Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Porã
Ele não lembra a data exata, mas cerca de uma década e meia atrás, Sérgio Braga era coordenador de Trânsito da Associação de Moradores de Jardim da Penha (Amjap), quando a entidade iniciou uma certa campanha de respeito à faixa de pedestre. A ideia nasceu com o ex-vereador de Vitória e ex-deputado estadual Otaviano de Carvalho – que faleceu em 10 de junho de 1999 em acidente automobilístico; em sua homenagem, a cada 10 de junho celebra-se o Dia Municipal contra a Violência no Trânsito.
No início dos anos 90, Jardim da Penha registrava um vistoso aumento populacional, mas ainda mal tinha semáforo. Cada morador vivia uma aventura ao atravessar a rua para sair ou chegar às famosas pracinhas centrais; os carros deslizavam frenéticos. Otaviano, primeiro presidente da Amjap, um dia chegou à sede da associação com uma espécie de adesivo em que se lia a frase “Eu Respeito a Faixa”. “Está na hora do pessoal lutar por isso em Jardim da Penha”, dissera.
A associação requereu à prefeitura a pintura das faixas de pedestres. De forma geral, mobilizou a comunidade inteira. Mas o grande trunfo da campanha foi envolver as crianças das escolas públicas do bairro. Não apenas porque envolver as crianças significava envolver também seus pais – “Toda criança seria um potencial responsável pela faixa do bairro”, diz Braga -, mas também porque elas desempenharam papel fundamental na campanha de conscientização que iria às ruas
Nas disciplinas sobre cidadania, crianças e adultos escolhiam uma faixa e faziam a panfletagem e a distribuição de adesivos para carros. Braga conta que os moradores mais antigos relutavam, reagindo à campanha com a buzina do carro. Mas a mobilização da comunidade resistiu. Foi um mês de campanha.
Hoje os pedestres de Jardim da Penha colhem os frutos. A campanha de respeito à faixa de pedestre redundou em hábito arraigado: quem já andou pelo bairro provavelmente já sentiu a boa experiência e bela sensação que é ver os carros pararem só para você atravessar a rua. Por alguns segundos, os valores se invertem; a cidade, ali, parece feita para as pessoas.
O poder de automobilização de uma comunidade se antecipou em pelo menos uma década à Política Nacional de Mobilidade Urbana, instituída em 2012 e, especial, à uma de suas diretrizes: “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados”. Na Grande Vitória, Jardim da Penha é um dos poucos bairros que confere algum sentido à diretriz. A fragilidade das políticas públicas para o pedestre é tão velha quanto andar para frente.
Segundo o mais recente Relatório Anual de Estatísticas de Trânsito do Departamento Estadual de Trânsito do Espírito Santo (Detran-ES), de 2012, das 634 vítimas fatais, 85 eram pedestres – número significativo, se cotejado com os 200 motociclistas do levantamento, o número mais alto.
Quando o recorte se limita à Grande Vitória, os números são mais preocupantes: de 228 vítimas fatais, 46 eram pedestres, mesmo número de passageiros e três a mais que o de condutores. Na triste estatística, o número de motociclistas fica um pouco à frente: 70.
O relatório mais antigo, de 2005, registra 530 vítimas fatais em todo o Espírito Santo, entre os quais 97 pedestres. Considerando o aumento expressivo da frota veicular estadual, que cresce de por volta de 8% ao ano, o número estadual é alentador, assim como painel da região metropolitana: o documento de 2005 registra 32 pedestres entre 89 vítimas fatais, 36% do total. Sete anos depois a porcentagem caiu para 20% – muito embora, vale o alerta, a quantidade de vítimas fatais tenha mais que duplicado.
O levantamento acima vai ao encontro das tendências apontadas pelo Mapa da Violência 2013 – Acidentes de Trânsito e Motocicletas: em 2011, dois terços das vítimas no trânsito foram pedestres, ciclistas e/ou motociclistas, mas nos últimas 10 anos, a tendência é de queda na mortalidade de pedestres.
Segundo o mesmo estudo, a média de idade das vítimas de trânsito é mais alta entre os pedestres: 60,9 anos. O mapa indica uma elevada vulnerabilidade de pedestres idosos no trânsito. Segundo o Ministério da Saúde, 40.416 pedestres foram internados por algum tipo de acidente de trânsito. Entre os pedestres, as maiores taxas de internação registram-se entre os com mais de 60 anos.
O professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Andre Abe, diz que as políticas públicas ainda privilegiam mais os viadutos, vias, ruas e avenidas do que as calçadas, reflexo de uma mentalidade pouco democrática da cidade, que não pensa no pedestre.
E isso ainda que, como afirma o consultor da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), Eduardo Alcântara de Vasconcellos, em artigo para a Ong Mobilize Brasil, a mobilidade a pé compreenda entre 35% e 45% das viagens diárias nos municípios brasileiros.
“É interessante notar que a iluminação, por exemplo, é para o asfalto, e não para a calçada”, aponta o professor. O detalhe é sintomático. Como se sabe, as políticas públicas de mobilidade urbana insistem em priorizar as formas motorizadas de mobilidade, em especial os carros. Daí que, cotidianamente, vejamos pequenas manifestações de poder do carro sobre o pedestre: carros estacionados em frente ao acesso a calçadas, sobre as faixas de pedestre ou mesmo em cima das calçadas.
Ainda que haja projetos como o Calçada Cidadã, da Prefeitura de Vitória, ou o Calçada Legal, em Vila Velha e Serra, todos com o fim de guarnecer o pedestre, de modo geral as condições de calçamento ainda nos dizem que o pedestre é categoria de terceiro escalão na hierarquia da mobilidade urbana – ainda que as jornadas de junho tenham estimulado, por ora mais no discurso que na prática, certa mudança de paradigmas em relação ao tema.
Os buracos, irregularidades e desníveis das calçadas, a variedade de pisos em um mesmo quarteirão, a largura insuficiente para acomodar com conforto e segurança e a sinalização precária – a maior parte dos sinais de trânsito dialoga apenas com os motoristas – desestimulam o pedestre. Mas à condição física das calçadas associa-se o drama da insegurança, razão pela qual a Grande Vitória à noite ganha trajes de cidade fantasma.
Mais que reformas e projetos específicos, o planejamento urbano pode reconfigurar o panorama. Para aumentar as condições da mobilidade a pé, Abe dá o exemplo dos bairros compactos, zonas autônomas e sustentáveis que agregam comércio, serviços e moradia. “Assim o morador pode fazer seu cotidiano dentro do bairro”, explica.
Quem mora em Jardim da Penha tem mais possibilidade de fazer seu cotidiano a pé que do quem mora na Enseada do Suá. Para Abe, o desenho urbano deve considerar a escala do homem, e não a escala do carro.
Embora celebrado como a redenção do transporte coletivo de alta capacidade na Grande Vitória, o projeto capixaba do Sistema BRT (vias exclusivas para ônibus) ainda não mostrou clareza quanto à questão da circulação dos pedestres, destacadamente em Vitória.
A implantação do BRT prevê uma série de intervenções viárias – entre túneis, viadutos e pontes, sem citar as próprias estações do sistema – em uma cidade com características físicas singulares: como autêntica cidade antiga, Vitória apresente caixas de rua estreitas e rede viária bastante interseccionada. Uma das ressalvas ao BRT é a dúvida que permanece quanto à mobilidade do pedestre.
Em que pese o quadro desfavorável, projetos públicos conseguem devolver a cidade aos entes mais vulneráveis da hierarquia da mobilidade urbana, como as ruas de lazer em Vitória e Vila Velha. A recente notícia de que a Ponte Seca será restaurada pela Prefeitura de Vitória e fechada ao tráfego veicular, convertendo-se em espaço de visita e contemplação, também é alentadora. Mas quem anda a pé ainda merece mais.