Além das pernas, de Aline Dias, jornalista e escritora, é um livro escrito por uma mulher sobre mulheres. E ele, assim de cara, apresenta um título que chega já com duas (ou até mais) interpretações. Pode significar a apresentação da mulher para além da objetificação de seu próprio corpo; ou pode ser uma prévia dos lugares alcançados pelas personagens do livro, que querem ir muito além de onde acreditam que suas pernas podem chegar. Essas, como já dito, são só duas das possíveis interpretações do título, o leitor pode chegar a mais delas – é até o que Aline espera, que sua obra seja interpretada de todas as possíveis formas existentes, sem controle mesmo.
Sim, o destaque do novo livro de Aline Dias tem sido a escolha em escrever uma obra que protagonize as mulheres. “E por que não falar de mulher?”, indaga ela. Porque no Brasil, de acordo com uma pesquisa sobre literatura contemporânea brasileira, realizada pela professora da Universidade de Brasília (UNB), Regina Dalcastagné (pequisa também lembrada pela escritora) 72,7% dos escritores são homens; e 62,1% dos personagens desses livros também são homens. Então, ser mulher escritora e escrever sobre mulher é um destaque, na espera de que isso possa chamar mais atenção de mulheres e até incentivar.
Além das pernas é a segunda publicação da escritora. Seu primeiro livro foi Vermelho, publicado pela editora Cousa, em 2012. Já este é um lançamento da também editora capixaba Pedregulho. A transição entre as editoras se deu por um motivo firme: lançar um livro que praticamente todos os processos dele passassem pelas mãos de mulheres. Dessa forma, a capa foi ilustrada por Isabela Bimbatto, a produção editorial é de Marília Carreiro Fernandes, o prefácio é de Bernadette Lyra, e apenas a diagramação é de um homem, Gustavo Binda, presença explicada por Aline por ser “o diagramador que vou carregar comigo para o resto da vida”.
“Essa coisa de botar várias mulheres no processo recai muito sobre procurar realçar as nossas individualidades como mulheres mesmo. A gente tem direito a falar sobre o que quisermos falar. A gente tem direito a falar como quisermos falar – desde que não ofenda o próximo. Foi um escolha. Eu escolhi colocar um olhar majoritariamente feminino, da mesma forma que o Binda, meu diagramador, escolheu alinhar todos os títulos do conto á direita. Quando perguntei “Binda, por que você alinhou tudo à direita?”, ele me disse “ah, porque eu quis”, acrescenta.
Em 82 páginas, Além das pernas apresenta uma reunião de contos sobre mulheres como Maria, extremamente consciente de sua liberdade sexual feminina (com medo apenas das doenças venéreas); até Jocasta, mulher intensa e decidida de 'nunca mais romance'. São 26 contos de mulheres de diversos tipos e com variadas vozes. A ordem dos contos foi escolhida com exatidão pela escritora – que, inclusive, se preocupa em perguntar sobre se o livro foi lido na ordem em que os contos estão, pois teve intensa dedicação a essa questão.
“Pelo que me recordo, o conto mais antigo do livro é o Tereza, escrito em 2009. O mais recente é o Torresmo, do final do 2013. Mas a primeira versão do livro eu fechei em 2012, pouco depois de lançar o Vermelho. O tempo foi passando e eu tirei e coloquei um monte de coisas, até ter uma costura que achei bacana. Teve uma época em que senti a necessidade de colocar algumas mulheres histéricas nele. Entreguei o livro na ordem, pronto. A Marília revisou, mas não fez nenhuma sugestão de mudança da ordem dos contos, ela concordou. As nossas 'brigas' foram por vírgulas, ela ganhou umas duas e eu ganhei uma duas (por mim ficavam todas as vírgulas)”, lembra Aline sobre o processo de montagem da obra.
“Se a gente não falar da gente, quem é que vai falar?”
De acordo com Aline, as mulheres carregam muito mais peculiaridades do que só ser a histérica ou a boazinha, geralmente abordadas por muitos homens escritores. Essa abordagem histórica prejudica quando cria uma dicotomia entre boa e má que deve ser questionada se apresentam personagens possíveis de existirem. “As mulheres do Nelson Rodrigues mesmo – embora o Nelson seja meio machista – são personagens possíveis de existirem. A Geni é uma mulher extremamente possível no Toda nudez será castigada; no Bonitinha, mas ordinária também, tanto a Ritinha quanto a Maria Cecília suas duas mulheres possíveis de se encontrar numa esquina.
“Mas, outro exemplo é a Capitu, de Machado de Assis. A Capitu é uma mulher possível? De quem é a voz que narra Dom Casmurro? Só é apresentada a versão do Bentinho, cadê a voz da Capitu? Em algum momento ela pôde se defender do todas as acusações feitas a ela naquela história? Eu gosto muito de ler, então essas coisas vão ficando na minha cabeça, de uma necessidade de ter voz, que é uma coisa extremamente natural. A Clarice Lispector fala isso na Hora da Estrela: “Porque há o direito ao grito. Então eu grito”, detalha a escritora.
“A literatura ela não deve se privar de assunto nenhum”
O feminismo é um fator perceptível na leitura da obra de Aline Dias. E ser escritora e feminista são identidades que fazem com que muitas pessoas cobrem dessa mulher uma postura também consciente em não abordar certos temas, como o relacionamento com homens – como no Teste de Bechdel, que questiona a posição do gênero feminino em obras de ficção, algumas das perguntas desse teste é se obra possui pelo menos duas mulheres, com nomes, que conversam entre si sobre algo que não seja um homem. Mas Aline não está voltada a isso, ela não é, e nem quer ser, do tipo que se priva de escrever sobre assuntos. “Não vejo motivo para deixar de falar de qualquer assunto na literatura. Eu falava muito disso com o Francisco Grijó, que foi meu professor, que a literatura vai ficando melhor a medida em que você perde o pudor de escrever sobre os temas. Por que não falar sobre relacionamentos? Por que só o homem tem direito a ter uma musa? E onde ficam os 'musos'? Querer ter voz acaba já virando uma bandeira feminista também. E não tem problema, não tem erro, não tem defeito nenhum em falar de homem”.
Mas em meio aos possíveis passeios temáticos que a escritora realiza em suas obras, ela destaca também os temas que não se sente segura em abordar. “Enquanto escrevia Além das pernas, senti falta de ter uma mulher lésbica em minha narrativa, considerei importante ter. Achava que para o livro ficar pronto eu precisaria ter uma boa história de lésbica e uma boa história de mãe. Só que eu não sou lésbica, nem mãe. Acabou ficando muito difícil. Lembro que sentei com uma amiga lésbica, ela me contou a história inteira da vida dela, era uma história sensacional, sabe. Desde os motivos que a levaram a cortar o cabelo joãozinho, até os motivos que a fizeram voltar a deixar o cabelo crescer e usar maquiagem. Isso foi legal. Mas eu não consegui escrever porque não é um assunto que eu consiga perceber tudo o que envolve”.
O lançamento
Além das pernas será lançado na próxima quinta-feira (9), às 19h, no Doca 183 – Rua Gama Rosa, 183, Centro de Vitória. O livro será vendido por R$ 20. Na mesma noite a ilustradora Isabela Bimbatto realizará exposição da ilustração de capa do livro, além de outros desenhos.