreira de um político”.
Na edição seguinte,
Violência revelaria um certo fleuma afonsoclaudense ante o chefe do Estado: “Exatamente às oito horas, chegava o governador Élcio Álvares […]. Nesse momento, o eufórico locutor dava início à sua esfuziante narração: ‘E aí vem o governador Élcio Álvares. Vamos todos cantar um parabéns para a sua administração’. Ninguém cantou”.
A carta acima foi reproduzida ao final da matéria: naquele domingo de sol e de festa Élcio Álvares ordenara a apreensão de 30 exemplares de Posição. O texto também reproduziu gorjeios do governador que o deputado ainda lança pelo ares do Plenário Dirceu Cardoso: “Infeliz do líder que julga ser o dono da verdade. E o governador do Espírito Santo, uma criatura sensível, é um homem que de forma alguma tentou, em qualquer momento impor sua verdade. Ele é em todos os momentos um autêntico professor das liberdades democráticas”.
Se Élcio é ou não um autêntico professor das liberdades democráticas, pouco importa. O importante mesmo é isto: ele é bom pagador?