Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Porã
Desde que se fixou em Vila Velha e fez da sua vida uma travessia praticamente cotidiana entre terras canelas-verdes e a capital capixaba, o médico e cineclubista Claudino de Jesus testemunha um lento porém contínuo processo de divórcio entre o mar e uma cidade.
Ele ainda se lembra como se deslumbrava com a paisagem ao redor a cada vez que atravessava a baía de Vitória com os catraieiros. Lembra a Catedral, o sol se derramando pelos altos prédios, ainda poucos, e se espalhando pela Avenida Beira-Mar, e do alto e longe o verde vicejante da Fonte Grande. O problema é que aos poucos e inelutavelmente a Catedral, o sol, a avenida e o verde perderam a seus olhos aquela cor alegre.
A paisagem, que para muitos não choca porque é comum, isto é, o Porto de Vitória avançando sobre o mar e quase se integrando ao de Capuaba, do outro lado da baía, para Claudino, é um filme cujo enredo ele acompanha há mais de 30 anos: o estreitamento, ou, melhor, sequestro, da baía de Vitória, por um modelo específico de desenvolvimento econômico implantado nos anos 60 e que, como sabemos, promoveu uma barbárie ambiental no Espírito Santo.
Apesar do travo amargo, a relação é estreita, tanto que redundou em um curta-metragem dirigido pelo próprio Claudino: o documentário Baía do Espírito Santo – Um Olhar Canela-Verde.
A ideia do filme nasceu no lado canela-verde da baía. Anos atrás, a Verve, empresa de consultoria ambiental da qual Claudino é um dos sócios, prestou um serviço de condicionante de relação com a comunidade e educação ambiental para uma empresa instalada ao lado do Museu da Vale.
A comunidade envolvida eram os moradores da Grande Paul e da Grande São Torquato. A cada contato, ficava mais claro para Claudino um sentimento de ressentimento entre os mais jovens e uma certa dor entre os mais velhos por se verem tão apartados da baía. Explica-se: ali, originalmente, era uma região de mangue e praias, ou seja, um local de banho de mar, lazer, pesca, cata de marisco, entre outras atividades recreativas ou de trabalho.
Nos encontros, os moradores reacendiam essas lembranças sempre com uma nostalgia um tanto dolorida, como se vê em certos depoimentos do filme. E a imagem que mais representa essas lembranças, e sempre citada nas reuniões, é a do muro que se estende por toda a Avenida Anézio José Simões e que só termina na pracinha de Paul.
Nas conversas, o muro crescia mais e mais como símbolo maior de um sentimento coletivamente compartilhado de segregação. O muro é fruto do Cais de Paul, construído nos anos 40 para operação da então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e da Usiminas, mas gerou o rapto de todas as boas experiências de uma geração – aquela de banhos, pescas, cata de marisco – e só legou à comunidade seu outro lado.
Se o lado de dentro medra o progresso, pelo de fora se espalham o crescimento desordenado, as ruas mal iluminadas, o asfalto esburacado, as calçadas irregulares, o medo de andar mesmo à luz do sol. A violência.
Os moradores da região, aliás, voltaram a reviver essa experiência de sequestro da cidade com o caso da Liquiport, no alto do Morro do Atalaia. A empresa tirou a vista da baia de Vitória de moradores cinquentenários ao instalar monstruosos tanques de armazenamento de combustíveis. A Liquiport já foi notificada pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) para desmobilizar as estruturas. Mas ignorou a ordem.
A construção do Museu Vale acentuou ainda mais esse sentimento de segregação. Mesmo morando ao lado desse símbolo de refinamento estético-artístico do grand monde capixaba, os moradores não visitam o museu. Existe entre ambos uma cortina de concreto: se quiserem desfrutar das boas intenções da Vale, a comunidade tem que dar a volta pela Avenida Senador Robert Kennedy.
Claudino é da roça, como o próprio diz, se referindo a Barra de São Francisco, município em que esse cineclubista e professor aposentado do curso de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) nasceu em 1951. Cresceu em um ambiente e em um tempo em que o quinhão capixaba de Mata Atlântica ainda não havia sido engolido pela gulodice desenvolvimentista. Cresceu entre bichos e mato. Para ele, a sensibilidade ambientalista viria naturalmente.
Chegou em Vila Velha no final dos anos 60 para estudar. Entrou para o curso de Medicina na Ufes na década seguinte e, mal entrando, já ingressaria no universo do estudo e vivência sistemática do cinema, do qual nunca mais se desligaria, compondo um então embrião de cineclube – que anos depois se tornaria a talvez principal fonte de formação cinéfila capixaba, o Cineclube Metropolis. Também na Ufes, sistematizou e consolidou sua formação ambientalista.
A vida se desenrolava em Vitória, mas a morada era sempre Vila Velha. Daí seu olhar canela-verde sempre cruzando a baía.
O filme começa com imagens impactantes, como as imagens de um cinejornal obtidas no Arquivo Público Estadual registrando a primeira explosão do Penedo (acima), para aterrar o lado de Vila Velha, com homens e mais homens trabalhando duro. Logo a seguir, sobe um enaltecedor texto das benesses da suplantação do mangue, como se fosse nascer daí uma nova Holanda.
Uma coisa que a comunidade de Paul e São Torquato sempre falava e que, aos poucos, Claudino foi revivendo, é como Vitória foi dando as costas pro mar. O mar, a partir da hora em que foi, digamos, desapropriado, alterado em sua configuração, perdeu a oportunidade de ser utilizado pelo cidadão. Assim, virou uma coisa externa à cidade, seja Vitoria, seja Vila Velha.
Exemplo claro dessa separação entre mar e cidade são catraieiros, também personagens do documentário: hoje são mais bravos sobreviventes do que elementos da identidade de Vitória.
Um dos choques mais recentes de Claudino é o novo aterro para ampliação e aumento do calado do Porto de Vitória, projeto que ele classifica como “delírio” dos que acreditam que um dia o porto da capital reaverá o prestígio e importância de outrora como porto de negócios. Delírio ou não, o novo aterro apagou ainda mais a figura dos catraieiros na paisagem da baía de Vitória.
Claudino também testemunha o Penedo ser, como diz, comido pelas beiradas. O monumento natural hoje disputa a atenção do transeunte com os portainers, aquelas espécies de guindastes a seu lado, que parecem insetos gigantes, do Cais de Capuaba.
Não acabou. Claudino destaca a curiosa insistência da cidade em avançar sobre a baía, agora representado na recente ameaça de apropriação dos armazéns do Porto de Vitória pelo projeto do Sistema BRT (vias exclusivas para ônibus), a principal bandeira do Programa de Mobilidade Urbana do governo estadual. Um patrimônio histórico do Centro de Vitória poderia ficar reduzido à estação de embarque e desembarque de pessoas. Há, ainda, o Túnel do Índio, previsto para acometer a Curva do Saldanha, também no Centro.
A transfiguração da paisagem promoveu-lhe uma transformação interior. Como muitos capixabas – não pensem que são poucos -, Claudino partiu do encantamento, passou pela tristeza e desembarcou na apatia, uma sensação inodora de quem já não se sente tentado a olhar pela janela do ônibus a paisagem lá fora. No máximo, gosta de ver do alto da Terceira Ponte o céu róseo do entardecer sobre a Fonte Grande.
Não se trata de um afeto idílico ao verde das matas, ao canto dos pássaros, ao balanço do mar e ao brilho do sol. O sentimento rasteiro de perda irrecuperável. A consciência de que o progresso à capixaba, ainda hoje justificado pelo discurso dos empregos, não se ampara em romantismos. Basta ouvi-lo falar da degradação do manguezal.
“O manguezal urbano do Espírito Santo é um dos mais importantes do mundo”, diz. As imagens do cinejornal que o filme recupera passam a ideia de que suplantar os mangues era o ápice da modernidade. Mas, lembra, suplantar o mangue afeta a pesca, destrói o berçário do mar e destrói a origem do tanino usado pelas paneleiras, produto que confere unicidade às panelas capixabas, faz com que cada dia haja menos peixes apropriados para a moqueca capixaba.
Como tudo tem seu preço, hoje, em um exemplo mais palpável, paga-se caríssimo pelo mais tradicional prato capixaba: a moqueca. Claudino lembra o robalo: hoje moqueca de robalo é luxo. O marketing turístico ignora a dilapidação da riqueza cultural capixaba, nosso patrimônio natural que é o manguezal, as comunidades tradicionais, como os catraieiros, em suma, “a fonte de toda a nossa possibilidade de nos colocarmos no mundo como únicos”.
A imagem acima traduz a relação atual do porto com a cidade: os barcos se posicionam ao redor de uma pequena convulsão naquele pedaço de mar. São os catraieiros. Acabara de ocorrer uma explosão, dentro do projeto de aumento de calado do Porto de Vitória. O mar explode, os peixes afloram e à superfície da baía estende-se o banquete das sobras: na foto, homens se curvam ao que boia à flor do mar.