Mais de 50 entidades de povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares denunciam, em carta, os poderes Legislativo e Executivo pela violação aos direitos das populações tradicionais pela tramitação do Projeto de Lei (PL) 7735/2014, que define novas regras para acesso ao patrimônio genético de plantas e animais e aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade brasileira. A ausência à consulta desses povos desrespeita o exercício do direito de participação e de resguardo dos seus interesses, como consideram no documento.
Embora o debate com os povos e comunidades tradicionais não tenha acontecido, representantes das indústrias farmacêuticas e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior já vinham debatendo o PL com o governo há três anos. A informação foi evidenciada pelos próprios representantes dos setores na audiência da comissão geral da proposta, que aconteceu na última terça-feira (11) na Câmara dos Deputados.
Na carta, as entidades destacam que o projeto é uma nova tentativa de regulamentar o tema do Acesso e Repartição Justa e Equitativa de Benefícios, que já é regulado pela Medida Provisória (MP) 2.186-16/2001, fato que preocupa as entidades por conta do histórico de expropriação de conhecimentos tradicionais e recursos naturais já registrados no país. Registram, ainda, que falta o debate sobre a ratificação do Protocolo de Nagoya, que prevê a repartição justa e equitativa de benefícios a partir da utilização de recursos genéticos.
As entidades também afirmam que lhes foi negado o direito de negar o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados, cujo acesso já lhes é sistematicamente dificultado. Também afirmam que organizações surgem como representantes dos interesses dos povos e comunidades tradicionais, mas estão somente interessadas no lucro associado aos conhecimentos tradicionais. “Sem um processo de consulta e participação efetiva dos sujeitos de direito, tem-se uma proposta de legalização unilateral da exploração dos recursos e dos conhecimentos tradicionais associados, estando estes relegados a um 'obstáculo' a ser superado, mediante pagamento ou promessa de pagamento”, alertam.
Os principais representantes da força produtiva, da proteção da biodiversidade e da agrobiodiversidade nacional, como afirmam, são invisíveis no projeto, sendo solenemente ignorados em um processo que evidencia “o descompromisso do Brasil com a própria legislação nacional, quando conflitante com interesses eminentemente econômicos”.
A carta evidencia, ainda, que é desconsiderado o papel fundamental das populações tradicionais e agricultores familiares no uso sustentável e na conservação da biodiversidade brasileira, sendo evidenciado no PL apenas o aspecto econômico dessas comunidades com relação à repartição de benefícios. O projeto também passa a legislar sobre a agricultura familiar e alimentação, quando a referência para o tema é o Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que prevê os direitos dos agricultores ao livre uso de suas sementes.
Além disso, as entidades retratam que a comunidade acadêmica é omissa na discussão dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, pautando a discussão apenas para garantir a facilitação do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados. Afirmam que esta atua na perspectiva da captura do conhecimento sem a divulgação dos resultados, estando interessada, juntamente a indústria, no desenvolvimento tecnológico a qualquer preço e em altos rendimentos.
“O Projeto de Lei, tal como apresentado, é o reconhecimento da falência do Estado Brasileiro no combate à biopirataria e na garantia de direitos coletivos, que subserviente a sistemas corporativos industriais e financeiros, desconsidera o papel de povos e comunidades tradicionais, únicos sujeitos que efetivamente desenvolvem estratégias para o uso sustentável e a conservação da diversidade biológica brasileira”, destacam, acrescentando que por todos os motivos apresentados, não é possível que as populações tradicionais participem de forma limitada e excludente do PL.
Entre as 54 entidades que assinam a carta, estão a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimentos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), a organização Terra de Direitos e a Via Campesina.