Uma das grandes atrações literárias do mercado nacional do final de 2014 não foi um livro brasileiro, mas um norte-americano: a primeira obra da jovem Lena Dunham: Não Sou Uma Dessas. Lena é roteirista e atriz do seriado Girls, da HBO, que acaba de estrear sua quarta temporada. Ela tem sido considerada voz para uma nova geração de jovens por retratar as novas expectativas da vida adulta sem deixar de lado os fracassos, as indecisões e o “rir de si mesmo”. O livro foi lançado como uma grande aposta e gerou bastante repercussão por tratar de temas pouco abordados por mulheres, como a sexualidade.
A editora de livros da Booklet Edições e do Instituto Últimos Refúgios, Gabriela Cuzzuol Ribeiro, faz, a seguir, uma resenha sobre o livro de Lena Dunham.
Por Gabriela Cuzzuol Ribeiro
Especial para Século Diário
Não Sou Uma Dessas é um livro que se entrega pelo título. Até aí, nenhuma novidade: não é raro obras literárias mostrarem a que vieram já na capa.
O que diferencia este relato autobiográfico de tantos outros é o fato de nele, Lena Dunham transpor para a linguagem literária – especificamente a prosa – o que já fazia em cinema e TV: falar sobre si mesma. As 304 páginas que seguem, comprovam que o livro é – de fato – uma coleção de memórias dela, sobre ela e para ela.
Dunham – porém – está longe de ser “uma dessas”. Criadora (além de roteirista e atriz), de uma aclamada série de TV norte-americana, possui uma legião de fãs que beiram a idolatria, já foi oito vezes indicada ao Emmy e é vencedora de dois Globos de Ouro. Tudo isso aos 28 anos. Sua bem-sucedida carreira se deve à capacidade que a autora tem de retratar a realidade do jovem sem “filtros”, sem “rodeios” e de forma muito divertida. Dilemas como desenvolvimento da sexualidade, uso de drogas, escolha e ascensão profissional, relação familiar, busca da própria identidade, luta para encontrar o amor e aceitação do corpo são tratados por meio de situações cotidianas que poderiam ser vividas por qualquer adolescente da Nova Iorque dos anos 2000. Por isso é tão fácil se identificar com as dúvidas e conflitos vividos por ela.
As semelhanças entre autora e “esse tipo de garota” (tradução de Not that Kind of girl, título original), entretanto, param por aí. Filha de artistas da renomada cena alternativa norte-americana das décadas de 1970 e 1980 – a fotógrafa e designer Laurie Simmons e o artista plástico Caroll Dunham – a autora sempre teve a cena contemporânea de Nova Iorque como “pano de fundo” para suas experiências. O estilo de vida dos pais sempre foi determinante em sua visão de mundo – é possível percebê-las até quando a autora não faz questão de falar neles abertamente, o que acontece quase o tempo todo. A influência dos pais permeia textos, subtextos, entrelinhas, opiniões e comportamento da autora nos cinco capítulos do livro – ou sessões, talvez em uma referência à terapia, que ela frequentou durante grande parte da vida. Em um dos capítulos, por exemplo, Dunham narra sua desesperada tentativa de transformar suas férias no acampamento em algo tão sensacional quanto costumava ser para sua mãe, na época da própria adolescência. Fica claro como as experiências de uma se misturam às da outra. Em outra sessão, ela descreve como a mãe chorou ao descobrir que a filha mais nova era lésbica e, coincidentemente, um choro copioso também foi reação que Lena teve. A oscilante relação de aceitação e rejeição do próprio corpo, ou mesmo a forma de vivenciar o feminismo é altamente influenciada por Simmons, não apenas a figura materna e o referencial de mulher – como é comum a qualquer menina – mas, inclusive, as perspectivas da artista – que tinha a marca da questão feminista no centro de sua arte. No início da década de 1970, ela costumava fotografar o próprio corpo nu ou seminu em cenas cotidianas; trinta anos depois, Lena Dunham segue aparecendo na TV em cenas cotidianas, em muitas, sem roupa total ou parcialmente.
A parte atribulada da relação entre Lena e Laurie Simmons também é revelada no livro: as brigas, as incompatibilidades e a incompreensão, geradas até pela semelhanças, estão lá – ainda que de forma sutil e menos constantes do que a forte influência exercida pela figura materna.
A maior polêmica do livro, entretanto, é relacionada à irmã, a atriz Grace Dunham, seis anos mais nova. Em uma determinada cena, a autora narra que na infância, teria “mexido” na vagina de Grace, então, um bebê. A cena levou diversos leitores a questionar até que ponto, a atitude da autora, quando pequena, se aproximava de assédio sexual, o que fez Dunham ir a público refutar tais acusações. A outra grande polêmica do livro também é relacionada ao sexo: Lena narra uma cena em que supostamente teria sido estuprada.
Repleto de polêmicas, cenas divertidas, algum drama, posicionando-se pouco e levantando as bandeiras que a tornaram conhecida, a “selfie literária” (descrição utilizada pela revista Veja na resenha do livro) da autora é o exemplo de um projeto editorial de sucesso. Ele dá ao leitor exatamente o que ele espera: Lena Dunham no maior estilo “perde o glamour, mas não perde a piada, nem a sinceridade”. É uma espécie de Girls exagerado, estendido, editado e impresso, na medida certa, para não errar. Nem poderia: a autora recebeu um adiantamento de 3,7 milhões de dólares – quase 10 milhões de reais – pelos direitos de publicação (em suportes impresso e digital). Aposta arriscada, mesmo para a gigante Random House, quinto maior grupo editorial do mundo.
O lançamento do livro celebra um casamento perfeito com os filmes as séries de TV, outras linguagens que a autora utilizou para seus relatos autobiográficos. A narrativa é fluida, ágil e traz várias situações encenadas em Girls e Tiny Furniture – cujos processos de criação (ou falta dele) são, inclusive narrados no livro. Os cinco capítulos do texto equilibram bem humor e drama e dialogam com as outras criações de Dunham, além de serem repletos de elementos comuns aos leitores, fundamentais em um livro que tinha a obrigação de dar certo. As bandeiras levantadas – entre elas – o feminismo, são abordadas sem exageros nem muito comprometimento, como se “para não afugentar os discordantes radicais”.
O livro não é, entretanto, este apanhado de itens questionáveis. A grande maioria das discussões é pertinente – talvez diminuídas pelo viés adotado – mas isso não anula a importância delas para o público leitor. Entretanto, a melhor parte são os raros “lampejos de sensibilidade espontânea” de Dunham, como quando fala sobre o atual companheiro, Jack Antonoff. Entretanto, eles não são regra.
É como se a autora não se aprofundasse em nada e se posicionasse pouco, a fim de não prejudicar o projeto de um livro abrangente ao maior público possível. Uma publicação sem nacionalidade, sem religião, com faixa etária, com enredo fixo, data e pano de fundo conhecido e esperado, de tal forma, que até o hibridismo narrativo proposto – como as “famosas” 10 páginas de dieta inseridas no meio do texto, não acrescentam, de fato, nada substancial à narrativa.
A resenha do The Guardian sobre o livro afirmou que ela tem um talento brilhante e que escreverá livros melhores. Segundo a crítica Hadley Freeman, talvez ela precisasse de um editor para dar alguns conselhos sobre a narrativa e é uma vergonha que seus editores norte-americanos tenham corrido alucinadamente para lucrar às custas da “indústria Lena Dunham”. O que Freeman não levanta é a possibilidade dos editores da Random House serem impressionantemente competentes, afinal, foram capazes de criar detalhadamente o projeto de um livro, cuja execução tem sido extremamente bem-sucedida. E, sim, no universo editorial, é a capacidade de comunicação do livro com o público que mede o sucesso dele. Isso a autora faz muito bem. Em meio a tal projeto, resta saber, quem, de fato, Lena Dunham é.