Parada desde abril de 2012, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 3239) proposta pelo Partido Democratas (DEM) para anular o Decreto n.º 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas no País, voltou à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) e deverá ser votada nesta quinta-feira (3). Entidades que apoiam a luta quilombola estão em estado de alerta. A medida é mais uma investida do setor ruralista contra os territórios tradicionais, sob constante ameaça.
O início do julgamento foi desfavorável aos direitos quilombolas. O então ministro e relator, Antônio Cezar Peluso, votou pela inconstitucionalidade do decreto. Mas, alegando “respeito ao princípio da segurança jurídica e aos cidadãos que, da boa-fé, confiaram na legislação posta e percorreram o longo caminho para obter a titulação de suas terras desde 1988”, decidiu modular os efeitos da decisão para “declarar bons, firmes e válidos” os títulos emitidos até agora. O julgamento foi suspenso em seguida, após pedido de vista da ministra Rosa Weber.
A Comissão Pró-Índio, que também trata das questões quilombolas no País, alerta que a eventual declaração de inconstitucionalidade do decreto irá agravar um cenário que já é bastante preocupante. A entidade destaca que, até hoje, somente 5,7% das famílias quilombolas no Brasil contam com terras tituladas, algumas apenas parcialmente regularizadas.
“Os mais 1.400 processos em curso no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] podem ficar paralisados no vácuo das regras para continuidade dos procedimentos”, ressaltou. Além disso, o fim do decreto resultaria numa avalanche de ações de reintegração de posse.
O Espírito Santo está inserido nesse contexto. Os quilombolas do antigo território de Sapê do Norte, formado pelos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, há décadas lutam, sem sucesso, para recuperar o território explorado principalmente pela Aracruz Celulose (Fibria), mas também por fazendeiros e usinas de cana de açucar e álcool. Os processos de titulação estão todos parados há anos, devido a sucessivas manobras judiciais protelatórias.
A Adin foi proposta pelo então Partido da Frente Liberal, atual DEM, em 2004. A sigla alega que o decreto é inconstitucional, por inexistência de lei que lhe confira validade. A ação também questiona a adoção do critério de autodefinição para identificar as comunidades remanescentes de quilombos e da possibilidade de se desapropriar áreas para garantir a regularização das terras quilombolas.
O DEM já havia, em 2001, durante o governo FHC, utilizado de um decreto federal para regulamentar a atuação da administração pública na efetivação do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que garante a propriedade definitiva das terras às comunidades quilombolas.
Os argumentos que fundamentam a Adin são duramente contestados pelos movimentos sociais, pesquisadores, juristas e órgãos do governo. Entidades como a Conectas Direitos Humanos, Instituto Pro Bono e Sociedade Brasileira de Direito Público foram admitidas como amicus curiae no caso, oferecendo informações que sustentam a constitucionalidade do decreto.
As organizações apontam que não basta a “mera” manifestação de vontade do interessado para o direito à terra, são necessários, ainda, atribuição, critérios de territorialidade e identidade coletiva, de nítido caráter histórico antropológico.
Elas defendem, ainda, que a Constituição impõe ao Estado o dever de proteger as manifestações das culturas afro-brasileiras, demonstrando preocupação com a preservação dos valores culturais e do próprio modo de vida dessas comunidades. Anular o decreto representaria, portanto, um retrocesso na tentativa de resgatar a dívida histórica que o Estado brasileiro tem com os descendentes de escravos, vítimas de injustiças e preconceito.