quarta-feira, novembro 27, 2024
28.3 C
Vitória
quarta-feira, novembro 27, 2024
quarta-feira, novembro 27, 2024

Leia Também:

Reportagem especialHasta la victoria

Texto: Henrique Alves
Fotos e Reprodução: Leonardo Sá/Agência Porã
 

Manguinhos foi o respiro, o alívio, ou como o próprio diz, o parêntesis que pedia a vida de Hugo Guangiroli. Em 1980, a vila era um recanto lírico feito de mar, mata, vento e estradas de terra. Refúgio perfeito para uma vida até ali turbulenta, singela jangada que navegara antes ao sabor do mar proceloso das ditaduras latino-americanas, mas que, por resistência e por sorte, sobrevivera. E fora atracar ali, na calmaria daquele pedacinho de céu esquecido na terra.

 
Ergueu sua casa a 300 metros à direta do centro da vila, abrigo de frente para o mar, guarnecido por pés de abricó. Do jeito que conta, configura este um típico caso de amor à primeira vista. Hugo chegara ao Brasil havia pouco mais de três anos: a bordo do San Roque, navio de bandeira espanhola, desembarcou no Rio de Janeiro em 21 de outubro de 1976, após semanas fugindo dos homens de Videla em Buenos Aires. 
 
Para Hugo, especificamente, a militância política começou a ganhar ares de tragédia na noite de 20 de março de 75, quando uma operação montonera culminou com a execução de Ernesto Piantoni, chefe da Concentración Nacional Universitaria (CNU), organização universitária de extrema-direita. Hugo era liderança universitária montonera desde 73, quando foi escolhido para decano da Faculdade de Humanidades da Universidade de Mar Del Plata.   
 
A reação da CNU foi imediata. Na mesma noite seus militantes saíram por Mar Del Plata à caça de montoneros. Explique-se: entre estes, havia aqueles que eram escolhidos para “mostrar a cara”, se expor publicamente, em cargos nas universidades ou governos, e os demais, que, ao modo montonero, viviam clandestinamente. Nada menos que cinco montoneros sucumbiram à retaliação da CNU. Hugo e um amigo conseguiram escapar para Buenos Aires. 
 
Foram longos meses de clandestinidade na capital argentina. Médico neurologista e psicanalista, sobrevivia atendendo pacientes. Aos trancos e barrancos foi até setembro de 76, seis meses após a instalação de mais uma ditadura militar na Argentina, pesadelo que só findaria em 1983. Ali se viu novamente em uma encruzilhada.
 
Lía Marianna Guangiroli, Raul Del Monte e Julio César Genoud não eram simples companheiros do exército montonero, nem Marianna e Raul apenas marido e mulher. Os três eram antes de tudo amigos de infância: desfrutaram-na juntos nas praias de Mar del Plata, em família. Marianna era filha de Hugo; Julio, de um amigo íntimo deste; e Raul, amigo de Julio. 
 
Dos meninos floresceram jovens de corpo e alma sedentos por uma Argentina mais justa com seus filhos. Um sonho. Hoje Raul, Marianna e Julio estão entre os 30 mil homens e mulheres desaparecidos durante a ditadura argentina.
 

Em 76, Pajaro, codinome de Raul, cumpria a missão de retirar os montoneros de Mar del Plata. Alguns haviam caído – ou seja, foram mortos pela ditadura – e os sobreviventes deduravam os companheiros nas ruas para se preservar. Pajaro estava em um café com seu lugar-tenente quando pela porta do estabelecimento entrou um homem fardado com os olhos cravados nele. Do lado de fora, notou o guerrilheiro, havia outros homens.

 
Era a polícia. O capitão Cativa Tolosa determinara aos soldados: “Esperem aqui que eu vou sozinho pegar esse filho da puta”, contou Pajaro ao genro, mais tarde, em Buenos Aires. Pajaro se atracou com o homem e na confusão levou um tiro que lhe avariou a batata da perna. Seu lugar-tenente revidou com um balaço que fulminou o capitão. Os soldados, diria Pajaro a Hugo, não, digamos, se animaram a tomar parte. Pajaro tomou um ônibus e conseguiu fugir para Buenos Aires.
 
Na capital, encontrou Hugo, que o levou para a casa de uma amiga veterinária militante do Exército Revolucionário do Povo (ERP). Foi com os instrumentos que prestou socorros ao genro: a bala atravessara a perna. Então Pajaro deu o alerta: “Escuta. Vá embora porque eles vão te procurar”. Realmente. A polícia estava à caça de todos os médicos relacionados com Pajaro.
 
Hugo hesitou. Suportaria a dor das raízes extirpadas de forma tão abrupta? Dias depois  uma amiga apareceu com uma passagem e – “como las dulces e cariñosas portenhas”  – acabou com a angústia: “Anda-te, boludo!”. No dia seguinte a sua partida, o exército invadiu o apartamento em que estava. Levaram tudo. Quando sua irmã chegava ao local, o porteiro lhe avisou, entre lábios, da visita. 
 
Hoje, este senhor mora numa rua tranqüila da Praia do Canto, em Vitória. O apartamento é singelo, porém elegante. Desenhos e pinturas adornam as paredes; um dos quadros é uma gravura de sua atual esposa, a professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Moema Rebouças, com quem é casado há 14 anos. Vive cada qual em sua própria casa.
 
Três estantes preenchidas de livros se espalham pela sala – livro de filosofia, psicanálise, viagens, artes plásticas, literatura argentina (Piglia, Borges, entre outros). Em um delas, há um boneco de pano de Freud; noutra, caixas de charuto se amontoam. Às vezes espichado sobre a cadeira de escritório, noutras afiando as unhas no tênis do repórter, encontra-se sua única companhia na casa: Baltazár, felino que oscila entre a esmagadora preguiça e a agitação irreprimível.
 
Hugo não revela a idade, mas é um homem bem conservado. Ainda que revele entradas francas na cabeça, um bom volume de cabelo ainda lhe cai alvo, liso e lustroso. Mais que o alvo bigode, as bastas e grisalhas sombrancelhas se destacam no semblante. Gosta de charutos. Sobre a rústica mesa de centro, repousava no cinzeiro um que de quando em quando levava à boca e acendia.
 
Ainda traz um carregado sotaque incrustado na fala este argentino nascido no bairro portenho de Nuñez, razão pela qual diz: “Soy fanático por River Plate”. “E hoje tem River, né?”. “Sim. Às vinte e uma e quarenta e cinco”. Naquela quinta-feira (27), o River não só venceria o Boca Juniors no Monumental de Nuñez, garantindo vaga na final da Copa Sul-Americana, como abateria um tabu: pela primeira vez superou o arquirrival em um mata-mata de torneio continental. 
 
Os fantasmas de Hugo reviveram nessa semana, após a série de reportagens que o jornal O Globo publicou entre domingo (23) e terça-feira (25) revelando detalhes da Operação Gringo, criada em parceria com a Argentina para monitorar e caçar refugiados no Brasil, em especial militantes montoneros, e em uma das quais Hugo é personagem.
 
O episódio veio à tona após o grupo Justiça de Transição, formado pelo Ministério Público Federal para apurar os crimes da ditadura brasileira, descobriu dois volumes intitulados Operação Gringo no sítio do coronel reformado do Exército Paulo Malhães, assassinado em abril deste ano. Malhães é um dos mentores da Operação.
 
A série surpreendeu Hugo: ele não sabia que constava na lista de monitorados de Malhães. Diz francamente que nunca se sentiu perseguido, ameaçado no Brasil. Sentia-se assim na Argentina. Sua hipótese é que, como fora decano da faculdade, provavelmente os militares argentinos o viam como um líder universitário, ou seja, um elemento com potencial subversivo.
 
Não conhecia ninguém quando chegou ao Rio. A salvação estava na carta que lhe dera sua analista na Argentina encaminhando-o para um analisando, que era também analista, no Rio. Carlos Castelan era seu nome. E, como disse a O Globo, Hugo sobreviveu dando cursos de Psicanálise na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Foi graças a uma aluna, filha de general, que obteve residência permanente. 
 
Havia a idéia de aproveitar os analistas argentinos para difundir a psicanálise no Brasil. Em 77, Castelan apresentou duas opções ao recém-chegado: Curitiba, capital do Paraná, e Vitória. “Qual que fica de frente para o mar?”, perguntou Hugo. Entre 77 e 80, Hugo veio semanalmente a Vitória, onde ficava por dois dias, formando grupos de psicanálise. 
 
Em março de 80 descobriu Manguinhos. Ao vê-la, não teve dúvidas: “É o parêntesis de que preciso em minha vida”. Construiu casa e continuou trabalhando em Vitória em seu consultório da Rua João da Cruz, na Praia do Canto.
 
Em 5 de agosto, Hugo se preparava  para o trabalho quando recebeu uma carta. Gritou. Gritou muito. Marianna tinha 21 anos.
 
Interrompe a narrativa e fica alguns segundos em silêncio. Respira fundo, traga o charuto, dá uma baforada. “Lamentamos informar que faz três meses não temos mais notícias de sua filha e pensamos que caiu. Mas também queremos informar que sua neta Vitoria está viva e muito bem”, relembra o conteúdo da carta. 
 
Lía Marianna Guangiroli começou a militar aos 16 anos, sob a influência política do pai. Em meados dos anos 70, ambos militavam nas favelas de Mar del Plata, fazendo o Peronismo de Base (PB). Braço político peronista, o PB organizava as favelas politicamente, marcando aí uma diferença para outras denominações de ação mais contundente, como as Forças Armadas Peronistas (FAP) e os Montoneros.
 
Mais tarde, ela integraria o quadro militar dos Montoneros. “Atirava com as duas mãos”, diz Hugo, que, apesar dos exercícios de tiro, nunca chegou a agir militarmente; atuava como enfermeiro da organização montonera. Marianna passou pelo Chile, México, Brasil e Líbia, onde recebeu treinamento militar. Um dia, no carro, Hugo se surpreendeu. A filha perguntou – “Se importa se eu fumar?” – e então viu a pistola na bolsa que ela abriu para apanhar o cigarro.
 
Com apenas dois meses de Brasil, Hugo recebeu uma carta de Mariana: Pajaro tinha caído. Ele deixava uma menina de poucos meses de vida: Vitoria, filha do casal, primeira neta de Hugo. Marianna não sucumbiu. Foi além: demonstrou incrível força interior. Dizia que ficaria com Vitoria e que não queria ser uma viúva como as outras. “Seguirei militando”, concluiu. Na carta, deixou um endereço no México para onde o pai a partir dali deveria enviar cartas.
 

Hugo esteve com a neta poucas vezes entre 76 e 80. Uma e outra no Brasil, mais uma no México e em julho de 79, em Madri. Naquele ano, recebera outra carta, mais ensolarada: “Venha para a Espanha que tenho que lhe dar uma boa notícia”. Uma vez na capital espanhola, soube que Marianna e Julio César Genoud iriam se casar. Mas foi ao casamento, celebrado em um quartel clandestino dos montoneros em Madri. 

 
O encontro na Espanha foi o último entre Hugo e Marianna. Na despedida, ela ainda diria: “Pai, não vou te ver por um tempo”. 
 
Entre 78 e 80, os montoneros organizam o que se chama de Contraofensiva Montonera, isto é, uma série de operações político-militares com o objetivo de desestabilizar e derrubar a ditadura argentina. “Já sabia da contraofensiva. Os ‘montos’ que estávamos aqui no Brasil, estávamos putos com essa contraofensiva. Não era o momento, seria um assassinato. Muitos saíram. Quase todos os jornalistas, escritores, intelectuais”, analisa Hugo.
 
A fatídica carta da queda de Marianna trazia um endereço de Paris, capital da França, para onde Hugo teria que escrever para ter notícias da neta Vitoria. Despachou a carta no mesmo dia e em 28 de agosto recebe um telefonema: era o amigo Rodolfo Puiggrós, o então reitor da Universidade de Buenos Aires quando Hugo era decano da faculdade de Humanidades e secretário-geral dos montoneros. 
 
“Sua neta está aqui comigo”. disse Puiggrós, que estava no México. Foi para o México. Aos pacientes, avisou que ficaria fora apenas 10 dias, que acabaram durando três meses e meio. “Me lembro que um ficou muito mal”, diz.  
 
Vitoria não estava com Puiggrós. “Está em Cuba”, revelou. “Alguns comandantes consideram o Brasil um país inimigo. Ela poderia estar em perigo e você também”, continuou. Hugo não se curvou. Deu 48 horas para que lhe entregassem a neta; do contrário, entraria com uma denúncia contra os montoneros na Organização das Nações Unidas (ONU) por sequestro. Não era bravata: no Brasil, Hugo trabalhou no Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur), da ONU, e na Cáritas, da Igreja Católica, recebendo e tratando refugiados latino-americanos. 
 
Em poucos dias, embarcou para Cuba, onde encontrou Vitoria em uma creche para crianças montoneras. Hugo acende o charuto e dá mais uma baforada.
 
Vitoria veio morar em Manguinhos com o abuelo. Em poucos meses, já falava limpidamente o português, sem os arranhões do sotaque. Em certos momentos pedia ao avô: “Fala-me sempre em espanhol, porque senão vou esquecer”. Aos 18 anos, decidiu estudar na Argentina. Cursou Cinema. Hoje é fotógrafa de cinema. “Mas não exerce”, diz o avô.
 
Hugo entende que Vitoria ainda não absorveu a própria história. “Está repetindo como filha o mesmo que a mãe fazia, indo de um lado para o outro. Agora decidiu parar em lugar, fazer um casa, em Córdoba”, diz. Daí talvez a intrincada classificação com que configura sua atual relação com Vitoria: íntima, afetiva e complicada.
 
Analiticamente, ele acha que a neta vê nele não apenas o avô extremoso, mas também o culpado da morte da mãe pelas ideias que transmitiu a Marianna. “Não me sinto culpado, analisei isso muitos anos”, observa. Diz ainda que instou por anos para que Vitoria analisasse a própria história, o que ela sempre recusou. 
 
Ao mesmo tempo, o avô derrete-se pela neta: “Mas ela me manda coisas maravilhosas todos os dias, por whatsapp, Skype. Todos os dias”. São fotos e vídeos do bisneto Tao Del Monte. Hugo pega o celular e mostra um pequeno vídeo do pequeno Tao, batendo palmas, brincando na sala de casa. Vitoria vem ao Brasil todos os anos visitar o avô. 
 
Hugo vê com grande alívio o processo de cicatrização da lancinante ferida dos 30 mil desaparecidos da ditadura argentina. “É uma ferida que se está cicatrizando bem, porque os assassinos e torturadores estão presos”, fala. Relembra o caso do primeiro genro: ainda nos anos 80, um torturador confessou ao juiz espanhol Baltasar Garzón que interviera na execução de Raul Del Monte. 
 
  
 
A outra ferida se chama Lía Marianna. Em 1992, o irmão de Julio César Genoud se dedicou integralmente a investigar a morte dele. Assim ele descobriu Silvia Tolchinsky, viúva de um militante montonero que dividiu a cela da prisão do Campo de Maio – o maior quartel do Exército argentino, onde funcionou um dos maiores centros de detenção clandestina da ditadura – com Julio Cesar e Mariana. Sobrevivente, Silvia era a única testemunha possível de tudo o que acontecera na prisão. 
 
Ali Silvia conheceu Claudio Scagliuzzi, filho de general e agente civil de inteligência do antigo Batalhão 601 do Exército, centro de interrogatórios e torturas. Os dois se casaram e se mudaram para Barcelona, ainda na primeira metade dos anos 80. O irmão de Julio Cesar a encontrou e tomou seu testemunho.
 
“Por ela eu soube que Marianna não tinha caído como eu esperava, morta, mas que fora presa durante 10 meses, de 20 de fevereiro até 23 dezembro de 80. Mataram e jogaram de um avião ao mar. Julio Cesar também”, diz Hugo.
 
O homem que deu a ordem de assassinar Marianna, o general do Exército Cristino Nicolaides, integrante da quarta junta militar que comandou o país, entre 82 e 83, foi condenado a 25 anos de prisão em dezembro de 2007, aos 82 anos. O julgamento também condenou outros seis militares, integrantes do Batalhão 601, e um policial. 
 
Era um processo que investigava desde 83 a detenção e desaparecimento de 19 montoneros entre 78 e 80, entre os quais Marianna, Julio Cesar e Silvia. Marianna e Julio Cesar foram presos e desapareceram entre fevereiro e março de 80. Silvia foi detida em setembro.
 
Nicolaides morreu em 2011 por complicações pulmonares, em Córdoba, onde cumpria prisão domiciliar. Tinha 86 anos. General da primeira junta militar, Jorge Rafael Videla, condenado a duas penas de prisão perpétua por crimes contra a humanidade, teve um fim menos digno. Morreu em 2013, aos 87 anos, entronado na privada de sua cela na prisão de Marcos Paz, subúrbio de Buenos Aires. Ou como diz Hugo, portenhamente: “Murió cagando”. 

Mais Lidas