A princípio, a ideia era traduzir o romance A Crônica de Malemorte para o inglês arcaico e transpor a história do contexto medieval português para o inglês. Nesse processo, a história foi crescendo e se tornou uma trilogia, logo depois, surgiu a necessidade de traduzi-la novamente para o português. Assim nasceu A Folha de Hera, que agora chega ao seu terceiro e último volume.
“Foram quatro anos escrevendo e imerso apenas neste trabalho. A residência aqui na Biblioteca [Pública Estadual] me permitiu tempo e também uma responsabilidade em terminar esse projeto”, conta Reinaldo Santos Neves. O escritor, que tem como maior característica a ironia, já lançou mais de 15 livros com editoras locais e nacionais. Com o fim da residência, ele se prepara para começar novos projetos.
Século Diário – Como surgiu a ideia para a trilogia A Folha de Hera, e por que traduzir para inglês A Crônica de Malemort (1978) e, depois, novamente, para o português?
Reinaldo Santos Neves – Tudo nasceu com a história do meu segundo romance, A Crônica de Malemort, que é ambientado na Idade Média. Para escrever esse romance, eu consultei fontes medievais portuguesas, porque queria reproduzir a linguagem da época, mas de uma forma peneirada, para que ela pudesse se converter em uma linguagem literária moderna. A princípio, esse romance ficaria nisso apenas. Eu não tive imediatamente a ideia da tradução para o inglês, na verdade passaram-se 20 anos até que a ideia surgisse. A proposta era fazer a tradução com mesmos recursos, ler, estudar e consultar as fontes medievais inglesas e traduzir o texto de Malemort para o inglês arcaico. Esse inglês antigo também deveria ser acessível aos leitores de hoje, embora mantendo o cheiro e o gosto da linguagem medieval.
Durante essa pesquisa e posterior escrita, o romance se tornou praticamente três vezes maior do que o original. A história mudou, surgiram novos personagens, mais cenas e também mais episódios paratextual, ou seja, a história do manuscrito, que não é contada na Crônica de Malemort. Eu criei todo um universo não medieval para explorar a história por trás do manuscrito desaparecido e, por isso, a versão inglesa cresceu. Esse meu primeiro projeto ainda não previa a tradução para o português, mas diante dessa diferença de conteúdo entre o original e a versão inglesa, percebi uma necessidade de retraduzir para o português, afinal, essa é a minha língua de escritor.
Além disso, eu também criei uma história paralela para justificar o romance bilíngue, que é a história do autor americano que não conseguiu editar o livro para os Estados Unidos e conhece o tradutor brasileiro Reynaldo Santos Neves – com y – pra traduzir o livro para o português e conseguir que o livro fosse editado no Brasil.
– Os livros são ambientados na Idade Média, por que escolheu esse período da história para explorar?
– Na verdade foi a história que pediu esse tempo. Na época que eu estava trabalhando na Crônica de Malemort, senti que a história deveria ser ambientada em outro momento histórico que não fosse o presente, eu tinha uma intuição de que ela seria melhor em outra época. Então, eu reescrevi o romance de forma que ele fosse ambientado da Idade Média. Embora eu goste da Idade Média como cenário literário, foi uma questão casual escolher esse período.
– Os livros são todos escritos em inglês e português arcaico, como foi esse processo de pesquisa?
– A pesquisa em português foi mais reduzida porque foi durante os anos 70, pré-internet, então eu tinha que apelar para as fontes impressas. E não era fácil conseguir esses documentos medievais portugueses, então eu tive que me contentar com obras do meu próprio pai, ele era professor de literatura e língua portuguesa e, por isso, tinha algumas coisas.
Agora, na época em que me propus a escrever A Folha de Hera e fazer a tradução para o inglês, já estava na época da internet e o meu campo de pesquisa se alargou muito. Inclusive, encontrei um dicionário de inglês médio, que eu consultei intensamente principalmente nas notas e nas citações. Eu sempre digo que o computador e a internet mudaram a minha vida como escritor, o computador por que tornou mais fácil escrever e administrar um texto, e na internet você encontra tudo o que você quer.
– A ironia é uma característica que está em quase todas as suas obras, como ela se dá em A folha de Hera?
– A ironia em A Folha de Hera eu diria que é mais subliminar. O narrador, que é um monge medieval, é irônico sem saber, mas nós, os leitores de hoje, percebemos a ironia por trás de suas palavras. Além disso, há a ironia dramática, a própria história parece caminhar para uma direção, mas depois há uma reviravolta.
– Como você se sente encerrando essa trilogia? Afinal, foram quatro anos escrevendo e imerso apenas neste trabalho.
– De certa forma eu estou alforriado, foi um trabalho muito longo e sempre fica aquela dívida com você mesmo. A residência aqui na Biblioteca me permitiu tempo e também uma responsabilidade em terminar esse projeto. Como residente, eu trabalhei apenas nessa trilogia, já havia muita coisa escrita, mas a versão final foi feita toda na Biblioteca.
– E junto com a trilogia, também se encerra o seu período como escritor residente na Biblioteca Pública Estadual. Quais são seus planos agora?
– Eu tenho um projeto na cabeça que já tem quatro anos também e agora vou me dedicar a ele. Quando eu digo na cabeça, na verdade, eu já tenho alguns rascunhos, roteiros e páginas escritas. Mas ainda é tudo muito restrito, porque a minha preocupação maior era com A Folha de Hera.
– Outra obra sua, O Reino dos Medas (1971), recentemente virou filme pelos diretores Vitor Graize e Rodrigo Oliveira, o que achou?
– Eu continuo sem ter assistido ao filme, não é por falta de interesse. Na verdade eu tenho um bloqueio, o mesmo bloqueio que não me deixa reler o Reino dos Medas. Eu renego esse livro, ele é tudo o que eu não escrevi depois, eu aprendi a escrever depois desse livro. Eu sempre digo que eu não rejeito propriamente o texto narrativo, eu rejeito o conteúdo, os personagens. Esse livro foi fruto do meu aprendizado durante a adolescência.
Sobre o filme, eu acho legal a iniciativa e não tive dúvidas para autorizar, mas é irônico, que justamente o meu romance em desuso, como eu o chamo, tenha sido transformado em um longa.
– A Ceia Dominicana (2004) também encerra uma trilogia iniciada por dois textos, o Poema Graciano (1982) e As Mãos no Fogo (1984). Apesar de se passarem em Manguinhos, você cria um universo mágico que não se assemelha muito ao real. Poderia falar um pouco desse universo que criou?
– O texto que inspirou a Ceia Dominicana foi o Satyricon (60 D.C), de Petrônio, que conviveu com o Imperador Nero. Então o próprio romance ou os fragmentos que chegaram a nós, é muito doido, o que talvez seja algo até natural para a época na qual os deuses eram tão presentes. E assim como eu usei o Satyricon como inspiração, Petrônio usou a Odisseia como inspiração, um texto que é ainda mais fantástico.
A partir disso, o elemento fantástico em A Ceia Dominicana era essencial, não havia outra maneira de escrever esse livro, se não usando e abusando da fantasia. Então, eu transformei Manguinhos em uma releitura de uma cidade romana, só que mágica. Eu exploro também muitas superstições que nasceram na Antiguidade Clássica e estão vivas até hoje como, por exemplo, entrar com o pé direito, isso era um ritual romano. Eu também estabeleci uma ponte entre a Puxada do Mastro e um Festival Grego dedicado à deusa Isis, que acontecia no Egito, que na época era domínio da Grécia. Esse festival é como se fosse uma versão mais antiga da Puxada do Mastro.
– Outro romance seu é Kitty aos 22 (2006), ambientado em Vitória e que fala do universo adolescente. A história nasceu de um sonho e a pesquisa foi toda feita na internet. Como foi a produção desse livro?
– Kitty é uma personagem que me surpreendeu, porque quando eu comecei a trabalhar nesse romance, ela era muito estereotipada, mas à medida que eu fui escrevendo e conhecendo melhor a personagem, acabei até simpatizando com ela, mas apenas como personagem e não como alguém que eu teria uma amizade. A pesquisa na internet foi crucial, sem ela o romance não existiria, porque eu não sou de conversar muito com adolescentes e descobrir como são as coisas hoje. Já para a ambientação, eu trabalhei o tempo todo com localidades de Vitória, a Terceira Ponte, o Convento, os bairros, as praias, pelo menos em termos geográficos, estão todos presentes.
– Outra característica da sua obra é a intertextualidade, que está bem presente no seu livro recente o Heródoto, IV, 196 (2013). Nele você cria uma biblioteca de referências, como foi a produção desses contos?
– Esse livro também nasceu de um sonho, e esses sonhos que dão origem aos romances são muito marcantes. Se não tivesse o sonho, não haveria o livro. E no caso de Heródoto, eu sonhei o primeiro conto O Mistério na Montanha, tanto que esse texto tem uma atmosfera onírica. O conto foi escrito em um dia, eu acho que nunca escrevi um texto tão rápido.
Depois desse conto, comecei a explorar outros temas sobre literatura e vida literária, sempre inspirado nas minhas leituras e preferências literárias e que possibilitasse um texto curto e interessante. Então eu me diverti muito escrevendo e não escrevia apenas sobre obras marcantes de fato para a minha literatura, mas também obras que me agradam muito e que estão presentes desde a minha infância e adolescência.
– Você já publicou com editoras de fora do Estado, mas agora se voltou novamente para o Espírito Santo, como escritor residente e firmando parcerias com editoras locais, por quê?
– Comercialmente, não deu certo. Tanto A Longa História e, principalmente, A Ceia Dominicana não venderam o suficiente para justificar a continuação da parceria, o que é perfeitamente compreensível. Eu entendo que uma editora comercial precisa ter retorno financeiro. Por isso, eu me voltei para opções locais, inclusive não tenho nem enviado mais originais
– E os acordos com editoras comerciais, também são injustos?
– São, mas isso também é compreensível, é da lei. A editora comercial geralmente negocia com um autor 10% do preço de capa. É lógico que um autor de best-seller tem outro contrato, mas aqueles que ainda são desconhecidos, a porcentagem não passa de 10%.
– Eu gostaria de saber como você percebeu que seria um escritor? Quando nasceu esse interesse pela literatura?
– Esse interesse nasceu muito cedo, eu até posso dizer que se deu imaturamente, eu devia ter uns 11 anos, quando coloquei na cabeça que seria escritor. Mas o melhor da história é que eu tenho todos os registros dessa época, tenho textos e contos que eu escrevia e meu projeto é colocar esses textos na internet, criar um acervo para que essa papelada não se perca. Essa escrita não parou e lá para os 13 anos eu já tinha consciência de estilo, eu queria escrever diferente dos outros. E essa vontade de ser escritor só se acentuou, era uma espécie de compromisso comigo mesmo, e esse desejo continua. Até hoje, continuo querendo ser escritor.