A decisão da administração do Parque Nacional do Caparaó de não permitir filmar os índios da aldeia guarani em cerimônia religiosa no Pico da Bandeira, indica que o governo federal quer mesmo, afastar os índios da unidade de conservação.
Esta interpretação é do cineasta Marcos Valério Guimarães sobre a posição da direção do parque em relação a um pedido seu para filmar os índios no local. A unidade é do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental do governo federal.
A proibição de filmar os índios na área do Parque do Caparaó foi comunicada oficialmente ao cineasta no final de janeiro último, depois de longo silêncio sobre o pedido.
Marcos Valério Guimarães é cineclubista e diretor de cinema. Está produzindo um documentário em curta metragem (assista abaixo a um trecho exclusivo do documentário) sobre a obra do maestro Jaceguay Lins. O maestro viveu por anos em Vitória, e foi compositor, arranjador e poeta.
Uma das composições de Jaceguay Lins que está no documentário em produção por Marcos Valério é Tekoa Porã, uma sinfonia em homenagem ao povo guarani. Povo que há décadas busca a Terra Sem Males, onde quer viver.
Nesta busca chegaram ao Caparaó, onde construíram uma minúscula aldeia, com três casas e o opu (casa de reza). E seguem na luta, que é de todo o povo guaran: cumprir missão que receberam neste sentido.
Na aldeia do Caparaó vivem herdeiros da xamã Tatantin-Rua Retée. São oriundos da República Guarani, que os jesuítas instalaram em território brasileiro, uruguaio, argentino e paraguaio de 1609 a 1768. Nessa república, os índios sofriam a catequese e eram obrigados pela Igreja Católica a viver em missões.
Tatantin conduziu seu grupo do Rio Grande do Sul, sempre pelo litoral, até o Espírito Santo. Buscava a Terra Sem Males onde deveria viver seu povo.
Imaginou tê-la encontrado quando, ao atravessarem a foz do Rio Piraquê-Açu, em Santa Cruz, desconfiaram que pelas características do local, que a terra estava próxima. Seis quilômetros depois encontraram os Tupinikim e por lá ficaram. A xamã achou que havia enfim chegado à Terra Sem Males.
Tatantin (foto acima) viveu 104 anos, boa parte no Espírito Santo, onde chegou na passagem dos anos 60 para os 70. Morreu há pouco mais de 20 anos, e foi enterrada no cemitério de Santa Cruz. Pouco antes de sua morte, ela, por sinais como a morte prematura de algumas crianças, entre outros episódios que ocorreram, chegou à conclusão de que tinha errado ao apontar a região como o local da Terra Sem Males.
Os eucaliptos e os interesses econômicos da então Aracruz Celulose (hoje Fibria) expulsam os índios. Foram para Guaparari, mas voltaram para a região e lá estão até hoje. Em capítulo à parte, os guarani também foram levados pela Funai para Minas Gerais, mas se recusaram a permanecer por lá.
No final de sua vida, Tatantin deixa para um descendente seu, o pajé Tupã-Kwaray, a tarefa recorrer ao Deus da Montanha com o objetivo de obter a indicação para onde deverá seguir o grupo até a Terra Sem Males.
Para cumprir a missão, Tatantin indicou que os índios subissem para a região do Caparaó, onde acreditam morar o Deus da Montanha e, lá, esperar sua mensagem. Eassim fizeram.
Os índios realizam a cerimônia religiosa para ouvir o Deus da Montanha sempre no mês de setembro. Para eles, tudo se modifica nesta ocasião e os beija-flores estão em festa. Entendem os índios que os beija-flores, puros, são xamânicos e serão usados pelo Deus da Montanha para orientar os índios.
Os índios fizeram cerimônias religiosas na região, uma delas no Pico do Cristal, com 2.798 metros de altitude, esperando um contato do Deus da Montanha. A primeira cerimônia foi em 1996.
Na quarta tentativa, em setembro de 1999, a mídia nacional e até internacional, além de um exército de curiosos, atrapalharam a cerimônia. Nestas tentativas não ouviram o Deus da Montanha.
Foi por esta época que os índios, sempre em respeito à sua religiosidade, decidiram que deveriam estar próximos do local das cerimônias em busca de seu Deus, para facilitar o cumprimento da missão de sua maior líder religiosa, a xamã Tatantin. Mas como, se não tinham terra?
O jornalista Rogério Medeiros, que acompanha e apoia a luta dos índios desde a década de 60 do século passado, conta que foi nesta ocasião que ele e um pequeno grupo de amigos decidiram comprar um terreno no Caparaó, ideal para os índios por ser próximo do Pico da Bandeira e com boas condições naturais.
Os índios então ganharam o terreno, uma pequena área, e fizeram sua aldeia. Como pela lei brasileira os índios não podem ter patrimônio, eles não puderam receber a escritura do terreno. Mas são os donos da terra doada.
Por esta época, o governo federal decidiu aumentar a área do Parque Nacional do Caparaó. A área onde está a aldeia era de amortecimento da unidade de conservação e podia ser ocupada e trabalhada, desde que respeitada a natureza. Como os índios sempre fizeram, e fazem no local, onde plantam cereais, como o milho, horta e criam galinhas. Com a ampliação da área do parque, a terra que é dos índios por doação, foi incorporada à unidade de conservação.
É desta data, como relata Rogério Medeiros, que começa a indisposição do parque com os índios. Tudo foi feito para que os que compraram a terra e a entregaram aos índios por doação, concordassem em em receber indenização para que a terra fosse incorporada ao parque. Desta forma, os índios perderiam o que ganharam e teriam que deixar a terra. O grupo que comprou a terra com o propósito de doá-la aos índios se recusou a fazer o acordo proposto pela Fundação Nacional do Índio (Funai), reafirmando à Funai que a terra deve permanecer com os índios.
Por sua vez, os índios recusaram a cumprir ordem da Funai para sair do local. Repeliram todas as tentativas e armadilhas da Funai neste sentido. Então, o Parque Nacional do Caparaó, principal interessado nas artimanhas da Funai, “declarou guerra” aos índios.
O Parque do Caparaó não quer tirar mais ninguém, onde têm até fazendas, pousadas e sítios. Só os índios guarani. Com os outros ocupantes da área e das comunidades próximas, fora um ou outro, os índios se entendem: têm relação respeitosa. Não há desavenças.
Na “guerra declarada” pelo Parque do Caparaó e pela Funai contra os índios da aldeia, há toda uma campanha, com informações mentirosas com a de que eles levam brancos para caçar no parque. Facilitar brancos na caça de animais silvestres é difamante para os índios, e os boatos continuam a ser espalhados na região.
Os inimigos dos índios procuram tornar azeda a relação com os brancos também no campo religioso. Não têm tido pleno sucesso, pois a região têm outras religiões. Um dos grupos é de praticantes do Santo Daime. Os que praticam as crenças desta religião vivem de forma alternativa, e são pessoas com que os índios convivem em paz.
O terrorismo do parque na área cultural, que afeta a religiosidade dos índios, foi percebido facilmente pelo cineasta Marcos Valério, quando decidiu fazer a locação da cerimônia dos índios na sua busca pelo contato do Deus da Montanha. Ao informar à direção do parque que o objetivo da filmagem na região tinha os índios como centro, começou ouvir a zanga dos burocratas. Ouviu frases como: “Os índios prejudicam o parque e não são bem vindos aqui”.
“É uma questão velada. Tudo parecia indicar que teria autorização para filmar na área do parque. Ao informar que filmaria a cerimônia dos índios, a administração do parque disse que os índios prejudicavam o parque e que teria que consultar seus superiores no Instituto Chico Mendes”, conta Valério.
Como a resposta do parque não vinha, e o prazo do cineasta para conclusão do documentário estava se esgotando, Marcos Valério decidiu ir ao Caparaó e conversar diretamente com os índios, filmá-los na cerimônia que ilustra a música Tekoa Porã, nome indígena da aldeia Guarani de Boa Esperança, de Santa Cruz.
Lá encontrou Anderson Nascimento, chefe de Unidade de Conservação II do Parque Nacional do Caparaó – ES/MG, órgão do ICMBio – MMA, como o próprio funcionário se identifica. Cobrou a resposta sobre seu pedido.
A resposta ainda demorou, mas veio na forma de mensagem eletrônica. “Prezado Marcos Valério, conforme já conversado pessoalmente, após consulta ao Coordenador Geral de Uso Público e Negócios e sua prévia oitiva do Diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação, o ICMBio se posiciona desfavoravelmente ao referido pleito de filmagem no Parque Nacional do Caparaó, tendo em vista a ausência de compatibilidade da solicitação com os propósitos do Parque. Sendo assim, NÃO ESTÁ AUTORIZADA a produção de imagens no interior do Parque Nacional do Caparaó, no âmbito da referida produção. Desde já, grato pela compreensão”.
O cineasta e os índios então decidiram colocar momentaneamente o Pico da Bandeira de lado. E fizeram a locação na aldeia.
O cineasta avalia que o governo federal tem políticas positivas na área social. E quando analisa a situação dos guarani do Parque do Caparaó, conclui que é uma contradição do governo federal querer retirar índios da área de amortecimento da unidade de conservação. E uma discriminação à cultura indígena no seu campo religioso.
Pessoas que convivem com os guarani e conhecem sua determinação de manter sua religiosidade, sabem que a busca pelo Deus da Montanha vai continuar. Até que ouçam a indicação do caminho que os levem à Terra Sem Males.
Sabem também que os 14 guarani da aldeia do Caparaó, por nada deste mundo arredarão pé do local. Os índios não temem nenhuma força, seja a persuasão ou armas, se respeitam a seu Deus. E seguem a determinação de seus líderes religiosos, onde pontificou a xamã Tatantin, para saber onde está a Terra Sem Males, para onde um dia irá todo o povo guarani.
Quer queiram ou não os burocratas do Parque do Caparaó e da Funai, os índios vão esperar ali o tempo que for preciso. E, sempre, quando setembro chegar, estarão alertas ao chamado e às orientações do Deus da Montanha, à espera de um sinal que indique a Terra Sem Males.