Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Agência Porã
A moradora mais antiga da cinqüentenária casa ainda está lá, uma mangueira alta, imponente e prolífica, o tronco acolhendo peperômias, samambaias e orquídeas, a base guarnecida por um singelo laguinho de traços sinuosos. Com o fícus que cresce do lado oposto – plantado há 15 anos, quando o umbigo do filho de Ludmila caiu – compõe a abóboda natural que côa a luz do sol, forra o piso de pedras portuguesas com folhas secas e dá a sombra boa e fresca que cobre o ambiente.
O fícus, aliás, com toda a vênia à aura de tradição da mangueira, tem uma boa história. Há alguns anos, um condomínio vizinho foi à Justiça contra Ludmila por causa da árvore. Implicaram com as folhas: o denunciante requereu o corte cabal da árvore porque esta deixava muitas do lado dele. Ludmila resistiu, tanto pela simbólica carga materna quanto por questão prática. “Se cortar a árvore, acabou o Jardim Secreto”, resume, de olhos arregalados, a denunciada. Jardim que se preze tem que ter uma boa árvore.
Deu certo. O fícus sobreviveu e seus galhos, a cinco metros de altura, continuam acenando para a vizinhança. Mas afora carregar um simbolismo materno e sombrear aulas de yoga e miniweddings, a história acima tem mais um significado: metáfora que conta com lirismo e eloquência a relação de uma casa e sua dona. O espécime é realmente iluminado.
A produtora de moda Ludmila Perim tem 48 anos e mora desde os três na elegante edificação dos anos 50 encravada no acesso da Rua Moacir Avidos, na Praia do Canto. Quando foi erguida, o recôncavo da Praia Comprida quase batia ao portão da casa; Ludmila ainda lembra as baratinhas pretas de praia, comuns nas pedras à beira-mar, que de vez em quando davam o ar da graça ao seu portão.
Hoje os vizinhos do entorno são outros: um bando de prédios altíssimos de arquitetura anódina que só faz ressaltar ainda mais a fachada clássica da casa, as árvores e folhagens ornando o quintal, o muro baixo e singelo. Mas não fosse um temperamento obstinado e um coração que não vê outro refúgio senão aquele, a casa há muito já teria virado memória para se tornar outro prédio insosso.
No ano em que Vitória revisa seu Plano Diretor Urbano (PDU), o instrumento que regula a organização da cidade, a Casa Rosa é um tocante exemplo de uma construção tradicional que resistiu não apenas ao tempo, mas sobretudo ao assédio da fúria cimentocrata capixaba, que fez da Praia do Canto uma das áreas mais pressionadas do Espírito Santo. Nos últimos anos, contudo, o espaço diminuiu e a fúria arrefeceu.
Ludmila não vende a casa de jeito nenhum. É interessante falar com ela acerca das investidas do poder imobiliário. Não é o recato que lhe impede de revelar valores ou propostas. Não fala porque simplesmente nunca abriu a guarda para o olho gordo alheio, ou seja, se mal dava espaço para a primeira conversa, para uma segunda, então, impossível.
As táticas de aproximação variavam pouco. Primeiro tentaram o contato direto, em que não lograram êxito. Aí veio a mais usada e comum: terceirizar os recados. “Chegavam em alguém que me conhecia para não dar cara de business”, diz ela, que, de vez em quando, salpica um termo em inglês nas frases.
O recado era sempre um canto suave como “Você conhece a Ludmila? Dá um toquezinho nela, vai ser um bom negócio”. Mas… “Nunca mais chegaram no portão porque sabiam que eu ia rosnar mesmo. E dessa maneira vieram os recados, que entravam por aqui e saiam por aqui”, conta, apontado os ouvidos.
Algumas vezes teve que remar contra a maré dentro da própria casa. As propostas às vezes adoçavam os ouvidos do pai. Homem de negócios, Ludmila mostra profundo e autêntico respeito por sua natureza empreendedora. Tais inclinações, no entanto, não a isentaram da aflição de imaginar a casa reduzida a uma lembrança no Google Imagens. Não nega que chorou algumas vezes, como há dois anos, quando ele mostrou uma planta com o projeto de um mini shopping para o local.
Por outro lado, a casa é fruto justamente da natureza empreendedora do pai. A família morava em São Torquato e ele experimentava uma fase de ascensão. A filha estudava no Sacré-Couer, a tradicional escola da Praia do Canto, o que impunha uma cotidiana e exaustiva jornada aos pais. A esposa sugeriu ao marido: “Arruma alguma coisa naquele lado de lá, vai ficar mais fácil”.
Além de ter sido prefeito de Vitória, nomeado na década de 30, Álvaro Sarlo foi um dos mais atuantes engenheiros do Estado. Integrou o corpo técnico que fiscalizou a construção da ponte de Linhares e foi o responsável pela construção de inúmeros prédios no Centro de Vitória – como o edifício do Sindicato dos Operários Estivadores, na Avenida República, em 1946.
Era conhecido pelo preciosismo, que se revela na casa em estilo eclético que construiu para morar, nos anos 50, que a família Perim preservou e se nota na residência de Ludmila, que ocupa cerca de um terço do imóvel.
À entrada da residência, além da amplitude da sala de estar, o que se nota é o verde do jardim vertical disposto na parede oposta. Mas quando se corre os olhos de verdade pelo recinto, o que avulta são os dois arcos ogivais vazados. Velados por fora pelas trepadeiras do jardim e, por dentro, por uma fina e transparente cortina, deixam passar aquele vento típico do litoral – forte, suave – que invade a sala, infla a cortina, refresca garante iluminação natural e refresca naturalmente a tudo e a todos.
Os arcos cumprem uma função não apenas funcional, mas também estética: promovem um equilibrado contraste com a decoração pop do recinto – um sofá baixo dominando a paisagem, uma mesa amarela, uma cadeira de assento e espaldar vermelhos, o toque lúdico da mesa de canto emulando uma caixa de fósforos Fiat Lux, livros e revistas espalhados, uma instalação de espelhos na parede de concreto.
Meio à brinca, Ludmila chama seu recanto de loft. O pé-direito é alto. Entre a parede oposta à entrada e o teto um vão de centímetros deixa vazar mais um jorro de luz natural. Os espaços são integrados: entre a sala de estar e a de jantar havia uma janela, há pouco tempo removida dar lugar uma abertura de vidro, integrando ainda mais os ambientes.
A sala de jantar, aliás, pequena, se diferencia do living pela pegada romântica, com mesa redonda e cadeiras de ferro fundido, papel de parede e um suntuoso lustre; integra-se por sua vez à cozinha americana. Duas escadas, cada uma em uma sala, comunicam as parte superior e inferir da casa.
Esse equilíbrio entre o clássico e o contemporâneo vem da própria Ludmila. Após concluir o então segundo grau no Sacre-Couer, foi para São Paulo fazer Hotelaria. Não era a sua praia, razão pela qual partiu para Miami (EUA) poucos anos depois para fazer fashion merchandising (algo como produção de moda) e cenografia. Ficou entre Estados Unidos e Brasil durante um bom tempo. Surgiu uma oportunidade da vida para deslanchar na carreira. Era em Londres. “Ou disparava ou fazia essa historinha de casar”. Escolheu fixar-se em definitivo no Brasil. Era 2000.
O espaço que hoje abriga o Jardim Secreto, um espaço arejado, a céu aberto, nos fundos da casa, era, então, um amontoado de entulhos. Ludmila e a mãe, de quem ela herdou o apego pela casa, puseram a mão na massa para remoçar o local. Mas quatro anos depois, sofre um baque: o falecimento da mãe. Ludmila conta que passou quatro anos sem coragem para mexer na casa dela. Quando se recompôs, veio a realidade: teria que se virar de alguma forma para manter a imensa casa.
Pouco tempo depois, abre o Donna Lora na Rua Aleixo Neto, que, mais alguns anos depois, seria levado mensalmente para seu Jardim Secreto sob o nome de Mercatto Donna Lora, evento de perfil multicultural. Foi justamente o Jardim Secreto (foto abaixo), através dos pequenos porém regulares eventos que recebia, que acabou cobrindo os custos da casa. “Agora, ele caiu nas graças das noivas. Tenho feito muito mini weddings (festas de casamento para no máximo 100 pessoas) no meu jardim. Tá rolando”, diz.
Seu empenho empreendedor ganhou contornos mais consistentes há dois anos, quando foi inaugurado o Bendito Bistrô. Hoje o espaço também reúne uma sala da Herbalife, outra de massagem ayurvédica, a loja da estilista Suellen Decottignies… “That’ it”, finaliza. Uma vitória recente foi o desmembramento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) em três: dois comerciais e um residencial. Esse quadro que reúne gastronomia, arte e práticas de saúde alternativas resume o conceito da Casa Rosa.
Ludmila está mais segura do que deseja para a casa. Explica isso de maneira simples e didática: se até aqui não sucumbiu às pressão do mercado imobiliário, ou seja, atravessou incólume a fase de devaneios materiais típica dos 30 e poucos anos, 40 anos, não é agora que vai se render a fáusticas ofertas de bons negócios. “Agora estou querendo menos do que mais. Acho que o clímax já foi”, diz ela, numa boa, de Havaianas nos pés.
Se pensarmos que a Moacir Avidos, tanto no início da ocupação da Praia do Canto, então Praia Comprida, quanto nas fases de consolidação e posterior verticalização do bairro, era um núcleo sempre visado, podemos classificar de heróica a sobrevivência daquela Casa. O livro Cidade Prospectiva (Edufes/Annablume, 2009) nos dá algumas indicações nesse sentido.
Rua mais estreita da Praia do Canto, a Moacir Avidos acolheu em seu entorno um dos primeiros núcleos de ocupação do Novo Arrabalde, o plano assinado por Saturnino de Brito e apresentado em 1896 que almejava a expansão ordenada de Vitória. No entanto, em função de crises econômicas, o que impediu as sucessivas administrações estaduais de prover a área de infraestrutura mínima (como no Centro da cidade), e apesar das leis criadas para estimular a ocupação, esta até 1930 era discreta.
As residências situavam-se predominantemente também ao longo da Avenida Ordem e Progresso – hoje Saturnino de Brito – e da Rua Duckla de Aguiar.
A efetiva ocupação da Praia Comprida e da Praia do Suá começa a partir da década de 30, tendo a chegada do bonde como vetor. Mas é só nos anos 50 e 60 que a região consolida-se como área essencialmente residencial. Um detalhe: na década de 20, as poucos casas destinavam-se a aluguel ou veraneio; agora, elas são construídas para domicílio efetivo.
A região cai definitivamente nas malhas do mercado imobiliário a partir dos anos 60, quando os primeiros edifícios, de quatro a cinco andares, começam a nascer. A verticalização da Moacir Avidos começa na segunda metade dos anos 70, movimento intensificado na década seguinte e que se espalha pelo restante do bairro, além de Barro Vermelho e Santa Lúcia. Motivo: a regulamentação do primeiro PDU de Vitória, em 84. A construção civil se antecipou a possíveis, digamos, inconvenientes.
Nas últimas duas décadas, em especial na primeira dos anos 2000, a Praia do Canto cresceu expressivamente. O Censo Imobiliário do Sindicato da Construção Civil do Estado do Espírito Santo (Sinduscon-ES) registra 1.552 unidades em construção na região 2 (Praia do Canto, Barro Vermelho e Praia de Santa Helena); um ano depois, o mesmo documento registra 1.956 unidades em construção.
Não à toa dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam a Praia do Canto como o terceiro bairro da cidade que mais registrou ganho de população entre 2000 e 2010, passando de 12.730 mil habitantes para 15.147.
O censo imobiliário mais recente, de outubro de 2014, indica que a onda passou, registrando 417 unidades em construção e nenhum lançamento no período. Mas deixou seus efeitos, sobretudo em termos de mobilidade: a implantação do estacionamento rotativo no final do ano passado, ofertando 1.849 vagas em 14 ruas do bairro, racionalizando o uso do espaço público pelo bairro mais carrocrata de Vitória, é um eloqüente indicador.
Mas curioso: é justamente esse bairro o que se verifica um crescente uso da bicicleta como modal alternativo de transporte. De modo rasteiro, tal redesenho de hábitos só se consolidou após a assimilação do discurso “um-carro-a-menos pela classe média”, que, em “Vitorinha”, encontra seu sentido mais pleno em lugares como a Praia do Canto.
A última onda da pressão imobiliária veio antes da última revisão do PDU, em meados da década passada. O mercado tentou novamente se antecipar a possíveis restrições; hoje o gabarito máximo permitido é de cinco pavimentos. A casa, sabemos, sobreviveu. “Nunca imaginei quando chegavam: ‘Vem cá, vamos fazer um negócio?’. Não tinha negócio. É a mesma coisa que falar: ‘Vem cá, seu filho é muito bonito. Vamos fazer um negócio?’”, compara.
Não tem negócio. A única coisa que por ora Ludmila projeta para a casa é um “jardim mágico” no Jardim Secreto. Este, em verdade, é um modesto canteiro, cujo solo e plantas – folhagens na maioria, com uma palmeira-real se impondo além da mangueira e do fícus – foram supliciados pelo tempo seco que castiga Vitória. Pensa em aterrar o lago e erguer um jardim suspenso; ao lado, onde há espécies de cabines vedadas por cortinas, projeta um orquidário.
Mas sem pressa, ainda mais agora que a construção não apenas sobreviveu como há quatro anos é um patrimônio histórico da cidade. Uma resolução de 2011 tombou a casa no grau de proteção integral secundária, conferido a edificações e obras que, mesmo descaracterizadas, devem receber restauração total no exterior e adaptação para atividades no interior. Moral da história: agora que a casa não cai mesmo.