Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Porã
No início dos anos 80, José da Mata morava em Araçás, Vila Velha, e trabalhava na Vale, em Vitória. Até aí, tudo ok, tanto no emprego de técnico em manutenção industrial quanto na casa em que morava com a esposa. O problema era ir de lá para cá e de cá para lá. “O trânsito era um inferno. Era uma hora e meia de manhã e outra à tarde”, lembra, com bem-humorada amargura.
Despertava às seis da manhã para pegar o ônibus da empresa e chegar ao ganha-pão às 8h; o expediente terminava às 17h e ele aportava em casa às 19h30, 20h. Foram dois anos e meio nessa dureza.
À época o Centro de Vitória ainda concentrava a essência da vida econômica e social da região metropolitana. Desde o início da década anterior, suas vias estreitas foram vencidas pela explosão populacional abrupta pós-Grandes Projetos Industriais e não absorviam o fluxo de veículos e pessoas, engendrando aqueles engarrafamentos de cada horário de pico matutino e vespertino que ainda hoje flagelam a região.
Um dia o casal enjoou dessa vida. Decidiram comprar um apartamento na planta em um bairro próximo ao trabalho dele: Jardim Camburi. Mudaram-se em 1982 e lá moram até hoje, 33 anos e duas filhas depois, com apenas uma diferença, alegórica: enquanto Jardim Camburi subiu, seu José desceu.
Explica-se: em 82, o casal foi morar no segundo andar do Edifício Sans Souci, um dos primeiros condomínios do bairro, com três torres de três andares cada, à Avenida Ranulpho Barbosa dos Santos. Nos primeiros anos, lembra, contemplavam a Ponta de Tubarão e o Convento da Penha da janela da sala. Mas a vista desapareceu à medida que o bairro cresceu.
Foram duas décadas de Sans Souci. Agora a vida vem sendo docemente vivida numa casa geminada na Rua Herwan Modenesi Wanderley.
Seu José pegou a contramão do paradigma imobiliário de Jardim Camburi dos últimos 20 anos: enquanto a maioria absoluta foi morar em apartamentos, ele deixou um para viver numa casa. O casal buscava mais conforto e menos escadas, de olho nos estorvos da idade. Saíram à caça de outro apartamento, mas a sorte lhes apresentou uma casa. As filhas incentivaram e ele cedeu. Hoje acha ótimo, um autêntico refúgio em que, jardineiro diletante, cultiva plantas frutíferas, ornamentais, ervas e hortaliças, além de criar uma cadela roliça e um gato preguiçoso – ambos simpáticos.
Às vezes, surpreende os outros: “Um camarada um dia me perguntou: ‘Em ainda existem casas baixas em Jardim Camburi?’”, conta ele, nascido e criado em Santo Antônio. Esta, no entanto, não é a única peculiaridade na vida dele que de certo modo reflete a história recente de Jardim Camburi.
Quando chegou, o bairro estava longe – e bota longe nisso – de ter a infraestrutura urbana que hoje exibe nas ruas asfaltadas, sinalizadas, iluminadas, limpas, com obras de macrodrenagem, com equipamentos públicos de saúde, educação, lazer e segurança (ainda que falhas, especialmente o último item).
Não mesmo. Ele se lembra de ruas de chão batido, no máximo com calçamento de bloquete, muito terreno baldio. O transporte público era precário. Para seu José, no entanto, o problema que mais o afligia era a (falta de) limpeza pública, agravada pela precariedade urbanística do bairro. Quando chovia, então, o bairro virava um respeitável lamaçal.
Em termos de serviços, a diversificação era zero: recorda-se apenas de duas singelas mercearias. As operações mais complexas da vida eram todas, claro, realizadas “na cidade” – o Centro. Jardim Camburi era, então, um bairro essencialmente residencial.
Viu o bairro crescer dia a dia: viu terrenos vazios sendo ocupados e casas antigas sendo demolidas para, ao final, prédios brotarem do chão como árvores. Agora, aposentado, vê e sente como qualquer morador os achaques de uma furiosa expansão imobiliária. Sua percepção é de que, nos últimos 20 anos, parece que “descobriram” Jardim Camburi.
Não é apenas impressão. É fato: hoje, com cerca de 50 mil habitantes, Jardim Camburi é o bairro mais populoso do Espírito Santo. Fosse um município, seria o 13° mais populoso, ficando a frente de Barra de São Francisco e seus 43 mil habitantes (IBGE, 2010). Apesar da profunda e positiva reestruturação verificada no período, o bairro dá sinais de que sua infraestrutura não absorveu o boom imobiliário.
O clássico “crescer primeiro para depois planejar” causou a atual dor de cabeça dos moradores: o trânsito estressante, o engarrafamento cotidiano, efeito da manifesta exaustão das únicas vias de entrada e saída do bairro – a Avenida Norte-Sul e as ruas Carlos Martins e José Celso Cláudio. É gente e carro demais para ruas de menos e que parecem se estreitar mais nos horários de pico; o quadro se degrada com o volume que evita a Norte-Sul para acessar/deixar a Serra. No período vespertino, entre 17h e 19h, o trânsito ainda encontra o fim de turno na Vale. Ufa.
Por isso há pelo menos dois anos os moradores se mobilizam para inverter a já invertida lógica. Preparam um conjunto de propostas para apresentar na reunião entre a Prefeitura de Vitória (PMV) e a Regional 8 (Jardim Camburi) para discutir a revisão do Plano Diretor Urbano (PDU). O encontro acontece nesta quarta-feira (1), a partir das 19h, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Elzira Vivácqua dos Santos.
A principal proposta, destaca o secretário da Associação de Moradores de Jardim Camburi (ACJAC), Evandro Figueiredo (foto abaixo), é a limitação da altura dos prédios a oito andares em todas as zonas, mas preservando, enfatiza, a legislação atual de afastamento frontal e lateral. Segundo o PDU aprovado em 2006. Jardim Camburi é basicamente dividida em Zonas de Ocupação Controlada (ZOC), onde, depende da região, se permitem edificações de até 20 andares.
Evandro dá um exemplo palpável da verticalização do bairro e seus efeitos: o empreendimento da Galwan erigido atrás do Hotel Canto do Sol, às margens da Norte-Sul. Um colosso. São cinco torres com 18 andares cada, 396 apartamentos e cerca de 1.200 vagas de garagem. A ocupação média de quatro pessoas por unidade redundará em mais 1.500 moradores e cerca de 500 a 600 carros a mais pegando a estreia Carlos Martins, única via de saída dos novos moradores.
Resulta daí uma eloquente comparação: “Vitória tem 79 bairros e metade tem até dois mil moradores. É como se nos estivéssemos fundando um novo bairro a cada novo empreendimento”. Outro exemplo: o loteamento Santa Terezinha, no final do bairro, atrás da Faculdade Estácio de Sá. Nos idos de 2002, como aluno da faculdade, lembra uma região formada por terrenos vagos e ruas sem calçamento. Pouco mais de 10 anos depois, o loteamento foi visivelmente adensado por inúmeros prédios.
Outras reivindicações são reserva de área para comércio de grande porte, já que os moradores reclamam do serviço oferecido pelos dois supermercados do bairro; obrigar oferta de duas vagas de garagem em empreendimentos com unidades residenciais acima de 60 metros quadrados haja duas vagas de garagem; prédios com sistemas de reuso água de chuva e utilização de energia solar; obrigar oferta de 10% da quantidade de vagas de garagem para visitantes em empreendimentos com mais de cinco mil metros quadrados.
Os censos imobiliários do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Espírito Santo (Sinduscon-ES) indicam por que Jardim Camburi foi celebrada como a “bola da vez” do mercado imobiliário capixaba
O primeiro levantamento, de outubro de 2003, abrangendo também Mata da Praia e Jardim da Penha na mesma região, indica 2.094 unidades em construção. O ápice é registrado em novembro de 2008, com 3.838 unidades em construção. Os dados foram caindo até novembro de 2013, com 2.405 unidades em construção. O censo mais recente, de outubro do ano passado, talvez seja um sinal de que a onda passou: foram verificadas apenas 1.722 unidades em construção.
Por anos Jardim Camburi sentiu outro efeito de uma ocupação do solo orientada menos por planejamento público que pela planilha das construtoras: os alagamentos na área central do bairro, na região da Igreja Católica. Este é o ponto de encontro de uma inclinação topográfica que vem da praia e de Bairro de Fátima. As águas pluviais de um lado e de outro se encontravam ali e alagava tudo e todos. O problema foi contornado graças a uma obra de macrodrenagem que construiu cerca de cinco quilômetros de galerias em 16 ruas do bairro.
A implantação do sistema binário em 13 vias realizada ano passado é apenas um paliativo. Outro poderia ser a bicicleta, mas a julgar pelas palavras do professor e cicloativista Emmanuel Favre-Nicolin, Jardim Camburi não é exatamente um bairro amigo do ciclista, embora, considerando o nível do sistema cicloviário da cidade, não seja dos piores para se pedalar.
“O bairro tem atualmente três opções relativamente boas para entrar e sair. Duas ciclovias dos dois lados do bairro. A ciclovia da Norte Sul e da Rua Munir Hillal. A outra opção é a Rua Delgado Guerra Pinto, paralela à Carlos Martins”, diz. Mas ele pontua ressalvas. Nenhuma das três opções são ideais, principalmente na Norte Sul, cuja ciclovia termina de repente e na Munir Hillal, que na conta com acesso a partir da orla.
As ciclorrotas de Jardim Camburi, indicadas no Mapa das Ciclorrotas da Grande Vitória, ainda exibem sinalização carente. A Prefeitura de Vitória pinta as ciclovias, mas, diz o professor, não o faz os cruzamentos, medida para ele muito mais importante. É o que ocorre, aponta, no caso da Munir Hilal.
Doutor em Física, o francês Emmanuel mora em Jardim Camburi desde 2007 e milita na causa bicicleteira desde 2010 pelo blog, já conhecido pelo meio bicicleteiro, Vitória Sustentável, em que, preocupado com a precária rede cicloviária de Vitorinha, sugeria rotas alternativas e mais seguras na cidade. Aproveitando a revisão do PDU, sugere a implantação de pelo menos duas opções mais centrais para acesso ao ao bairro.
“O ideal seria colocar ciclovias bidirecionais, mas nem sempre é possível. Fazer uma ciclorrota é também uma boa opção, mas teria que ter uma redução drástica da velocidade dos carros”, analisa. Opções em ruas paralelas à praia também seriam bem-vindas.
Outro grande problema do bairro que o PDU pode contornar é a falta de bicicletários. “Ainda hoje, os últimos prédios construídos com galerias comerciais não tem bicicletários nenhum na frente das lojas. É totalmente absurdo”, diz. “Os bicicletários tem que se tornar obrigatória não só para novos projetos, mas também para as lojas já existentes”, conclui.
Em 2000, Jardim Camburi tinha 23.882 mil moradores segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); o censo seguinte, dez anos depois, contabilizou 39.157 mil. O bairro cresce a 8% ao ano, enquanto Vitória a 1%, diz Evandro.
Jardim Camburi é um bairro agradabilíssimo. Seu José dá a medida: “Me sinto tão bem na minha casinha, meus vizinhos são excelentes”. Seus vizinhos de trás, um condomínio de prédios altos erguido há 10 anos, não lhe dá problemas. Amigos antigos também não deixam o bairro por nada e ainda legam a afeição para os filhos.
O bairro é bem contemplado por equipamentos públicos. São seis unidades municipais de ensino, três escolas de ensino fundamental (Emef’s Adevalni Sysesmundo Ferreira de Azevedo, Elzira Vivácqua dos Santos e Maria Madalena de Oliveira Domingues) e três centros de educação infantil (Cmeis João Pedro de Aguiar, Ana Maria Chaves Colares e Rubens José Vervloet Gomes), além de uma estadual de ensino médio (EEEM Renato José da Costa Pacheco).
Há uma unidade de saúde, duas academias populares da pessoa idosa, uma Casa Lar (para moradores de rua com transtorno mental), um centro de convivência para a terceira idade, um núcleo de violência contra o idoso, um campo de bocha, campo de futebol sintético e quadra poliesportiva da Praça Nilze Mendes Rangel, o Parrque Municipal da Fazendinha. A única exceção, reclame antigo e conhecido dos moradores, está na área de segurança pública.
Jardim Camburi exibe uma qualidade urbanística: é um bairro autossuficiente, ou seja, concentra um vigoroso comércio interno, fazendo com que os moradores não precisem se deslocar para outros bairros – o que poderia significar mais um carro na rua – para resolver a vida. Segundo levantamento de 2011 da prefeitura, são 11.707 empresas: 6.914 de serviços, 4.494 comerciais, 290 industriais, 5 de extração mineral, 3 de agropecuária e uma de pesca/aqüicultura. A oferta de entretenimento noturno – vide a Laminha – também é atrativa.
Esse cabedal de atributos – além da proximidade da praia e, no plano econômico, imóveis a preços mais acessíveis que a média da cidade – foi o imã que atraiu o conjunto que hoje forma o perfil dos novos moradores do bairro. Segundo Evandro, 70% dos habitantes moram em Jardim Camburi há menos de 10 anos e, desses, 50% são jovens de 18 a 35 anos. Segundo levantamento da Prefeitura de Vitória com dados do IBGE de 2010, 62,7% dos moradores de Jardim Camburi têm entre 25 e 64 anos; 31,2% têm entre 0 e 24 anos.
Não por acaso, Jardim Camburi exibe em seus lares e ruas muitos jovens recém-casados, com ou sem filho. O advogado André Casotti, 35, traduz limpidamente esse perfil: um jovem casado com filho.
Como quem casa quer casa, em maio de 2011, ele e a então companheira, uma assistente social de 32 anos, se mudaram de Jardim da Penha para Jardim Camburi. O apartamento de dois quartos foi adquirido a preço satisfatório em uma feira de imóveis. É um edifício de oito andares localizado nas proximidades do Shopping Norte-Sul, área, aliás, de verticalização recente. Casaram-se e, 11 meses após a mudança, tiveram o primeiro filho, uma menina.
O casal tem uma peculiaridade que ressalta as qualidades do bairro: não tem carro. Ele não dirige; ela acabou de tirar a carteira de motorista. Fazem tudo a pé ou de ônibus. Supermercado, padaria, compras em geral, tudo a pé. Levar a filha para a creche, idem, ela estuda na João Pedro de Aguiar. Ao pediatra, também. A praia é perto.
Eles vão para o trabalho de ônibus, ele para Bento Ferreira, ela para o Centro de Vitória. André ainda tem a boa sorte de entrar no trabalho às 11h e sair às 19h, o que o abstém dos congestionamentos matutinos e vespertinos. O que não consegue evitar, mesmo, é a deficiência do transporte público: às vezes chega a ficar 40 minutos esperando o ônibus. Superlotação também é fato comum, outro efeito do crescimento.
Em caso de êxito, os moradores poderão, digamos, reaver a tentativa de ordenamento estabelecido pelo primeiro PDU da cidade, de 84, quando a legislação aplicada em Jardim da Penha também o foi em Jardim Camburi. Grosso modo, aquela se preservou e esta se desvirtuou em função de uma diferença fundamental: lá existe um movimento comunitário forte e articulado; aqui, não tanto.
“É preciso deixar claro que não somos contra o crescimento e o desenvolvimento do bairro. Queremos que esse crescimento se dê de forma organizada, planejada”, destaca Evandro.
Em tom de alerta, destaca um dado que ouve em toda reunião de apresentação de Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) no bairro: 29% dos terrenos de Jardim Camburi ainda estão vagos.
Ele dá como exemplo um, enorme, ao lado de um posto de combustíveis na Norte Sul, onde o atual PDU permite construções de até 20 andares. E, em Jardim Camburi, enquanto houver oferta, haverá demanda, caso contrário a Galwan não estaria oferecendo unidades de três quartos, duas suítes e três vagas de garagem a R$ 880 mil ou coberturas duplex de quatro quartos com área total de 270 metros quadrados a R$ 1.870 milhão no supracitado empreendimento. É muito luxo para a Carlos Martins.