sexta-feira, novembro 22, 2024
24.9 C
Vitória
sexta-feira, novembro 22, 2024
sexta-feira, novembro 22, 2024

Leia Também:

Reportagem especialO Amargo Rio Doce

A reportagem a seguir (“O amargo rio Doce) foi publicada originalmente em 1977 no Jornal do Brasil. O texto, que  está no livro “Espírito Santo Maldição Ecológica”, continua atual. No início de outubro, o jornal A Gazeta também fez uma série especial (“Expedição rio Doce”) sobre o maior rio do Espírito Santo. Século Diário republica a reportagem “O amargo rio Doce” com o propósito de contribuir para a discussão de um dos temas ambientais mais importantes do nosso Estado.
 
Desmatamento 
 
1894
O paquete Ahraruama, do Lloyd Brasileiro, sobe o rio Doce para deixar no Porto Final, a 156 quilômetros de sua foz, na divisa entre os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais, 23 passageiros e 144 toneladas de mercadoria 
 
1977
Um robalo, com 30 centímetros, 6 quilos, morre em Itapina, na rota foz do rio Doce a Porto Final, após mal-sucedida viagem desova. Foi recolhido, todo ferido, pela bióloga Teresa Bucci, do programa de Desenvolvimento Pesqueiro do Brasil, incumbida de estudar a freqüência dos peixes do rio Doce. “Ele foi muito imprudente, pois peixes com mais de 3 quilos não tem condições de navegar neste rio ” disse. O que aconteceu com rio Doce entre 1894 e 1977? 
 
A completa erradicação da Floresta rio Doce foi responsável pela destruição do rio e desertificou toda a região de sua influência segundo o cientista capixaba Augusto Ruschi: “Acabaram com as suas esponjas laterais, pois nas folhas das arvores ficam 10% da água da chuvas, e o resto se infiltra no lenço freático. Agora a água cai bruscamente em cima da terra, correndo imediatamente para o rio, provocando enchentes, transportando suas margem para o leito, assoreando o rio”.
 
“O rio está acabando. Era fundo ficou raso. A água antes era transparente, está barrenta. A vida animal extingue-se dentro dele. Sem as vegetações das margens há a precipitação do processo de decantação que, com os outros fenômenos já existente, muda o clima da região, já complica a alimentação dos peixes, porque eles perdem frutas e folhas do seu placton. Está cheio de germes, alterou sua oxigenação. 
 
 
Somente um reduzido número de animais marinhos resiste atualmente às suas mutações , mas vai desaparecer. Eu ainda vou ver o rio Doce morto. Segundo Ruschi, para o rio chegar a esse estado de degradação, foi cortada uma das mais importantes florestas do mundo, em variedades de árvores e espécies animais. Só na parte capixaba 22 mil quilômetros, de área de influência do rio, 18 mil 300 km2 foram desmatados, a princípio para criar espaços à agricultura, depois para satisfazer a ganância dos madeireiros e finalmente propiciar a formação de pastagens. Com isso, varias espécies de árvores que somente existiam ali foram extintas – como o jacarandá uma das madeiras mais raras no mundo – e hoje só existem em pequena quantidade no Oeste mineiro e sul da Bahia. Ao todo, a floresta rio Doce tinha 400 qualidades de arvores, entre espécies e subespécies, sendo habitada por uma fauna com 709 espécies de aves, além de 570 famílias variadas de bichos. 
 
Ruschi deplora as soluções encontradas ate agora para atenuar a situação, acreditando que elas possam agravar ainda mais o processo de destruição. O rio Doce tem 932 quilômetros de extensão mais de 700 em território mineiro, onde não existem mais floresta sob ocupação de indústrias, com cidades expressivas em suas margens, pastarias e eucaliptos. Entre as indústrias, estão as siderúrgicas da Usiminas, Acesita e Monlevade, uma industria de celulose em Ipatinga, usinas de açúcar e cortumes. Todo um conjunto que, segundo ele, vai causar a biodegradação do ambiente do rio, com os seus esgotos e lançamentos de dejetos industriais “pois no Brasil rio é esgoto “diz o cientista. 
 
No entanto, o rio Doce exerceu sobre os botânicos europeus, do século passado, um fascínio tão grande como o que atualmente atrai naturalistas para a Amazônia. O príncipe alemão Maximiliano Wied Neuwied, que visitou o rio Doce em 1816, escreveu: “A estadia do rio Doce foi, sem duvida, uma das etapas mais interessantes das minhas viagens ao Brasil. Pois nas margens desse rio, de cenários tão soberbos e tão rico em espécies notáveis, o naturalista tem muito tempo com que se ocupar e as mais variadas e agradáveis emoções”. Observou que “as margens do rio distantes estavam tão densamente vestidas de selvas umbrosas que, em todo o seu percurso, não havia uma simples brecha onde se pudesse se erguer uma casa”. Notou que havia abundância de jacarandás , vinhático, putunuju, cerejeira, peroba e muitas outras madeiras úteis. Espantou-se com o barulho dos bichos e pela primeira vez viu araras em estado selvagem, que considerou o mais bonito ornamento da floresta.
 
“Podíamos distingui-las em bandos, bem longe pelo brilho de suas plumagens vermelhas”. Ainda reparou periquitos, maracanãs, maitacas, tiribas, curicas , camutanga, jandaias, e outras espécies de papagaios voando, em algazarra, de uma margens a outra. 
 
E consta também dos seus escritos a descrição das margens dos rios: “São belas e cobertas de espessas florestas refúgio de grande número dos mais diversos animais. Aí se encontram duas espécies de porco selvagem, duas de veados mais sete espécies de felinos, entre os quais a onça pintada e o tigre negro, são os maiores e os mais perigosos”. Mas o príncipe considerou o botocudo, habitante aborígene dessa floresta “mais formidável que todas as feras e o terror dessas matas impenetráveis”, relatando que, no inicio do século XIX, o rio era palco de uma luta entre índios e civilizados, por força da guerra decretada pelo Conde de Linhares. Esse ministro havia estipulado prêmios para quem matasse ou aprisionasse botocudos, criando quartéis ao longo do rio para combatê-los. 
 
Já o francês Auguste Saint-Hilaire, que veio depois a esse cenário, voltou sua atenção para o processo de navegação do rio e estimou que as embarcações da época poderiam ir até Porto de Souza (Porto Final), na capitania do Espirito Santo, e prosseguir a nascente, em Minas Gerais, desde que fosse encontrada uma fórmula para transpor as escadinhas (aglomerado de pedras encachoeiradas entre Porto Final e Aimorés). Levantou também detalhes da aventura da navegação realizada por Sebastião Fernandes Tourinho em 1572. Como o outro viajante alemão, Saint-Hilaire referiu-se com grande espanto à densidade e à qualidade da floresta. Espantou-se também com a presença de grandes quantidades de aves e animais selvagens. Admirou o trabalho do francês Guido Marlière em favor dos botocudos, um humanista que esforçava-se por atrair os índios para livra-los do implacável mortiço decretado pelo Conde de Linhares. No entanto , segundo Saint-Hilaire , era muito difícil extinguir o ódio que os luso-brasileiros tinham do botocudos , irritados com uma longa guerra e bárbaros tratamentos. Mais tarde, quando Saint-Hilaire retirou-se para a Europa , atingido por enfermidade tropical. Marlière lhe escreveu lamentado a sua sorte e a ausência de um amigo do índios: “Eu me aflijo pela vossa má saúde, como um irmão; vós não sereis chorado apenas pelos que se dedicam a ciência; sê-lo- eis também pelos meus pobres índios ; eles aprenderam noutro hemisfério, tem um amigo que pleiteia sua causa no Tribunal da Humanidade.”
 
Importante também é o depoimento de engenheiro Ceciliano Abel de Almeida, que viveu de 1905 a 1911 na floresta rio Doce, trabalhando na construção da ferrovia Vitória-Minas. No livro “O Desbravamento das Selvas do rio Doce”, onde conta a sua odisséia, relata: “a floresta do rio Doce se modifica engrossando os caules à medida que se afasta do mar para Oeste. A mata rivaliza com a do Amazonas e até a excede em certos pontos . Troncos eretos de espécies várias servem de suporte a epífitos (vegetais que se apoiam em outro sem ser um parasitas), de flores belíssimas. Troncos gigantescos, de portes variados, de copas floridas erguidos em solo prodigioso, de topografia movimentada , revelam contrastes inesperados que agradam, elevam e dominam”. Viajando de vapor no rio , engenheiro notou dentro de uma ilha muitas aves e distinguiu: “Espanta-se ariramba no ramo do arbusto. Com um voo ligeiro rio acima desaparece. Ouve-se a gargalhada das araras de plumagem vermelha dominante, de mistura de verde com amarelo, de tucanos de papos de ouro, de araçaris, rajados de branco esverdeado escuro, de papagaios em que bem se destacam as cores primitivas. Há fruteiras na ilha. Isso explica a aglomeração de tantos pássaros”.
 
Boa parte do livro, Ceciliano dedica aos índios pojichás, o mais afamado tronco dos botocudos e o último grupo a desaparecer, depois de um século de proezas contra os invasores das florestas. Conhecido pelos luso-brasileiros como o “flagelo do rio”, eles só foram dominados
 
depois que padres capuchinhos, de Itambacari, com a ajuda de algumas velhas índias da tribo pacificaram os capitães Paulo Pojichá e Joaquim Vackman Pojuchá, pondo fim à luta.
 
Destruição
 
Do caudaloso rio e sua exuberante floretas só restam hoje lembranças registradas em livros, ou na memória dos habitantes mais antigos de suas cidades ribeirinhas. Em Baixo Guandu, na divisa do Estado com Minas Gerais , perto do Porto Final, o velho Pio Ferreira Pedrinha, de 76 anos, ainda tem em seu poder o documento de desembarque do Ahraruama – amarfanhado papel que evoca nostalgicamente um rio de profundidades ainda desconhecidas – Esse paquete eu vi atracar no porto. Comecei a me interessar pelo rio depois que comecei a perceber que pedras nunca vistas por mim apareciam na superfície. Essa água que o senhor esta vendo marrom, era esverdeada. As cachoeiras eram fundas e agora rasas. Eu vi durante muitos anos os navios atracarem no porto que nem existe mais. Traziam mercadorias e voltavam carregados de perobas, rebocando grandes comboios.
 
Recordando melancolicamente o fastígio da época das perobas, Pio conta que a madeira começou a ser derrubada em grandes quantidades quando descobriram uma engenhosa maneira de transportá-la pelo rio.
 
– O pioneiro Abílio Martins ia para a floresta com os seus caboclos e junta de bois, cortava as árvores para os lados de Aimorés, Resplendor e Barra do Cuieté, em Minas Gerais, jogava tudo nos afluentes do rio Doce, enquanto outros empregados esperavam os troncos nas escadinhas. Amarravam elas com correntes formando grandes jangadas com 12 toras. Cada uma era entregue a dois homens que com a ajuda de duas varas imensas iniciavam uma viagem de 12 dias até a foz do rio, em Regência, onde grandes navios esperavam para carregar as perobas.
 
Também amarravam essas jangadas nos vapores atracados no Porto Final.
 
Eles desciam com elas até o mar. Depois, com a estrada de ferro, a coisa ficou mais fácil. As toras flutuavam até as escadinhas e lá eram embarcadas nas pranchas do trem.
 
Segundo Pio, a extração das perobas nas regiões mineiras, do médio rio Doce, foram feitas de 1900 até 1940, quando terminou o ciclo. -Esse rio vivia cheio de jangadas, pois depois que Abílio descobriu esse sistema, muitos outros o imitaram. Então, eu chegava perto do rio cheio de perobas para admirá-lo.
 
Eram troncos enormes pois não se tirava árvore com menos de 80 centímetros de diâmetro. Hoje o senhor olha esse rio magro, sem água, feio, sem cor e não acredita no que estou contando, mas é pura verdade.
 
Sabe o senhor que de vez em quando, no tempo do rio cheio com forte correnteza, passava tanta peroba, que os empregados não conseguiam pegar todas. Então, o Virgínio Calmon, um madeireiro mais esperto, ficava em Colatina (68 quilômetros rio abaixo) com seus homens escorando as perobas perdidas. E viveu delas muitos anos. Ficou rico com esse expediente.
 
Atualmente, o volume de água do rio é tão reduzido, que o diretor do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Baixo Guandu, Iussil Amim, foi obrigado a fazer a captação para o abastecimento dessa cidade de apenas 22 mil habitantes no rio Guandú. Além disso, a notória incapacidade do rio Doce está afetando a Usina Hidrelétrica de Mascarenhas, construída pela Eletrobrás nas imediações das escadinhas, entre Baixo Guandú e Aimorés. Usina prevista para gerar 115 quilowatts, não consegue funcionar com a metade de sua capacidade, já que o volume d´água da ordem de 800 m3 por hora, previsto nos estudos para a sua construção, efetuados na década de 60, não chega a 400 m3. A barragem da usina (foto ao lado) também sofre a invasão das areias, em consequência do processo de assoreamento do rio, iniciado com a devastação da Floresta do rio Doce. As areias depositadas junto à barragem crescem assustadoramente todos os dias, fazendo pressão na parede de cimento armado. É notável esse processo, em face da recente construção da Usina de Mascarenhas. Ela foi estudada nos anos 50, erguida na metade da década de 60 para frente e entrou em funcionamento em 70.
 
Mais abaixo da barragem de Mascarenhas, habitante de uma ex-colônia de pescadores onde ainda existem 50 casas, Ernesto Lima Castelo Branco, lunático velhinho de cabeça toda branca, alto, magro, sentado na porta de solitária casa, teima em não abandoná-la, ao contrário da maioria dos vizinhos que fugiram das inesperadas descargas de água da barragem, pois cada vez que as comportas são abertas, duas ou três casas são tragadas.
 
-Eu sou seu “Sete”, pois depois de Paulo VI, Deus me chamou para guiar o povo daqui. Escrevo profecias e falo com ele. Já me chamei Ernesto e agora estou sentado aqui olhando essa barragem do demônio e esperando a chuva, que esse ano vai ser muita, pra levar esse satanás da nossa frente -Ele é um homem meio doido- adverte uma vizinha. Vive dizendo para todo mundo que a usina vai cair. Passa o dia todo escrevendo, se gaba de saber escrever.
 
Profecias à parte, a verdade é que a partir da ex-colônia onde existiu a navegação, até a foz do rio, o quadro é dramático. Ao longo do rio quase seco, afloram grandes bancos de areia e as matas de suas margens cederam lugar às pastagens. Quando se encontra rara e imponente árvore, ela está com os galhos secos, como se fizesse parte da desoladora paisagem do deserto.
 
A combalida vila de Mascarenhas, com um pouco mais de 300 habitantes, só estremece hoje à passagem dos vigorosos trens de minérios da Vitória-Minas. Ela teve até 1950 uma vida frenética, por causa do intenso tráfego de vapores pelo rio, como recorda seu mais velho pescador, Jorge Marques, de 76 anos: -Desde 1926, cansei de ver aquelas gaiolas que subiam o rio para atracar ali na frente. Passavam cortando a água mansa e funda do rio, onde havia fartura de peixes tão grande que eu pescava de vara apenas uma vez por semana e armava os jequis (armadilha de lagosta) só de 10 em 10 dias. Eu vendia muito peixe aqui. Levava um pouco para Aimorés.
 
Em cada jequi pegava umas 18 lagostas, mas rede agente não podia botar. Os peixes quebravam muito. Para quem , como Jorge, tinha um rio extremamente piscoso, matar tainha a tiro de espingarda era o principal divertimento. Ele também pescou dois tipos de robalos: o peba, que tinha até 5 quilos, e o flecha, com peso que variava de 20 a 25 quilos. Até Mascarenhas habitualmente chegavam muitos peixes do mar, como o cação. -Acabou tudo, diz o nostálgico pescador. Lagosta, robalo, tainhas, piabinha, acabaram. Guirimatã, também. Dos quatro tipos de piau, só resta um. Cação nunca mais veio. Só aparecem no rio, assim mesmo de vez em quando, o dourado, o cascudo, tilaria, o piau branco, mas tudo muito pequeno. Em Itapina, 46 quilômetros depois de Baixo Guandu, ainda há vidas nas duas margens do rio.
 
Uma balsa de fundo chato faz com dificuldade o transporte de passageiros quatro vezes por dia, porque navega só no meio do rio raso. Quem precisa atravessá-lo tem que embarcar numa canoa grande, depois fazer baldeação para balsa e finalmente alcançar a terra firme em outra canoa que evita os bancos de areia. -Esse rio está secando mesmo – diz Pedro Vieira da Silva, de 69 anos, pescador, cujo maior desejo é mudar de profissão. “Não tem mais peixe aqui. Está vendo as dificuldades dessa balsa? Olhe para os lados e veja o barranco que vai para dentro do rio. Aqui em frente passava gaiolas de três andares. Eu até via os bailes que faziam no ultimo andar e ouvia daqui da beira do rio as suas músicas. Outro dia empreitaram comigo uma viagem num barquinho a motor até Linhares. Tinha tanta areia e o fundo estava tão raso que foi uma tristeza para chegar lá. Além de Itapina, na margem esquerda, um programa de desenvolvimento da pesca, patrocinado pela Sudepe, montou o primeiro posto nacional de cultivo do pitu, vulgarmente conhecido no rio Doce, por lagosta, para depois repovoar as águas interiores do país e evitar o desaparecimento da espécie. “O pitu está em avançado processo de extermínio, não queremos que venha a ser uma peça de museu”, disse o biólogo Jorge Antônio da Silva, chefe do posto.
 
 
Ele também comentou a redução da fauna do rio, pelo desmatamento, pela poluição e pela barragem de Mascarenhas, desprovida de escadinha de peixes que permite a desova dos peixes do ciclo de piracema. “Mesmo sendo do mar – explicou – esse tipo de peixe busca os grandes rios para a desova e necessitam de grandes espaços. Como não podem usar o rio Doce, devem estar procurando outro meio da natureza para realizar a desova. Se não conseguirem, vão diminuir de quantidade e morrer. Por essa razão, o estuário do rio Doce, a caminho dos Abrolhos na Bahia, deverá ser afetado na sua população marinha”. Já o biólogo Nestor dos Santos Lopes, que estuda a vida do pitu, atribui sua constante diminuição no rio à pesca predatória e ao assoreamento do rio. “Pescam muitas fêmeas ovadas, especialmente agora, que no rio não tem mais peixe, e impedem desta maneira o seu desenvolvimento. Uma fêmea de pitu tem capacidade de 150 mil larvas que teoricamente representam 150 mil novos filhotes. Mas na verdade são 20 mil que se salvam. Quando os pescadores pegam uma espécie feminina ovada, estão cortando a vida de 20 mil. Mesmo com essa densidade, está ameaçada de desaparecer. Nesse rio, o assoreamento está encobrindo as pedras, lugar onde o pitu se protege na ocasião da muda. Como no rio fica cada vez mais difícil sua existência, temos de preservá-lo através da reprodução em cativeiro”.
 
Nessa equipe técnica cabe à bióloga Teresa Bucci estudar a frequência marinha do rio Doce e os resultados do seu trabalho mostram que se extinguiram as melhores qualidades de fauna. A escassa população de peixes é miúda e constituída principalmente de acará , bagre ,corvina, tainha e tucunaré. Todas essas espécies abaixo estão abaixo do peso normal, quando em qualquer outro rio brasileiro são mais crescidas. Segundo Teresa Bucci, uma vez que o volume d'água influi na vida aquática, peixes pesados como o cascudo estão em extinção e o dourado não tem mais condições de viajar no rio. As espécies sobreviventes enfrentam obstáculos, como o corte das arvores que mudou o plancton do rio. Diante desse quadro de devastação, Teresa confessa num momento de depressão: “O ideal seria acabar com a espécie humana”.
 
Saudades
 
Em Colatina, a 66 quilômetros do Porto Final, no rumo da foz do rio, a memória do antigo rio desapareceu na agitação dos 80 mil habitantes [hoje 121 mil, estimativa IBGE 2014] ligados ao comércio e à indústria, que transformou a cidade no principal entreposto de abastecimento do Vale do rio Doce. Apenas Moacir Costa, historiador do local, que foi durante muito anos passageiro constante das viagens pelo rio, conta que depois de 1950, quando o volume d'água tornou-se impraticável a navegabilidade as gaiolas, com porões e dependências de primeira e segunda classe, tiveram como mortalha o próprio rio. – Os navios Juparanã 1,2 e 3 estão enterrados em Colatina. Igual destino coube a Milagre, Tupi e Tamoio.
 
Eles eram grandes, medindo em média 26 metros de comprimentos. Por muitos anos, esperei a chegada deles para comprar ovos de tartarugas que vinham de Regência. Eles voltavam com produtos agrícolas e madeiras da região. De Colatina, irradiava-se a depredação da Floresta do Vale do rio Doce, pois a cidade durante anos comandou o corte de madeira no Norte do rio . Hoje, os enriquecidos madeireiros dedicam-se quase que exclusivamente à pecuária, como o implacável Tigê Guimarães, que em 62 anos de vida, passou pelo menos 35 cortando peroba e jacarandá.
 
Ele só lamenta não ter concretizado o sonho de morar em Copacabana, no rio de Janeiro, porque a sua voracidade em relação às florestas era maior do que a atração exercida pela bela praia. Sua ultima façanha foi vender esse ano a uma serraria, por cr$ 4 milhões, o último reduto da mata: 40 hectares que resolveu guardar há muitos anos para lucrativo negócio. De Lastênio Calmon, historiador radicado em Linhares e autor de um livro sobre a região, parte a explicação mais completa sobre o rio Doce:
 
Ele foi praticamente inabitável até 1880, apesar de algumas providências tomadas antes pela Coroa que não passaram de pequenas aventuras. Antes dessa data havia somente “os corpos de pedestres”, criados pelo Conde de Linhares, a fim de proteger a penetração pelo rio, em busca das esmeraldas. Antônio Silva Pontes deu início ao desbravamento, mas os botocudos impunham respeito desde a foz do rio até Minas Gerais e ao Sul da Bahia, pelo rio Belmonte. – Com as tentativas de penetrações – continua – veio o atrito com índios. Demonstrando grande habilidade na luta dentro da floresta, eles levariam o Conde de Linhares a decretar uma guerra que serviu ainda mais para redobrar a fibra dos índios.
 
Em Linhares, quem estabeleceu-se primeiro foi João Felipe Calmon, com os seus escravos. Colocou um canhão virado para o rio, como ponto avançado para conter as incursões indígenas, várias vezes usado. Até o dia em que os botocudos, num ataque noturno e silencioso, inutilizaram a arma a pedras e machados. Foram necessários 100 anos para vencê-los. Assim mesmo recorreram a expedientes traiçoeiros, como o de fazer alguns aventureiros se aproximarem dos índios para lhes entregar roupas contaminadas de sarampo.
 
A maior dificuldade em atacar os índios era que eles não moravam em aldeias. Viviam em hordas de 60 a 200 pessoas, movimentavam-se sempre pelas florestas, como guerrilheiros. Segundo o historiador, a navegação, muito ativa a partir desse século, serviu para esgotar o jacarandá, num primeiro ciclo que vai de 1890 a 1910, e depois toda a peroba do médio rio Doce. Desse período inicial só alguns aventureiros caíram nas boas graças dos índios.
 
O mais importante foi Alexandre Calmon, que chegou a ter relações amorosas com varias índias e tornou-se pai de um importante cacique botocudo, o capitão Nazareth. No princípio desse século, em companhia de 600 índios, no aldeamento do Pancas, o capitão Nazareth foi vítima de uma suspeita epidemia de sarampo que a todos dizimou. – O ciclo da peroba, mais importante pela fartura de árvores, criou postos avançados em vários lugares do rio, para recuperar toras fugitivas. Era um tempo em que ia ao porto de Linhares esperar navio para comprar ovos de tartaruga, também muito apreciado na Europa, para onde eram levados pelos navios que saiam de Regência. Mas a devastação da floresta atingiu o auge, a partir de 1950, quando construíram uma ponte sobre o rio em Linhares. A indústria madeireira que se instalou em seguida na região não só cortou toda a floresta, mas também aproveitou a farinha seca, como é conhecida uma espécie de madeira de nenhum valor, causando uma completa clareira nos terrenos. -Meu Deus, conheci isso tudo como floresta. Que destruição, santo Deus!
 
Remanescentes
 
Após o extermínio dos botocudos, João da Santa, traumatizado índio, viaja a pé pelos sertões com duas bandeiras: uma branca, para anunciar chuva e outra azul, para
 
indicar tempo bom. Elber Suzano, pioneiro do teatro em Linhares, velho conhecido do índio, conta João da Santa é o único sobrevivente de uma população estimada em 50 mil no rio Doce. Quando estava morando com seus pais, numa horda dentro da floresta, seu grupo recebeu um ataque de surpresa e todos foram mortos. Mas ele foi levado para a cidade e vendido como escravo.
 
 
Desde menino deixou de conversar e enlouqueceu. Com o tempo, ganhou a liberdade das estradas, pelas quais passa orientando as chuvas. Mas Elber acha que João da Santa ficaria feliz se um dia pudesse anunciar uma catástrofe no rio Doce, para vingar seus irmãos de raça. “E talvez ele possa realmente um dia anunciar a novidade.”
 
O linharense Adolfo Calmon foi último encarregado do aldeamento dos botocudos em Pancas, acima de Colatina. Aos 85 anos, ele prefere não se lembrar dos índios, pois o tempo passado na reserva, entre 1932 e 37, só serviu para que os detestasse cada vez mais. “Eles ficavam na floresta e não plantavam nada. Só caçavam e pescavam. Depois de 1940, suas terras foram cedidas aos civilizados e eles lançados na estrada”. Adolfo confirmou que o capitão Nazareth, antigo chefe de um grupo dizimado neste aldeamento, era filho de seu parente Alexandre e tinha os olhos azuis. Mas os animais que os índios caçavam nessa floresta não existem mais.
 
Na trilha da destruição, Elias Lorenzuti, 62 anos, iniciou há 40 anos o empalhamento das principais espécies do rio Doce, guardado em pequeno museu nos fundos de sua casa, em Linhares, onde estão todos os exemplares da região. Um total de 1 mil 230 elementos da fauna, entre pássaros e animais. “A Floresta rio Doce está dentro de minha casa – disse Elias – para que os

Mais Lidas