Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Agência Porã
A Vitória que Setembrino vê da janela de seu pequeno escritório na Enseada do Suá, uma cidade apressada, urgente, cujos carros deslizam desesperados pela enorme ponte que corta a paisagem, quando não a tomam de cabo a rabo a cada início ou fim de dia, uma cidade que transformou o tempo em um eterno presente, uma cidade pretensamente moderna em brancos arranha-céus comerciais, essa cidade ele viu nascer e crescer. “Esse monstro…”, diz, sorrindo e arqueando as sobrancelhas, ao contemplar pela janela o alvoroço lá fora.
Em 1967, quando assumiu a Prefeitura de Vitória pela primeira vez, o monstro engatinhava. Setembrino não dormiu na noite anterior à posse. A preocupação deitou-se ao seu lado, numa reação natural para um deputado estadual em fim de mandato que enfrentaria sua primeira experiência na gestão pública. Aguilhoava-se: “Como vou comandar essa cidade?!”.
O prefeito via uma cidade ainda de ar interiorano, com seus pouco mais de 100 mil habitantes e uma frota de veículos ainda tímida, que em qualquer horário vagava livre pelas ruas de bloquetes.
Uma das primeiras iniciativas, bem atual, de Setembrino indica que esse verniz de lirismo, no entanto, esmaecia: a comissão que tentou formar para levantar os problemas e indicar soluções para a então embrionária Região Metropolitana da Grande Vitória, o que já mostrava a noção de que, embora separados, os municípios da região demandam gestão conjunta, em mobilidade, segurança, saneamento, saúde. Foram levantados problemas em três pontos: descarte de lixo, abastecimento de água e mobilidade urbana.
Mas a ideia nasceu e morreu no âmbito da Prefeitura de Vitória. E por razão também: os prefeitos vizinhos consideraram a proposta uma ameaça a suas respectivas autoridades. “A ideia não foi para frente e hoje você vê que Vitória está estrangulada por problemas criados em razão do conjunto de municípios que formam a região metropolitana. Vitória presta serviços a eles. Hoje alguns problemas deveriam ser estudados para soluções conjuntas”, analisa.
O maior problema da ilha daqueles anos estava longe de ser o trânsito; este escorria bem, só travando por algum acidente. O grande problema de Vitória vinha do céu: a cada tempestade, o Centro sumia sob as águas. Bastavam 15 minutos e a Praça Costa Pereira, as ruas Treze de Maio, Sete de Setembro e Graciano Neves, viravam quase uma extensão da baía. O quadro se agravava quando a água descia furiosa dos morros da Piedade, Fonte Grande e do Pinto para se acumular lá embaixo. Outro caos que hoje apenas mudou de endereço.
Setembrino assumiu a prefeitura em fevereiro; dois meses depois, o céu desabou sobre Vitória. O Centro, mais uma vez, era vencido pelas águas. À noite, o telefone da casa do prefeito trinou. Era Duarte Júnior, apresentador do jornal noturno da então Televisão Vitória: “Senhor prefeito, está tudo alagado. O senhor não quer vir dar uma entrevista, a população está apavorada…?”. Setembrino aceitou. Precisou de uma basculante da prefeitura para chegar ao Edifício Moises, na Avenida Jerônimo Monteiro.
Chegou. “Prefeito, o que o senhor vai fazer?”, questionou o jornalista. Embora com apenas 60 dias à frente da prefeitura, Setembrino mostrou convicção: “Eu vou resolver o problema”. “Como?”. “Vou fazer galerias para a água escoar”. “Mas o senhor não vai enterrar sua carreira política com uma obra que ninguém vê?”.
Realmente vou fazer uma obra de político burro, mas é uma obra de consciência; eu vou enterrar o dinheiro do povo para que o povo não fique mais sujeito a esses alagamentos. Muita gente não acreditava que desse certo, por causa da declividade, porque a maré era mais alta em relação ao piso da cidade.
Setembrino fala olhando para baixo e um sorriso de orgulho se delineia em seu rosto de tez rósea para falar da obra que, em resposta à Duarte Júnior, qualificou de “obra de político burro”, mas graças à qual é lembrado e celebrado ainda hoje, quase meio século depois. Retrucou ele ao jornalista: “Realmente vou fazer uma obra de político burro, mas é uma obra de consciência. Vou enterrar o dinheiro do povo para que o povo não fique mais sujeito a esses alagamentos”.
Como a região do Centro estava abaixo do nível do mar, o projeto de Setembrino enfrentou críticas e desconfianças. Mas o prefeito seguiu adiante e em julho de 67 as obras foram iniciadas.
Começou pela galeria da região do Parque Moscoso, que partiu da antiga Praça do Quartel, cruzava o parque – em função das obras, outro fato mui atual, a prefeitura viu-se forçada a remover árvores, o que gerou repercussão negativa entre os moradores, apenas mais tarde contornada – e desembocava no Cais do Porto 1. Esta ele entregou: a galeria da Costa Pereira, deixou pronta em 69 para a gestão seguinte.
Concluídas as obras, esperava o teste de fogo. No primeiro aguaceiro que caiu, o medo assaltou-lhe. Sua carreira política estava em jogo: “Se não desse certo, teria que me mudar de Vitória”, diz. Era noite, chovia a cântaros. Setembrino mandou dois engenheiros para o Centro. “Se alagar, vocês me avisem”. O tempo estiou e os engenheiros assomaram eufóricos à porta da casa de Setembrino: “Prefeito, deu certo!”. Setembrino foi para o Centro tomar chuva e desfrutar com os próprios olhos seu primeiro e eterno triunfo.
O monstro havia se encorpado incrivelmente quando reassumiu a prefeitura em 1975, após mais um mandato na augusta Casa de Leis. A implantação dos Grandes Projetos Industriais e o conseguinte abandono do secular modelo econômico amparado na monocultura cafeeira voltada para a exportação promovera uma profunda reconfiguração da paisagem de Vitória e municípios vizinhos.
A população inchara: Vitória passava dos 160 mil habitantes em 75. A população de Vila Velha passou de quase 100 mil habitantes em meados dos anos 60 para mais de 150 mil em meados da década seguinte; Cariacica saltara de cerca de 70 mil habitantes para quase 150 mil no mesmo período. Em suma: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1960 a Grande Vitória – Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica, Viana – contava 198 mil habitantes e, em 1970, já registrava 386 mil habitantes.
A explosão se refletiria imediatamente nas ruas e avenidas, engendrando uma experiência cotidiana que as próximas quatro décadas só fariam acentuar. O trânsito caótico foi uma das faces da brusca remodelação sem condizente planejamento.
Em novembro de 72, a revista Espírito Santo Agora retratava o nó no trânsito que se criava na região da Vila Rubim, no Centro de Vitória, todo santo dia das 7h às 9h e das 17h às 20h. Já ali estava límpido: de modo geral, a topografia da capital, com suas ruas antigas e estreitas, já não absorvia o fluxo, e, mais especificamente, se esgotara a capacidade de escoamento da Ponte Florentino Avidos, única ligação da ilha com o sul do continente.
O que conferiu certa orientação à brusca urbanização de Vitória foram os 12 anos de seqüência administrativa iniciada por Setembrino, prosseguida por Chrisógono Teixeira da Cruz, e retomada por Setembrino, processo que esterilizou rixas políticas para assegurar início, execução e conclusão de projetos. O período realizou obras que ainda hoje fundamentais para a dinâmica da cidade, mesmo com a ressalva de eventuais intervenções em face da explosão da frota veicular em um espaço físico que permaneceu praticamente o mesmo.
Vide a Avenida Leitão da Silva. Quando anunciou a obra, Setembrino foi criticado. A região era um mangue; desabitada, abrigava apenas o sítio e a pedreira da família de Armando Gonçalves, dona de grande parte da área. A população desconfiou: era jogar dinheiro fora.
Chrisógono tinha elaborado o projeto e Setembrino deu seguimento. Como o orçamento municipal era modesto, Setembrino foi buscar recursos com a União, via Banco Nacional de Habitação (BNH), que também financiava projetos de saneamento e mobilidade.
Uma vez concluída, a Leitão da Silva apresentou suas credenciais. A galeria, aberta para tomar sol, por entendimento dos técnicos do BNH, recebia as águas das chuvas que desciam dos morros de São Benedito e Gurigica. E a via aliviava o tráfego da Avenida Reta da Penha, consolidando-se como nova ligação entre o norte e o sul da ilha e conferindo maior fluidez ao tráfego entre as regiões. E, quatro décadas depois, a avenida recebe obras de ampliação para receber o Sistema BRT (vias exclusivas para ônibus)
Outra realização dessa seqüência, e que também ligou o norte e o sul da cidade, é construção da Avenida Dante Michelini, inaugurada em 76. Chrisógono iniciou e sucessor concluiu.
Setembrino desatou outro nó em Maruípe. O estreito trecho inicial da avenida homônima era um ponto de estrangulamento para o fluxo que deixava a Avenida Paulino Muller. O gargalo foi vencido depois que a prefeitura desapropriou um trecho da parte debaixo da avenida para fazer a Avenida José Cassiano dos Santos.
A partir de 2013, os cinco quilômetros da Avenida Fernando Ferrari passaram de duas para três faixas de rolamento, mas perdeu sua icônica passarela, cuja construção rendeu um curto embate com os estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). A prefeitura tinha ampliado e asfaltado a avenida e, para a segurança dos pedestres, blocos de concreto foram dispostos ao longo da via. Eram estruturas removíveis, a ideia era erguer ali um muro fixo – o que não vingou, os “gelos baianos” ficariam pelas próximas décadas. Para os estudantes, foi erigida a passarela.
Mas eles não gostaram, nem dos blocos, nem da passarela. O espírito libertário da época feriu-se com o “muro da vergonha”, apelido que os universitários aplicaram à linha branca de concreto, em clara referência ao de Berlim. Como de hábito, o sarcasmo tipicamente juvenil também se manifestou, batizando os blocos de “mala de Tarzan”. A passarela, por sua vez, era considerada grande demais.
Os estudantes, portanto, por birra estudantil ou praxe arraigada, continuaram a atravessar livremente a avenida, pulando sobre a mala do homem das selvas. A prefeitura reagiu, um tanto mal-criadamente: besuntou os blocos de graxa. Em vão. Os estudantes, mesmo sujos, não sucumbiram. Um dia, Setembrino propôs a se reunir com os estudantes para explicar os blocos. Setembrino chegou sozinho, sem o cortejo que geralmente acompanha um chefe do Executivo. O auditório tomado até estranhou.
O prefeito iniciou a palestra e logo sacou um documento estatístico do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-ES) com um quadro comparativo de acidentes que registrava a diminuição de acidentes fatais após a implantação dos blocos. Antes, motoristas invadiam a pista oposta e provocavam tragédias. O prefeito saiu aplaudido.
Os feitos da sequência Setembrino-Chrisógono-Setembrino não se mostrou suficiente para absorver as demandas de mobilidade de uma cidade há pouco meramente administrativa mas agora se consolidando em coração e alma econômica do estado. O trânsito sentiu o efeito dessa transformação e ainda hoje sente: a capital atraía o tráfego de toda a Grande Vitória por centralizar as atividades administrativas, econômicas e culturais da do estado.
As palavras do economista Arlindo Villaschi à Espírito Santo Agora de abril de 78 são esclarecedoras: “Nem com a terceira ou quarta ponte”, diz ele, “e mais o aquaviário funcionando, os problemas de trânsito e do transporte da Grande Vitória serão resolvidos, se não houver a descentralização das atividades da capital para os demais municípios da região”, analisou o então diretor-técnico da Fundação Jones dos Santos Neves.
Em setembro do mesmo ano, a revista dizia que Vitória recebia 60 mil carros diariamente; pela Florentino Ávidos trafegavam 50 mil por dia. A matéria já apontava o que ainda hoje se aponta – os singelos 93 quilômetros quadrados da cidade não são suficientes para abrigar todo o volume de carros que gera e recebe por dia – e indicava quatro pontos de estrangulamento: as já citadas Florentino Ávidos e Vila Rubim, acrescidas do centro de São Torquato e do trecho da Avenida Getúlio Vargas em frente ao Palácio Anchieta.
Não à toa, em 73, no governo Arthur Gerhard Santos, nasceria a ideia da Terceira Ponte; em 76, o Sistema Aquaviário, cujas operações se iniciaram dois anos depois; e, em 79, enquanto a terceira não vinha, a Segunda Ponte era inaugurada. Passaram-se quatro décadas e uma quarta ponte será lançada (edital publicado), o Aquaviário vai voltar (edital publicado), um novo modelo de transporte coletivo será implantado com o BRT e a cidade alça a bicicleta como meio de transporte alternativo, em que pese uma infraestrutura cicloviária ainda precária.
Tudo porque, quatro décadas depois, a Vitória que Setembrino Pelissari vê da janela, com 189.150 veículos nas ruas, segundo os dados de agosto do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), essa Vitória apressada e urgente ainda se engasga com nós no trânsito.