segunda-feira, novembro 18, 2024
27.1 C
Vitória
segunda-feira, novembro 18, 2024
segunda-feira, novembro 18, 2024

Leia Também:

Loucos por Inclusão discute a cidadania de pessoas com transtornos mentais

 
 
Há 28 anos, em 18 de maio, reuniam-se na cidade de Bauru, em São Paulo, mais de 300 trabalhadores da área de saúde mental para discutir reformas acerca da saúde, entre elas a Reforma Psiquiátrica, que buscava repensar o modelo de tratamento ao paciente com transtorno mental, a partir da retirada dessas pessoas do tratamento fechado hospitalar e transferências para os cuidados em âmbito aberto direto com centros de atenção psicossocial. 
 
Em 2001, o tratamento aberto se tornou lei e, assim, os manicômios e locais de tratamento fechado para as pessoas consideradas loucas pela sociedade passaram a ser gradativamente substituídos. Contudo, os resquícios desse período em que pacientes com transtornos mentais eram afastados do convívio social ainda persistem. O medo das pessoas ditas loucas, o afastamento e o preconceito da sociedade ainda recaem sobre elas.  Seus direitos não são devidamente discutidos e sua inclusão na sociedade ainda é um processo lento. Apesar disso, eles existem, cada vez em número maior, e ocupam praças, ruas, cidades do interior e ambientes diversos da sociedade. 
 
No museu do Memorial da Paz, na Praça do Papa, em Vitória, um grupo deles percorre o ensaio fotográfico de Carla Osório, intitulado Loucos por Inclusão. São dez fotos de grande dimensão ocupando o espaço – imagens de pessoas com transtornos mentais de municípios do Espírito Santo. O grupo é guiado por alunos do curso de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), do Programa de Extensão Hecceidades, juntamente com Carla – que para em frente à foto de um de seus personagens e conta um pouco da história dele. Muitos dos visitantes param, escutam, perguntam, ficam de longe, se dispersam, mas se reconhecem. 
 
“Esse feedeback é o que há de mais importante nesse trabalho. As pessoas se reconhecem nas imagens e nas histórias, quando alguém se identifica começamos a entender que a loucura não é um processo individual, e sim social. Como autora dessas imagens, não paro de aprender a cada visita. Pela manhã tive a oportunidade de estar com moradores de rua acolhidos em abrigos, e tinha uma velhinha que foi a que menos falou, a mais dispersa, que menos me olhou. No final da visita ela veio e me deu um abraço e um beijo. Isso é incrível.” conta Carla Osório sobre o processo de fechamento do projeto, as visitações. 
 
“Acho que todos nós temos um medo secreto de enlouquecer. Para mim esse era o grande desafio, enfrentar medos internos e conseguir fazer um trabalho diferenciado
 
Foi em 2013 que o projeto Loucos por Inclusão iniciou sua primeira andada pelo Espírito Santo. Os locais que percorreu para encontrar personagens para a mostra foram Alegre, Cariacica, Serra, Aracruz, Guarapari e o ambiente que, de certa forma, impulsionou o projeto, Pancas. “Um belo dia eu estava em Pancas, num festival de cinema, acordei muito cedo e fui passear pela cidade, precisava de uma informação e cheguei numa pracinha onde tinham várias pessoas tomando banho de sol. Eu tentei falar com elas e não consegui uma comunicação de fato, então pensei 'como assim? todas essas pessoas têm transtorno mental? Que lugar é esse em que estou?'. Acho que a questão que me veio na hora foi esse questionamento sobre todas aquelas pessoas serem tão diferentes. Nisso eu falei com o Eduardo Torre e a gente voltou a Pancas. O engraçado foi que voltamos e eu falei a ele que teríamos que chegar bem cedinho para encontrá-los na praça. Mas quando cheguemos lá não tinha ninguém”, lembra Carla sorridente sobre o episódio em que conheceu seus primeiros personagens, os gêmeos.
 
Ela e Eduardo, responsável pela abordagem psicossocial do projeto, permaneceram na praça por algum tempo até encontrarem um dos gêmeos, com o pai, narra Carla. “Eles cuidam do jardim da cidade. A gente começou então a conversar com o pai dos gêmeos e foi uma história muito interessante porque dava para sentir o orgulho que o pai tinha desse filho. Daí ele falou sobre o outro gêmeo e contou que os dois tinham problemas psicológicos e ele cuidava de ambos, que eram uma benção na vida dele. Nisso um personagem chamou o outro, eles nos indicou a conhecer outros locais e outras pessoas”. 
 
A primeira grande aquisição do projeto foi Eduardo Torre, logo na sequência o trabalhou integrou a jornalista Manaira Medeiros, “porque a gente entendia que não bastavam só as imagens, as histórias de vida eram muito ricas. Então o Eduardo veio com toda essa carga da psicologia para nos ajudar a entender esse universo, a entrar nele, e a Manaira foi importante para fazer os relatos de vida de todos os personagens da exposição”, explica Carla. Assim, o projeto saiu de Pancas e circulou por outros municípios em busca de desenvolver o tema da luta antimanicomial a partir de visitas a locais onde as pessoas com transtornos mentais estivessem vivendo, como as residências terapêuticas. 
 
A abordagem do Loucos por Inclusão, então, parte do ponto de vista social, destacando as várias questões relacionadas aos direitos humanos, à psicologia e à antropologia. O objetivo do projeto foi apresentar um panorama, a partir dos personagens, da diversidade e dos grupos considerados vulneráveis –  composto por pessoas que estão mais suscetíveis a desenvolver o transtorno mental. “Não abordamos uma vulnerabilidade física ou psíquica, só do ponto de vista clínico, mas do ponto de vista social, e sob esse viés vemos que as mulheres estão nesse processo há 300 anos; depois os negros que saíram da África e foram escravizados em outros países; ou seja, todas as pessoas que não se ajustam aos padrões sociais estão suscetíveis a esse tipo de doença”, destaca Carla. 
 
“O limite entre a sanidade e a loucura é muito tênue
 
Apesar de estar há algum tempo envolvida em trabalhos sobre questões sociais e de visibilidade, a fotógrafa Carla Osório iniciou o projeto sendo constantemente surpreendida por histórias de vida. Visivelmente percebe-se que de todas os personagens, a história do “índio”, morador de uma residência terapêutica na Serra, foi uma das que mais marcou.  “Quando encontramos um índio no processo de enlouquecimento, a gente tem que parar para questionar a sociedade em que estamos vivendo. Tudo isso não tem como se desfazer dos seus conceitos ou instintos, ou você se envolve ou você não se envolve. Escolhemos nos envolver, colocamos o índio dentro do carro e fomos para as tribos com ele. Esse desvendar do universo das pessoas, das culturas, das etnias, dos conceitos do que é loucura, de quem é são e quem não é, ficam batendo à nossa porta o tempo todo. A gente se coloca muito em xeque em relação a tudo isso, porque você se pergunta quem é normal. Eu não me acho nem um pouco normal, por exemplo”. 
 
 
“Índio” queria conhecer suas raízes, seus parentes, pediu então que a equipe o levasse para o local que ele tinha como lembrança da infância, o balneário de Nova Almeida. E a equipe foi, o levou, descobriu junto com ele um pouco de suas raízes. Questionada sobre como adentrar na vida desses personagens, de forma a não assustar ou até a não ser assustado, Carla destacou ter se deparado com pessoas muito doces e suaves, sendo constantemente fisgada por histórias de resistência, contando tudo com muito carinho enquanto, atrás dela, em meio a entrevista, sentam-se alguns dos visitantes com transtorno mental que foram visitar a mostra, todos exatamente como Carla descreveu, doces e suaves. 
 
“Uma das personagens é uma amiga minha que veio ver a mostra e eu perguntei a ela o que achou das imagens, ela falou que via o sofrimento dessas pessoas, mas ao mesmo tempo disse que tudo estava sendo tratado com muita suavidade. Eu não sei se isso parte do nosso envolvimento enquanto equipe, mas eu tentei trazer esse espírito de suavidade, porque a gente precisa no final de tudo dizer que essas pessoas sobreviveram a todo o sofrimento, que eles são grandes guerreiros. Então eu encontrei nessa trajetória pessoas muito doces, pessoas muito ricas, muito inteligentes, muito espirituosas dentro do universo fotografado”, detalha a fotógrafa.
 
Loucos pela Inclusão apresenta dez imagens expostas no Memorial da Paz e 20 no catálogo do projeto, repletos de textos e história. Os critérios para a escolha das fotos das paredes foram bem claros para a equipe. Carla prezou pela grande dimensão das imagens – “eu penso que isso ajuda a gente a se deparar de frente com o outro de uma forma, no mínimo, respeitosa” – e colocou em jogo também as imagens em que os fotografados olham diretamente para a câmera. Foram levados em conta os personagens emblemáticos para a questão da diversidade e, unindo tudo isso ao tamanho dos espaço do Memorial, as fotos foram escolhidas, mas Carla acrescenta que se tivesse oportunidade continuaria a fotografar o projeto. 
 
Enquanto a entrevista é realizada, mais grupos chegam para visitar a mostra por  visita monitorada. Carla Osório volta, acompanha, cumprimenta e se atenta ao acesso de todos ao local. Para ela o projeto segue em um fórum em João Pessoa, na Paraíba, dentro de um mês; para os capixabas, a mostra se encerra no próximo dia 22 – em meio à Semana da Luta Antimanicomial.

A fotógrafa espera que o trabalho seja “somente, e apenas, uma oportunidade de colocar esse tema novamente para o poder público e para a sociedade discutir a cidadania e os direitos humanos não só para uma parte da sociedade, mas para todos”.

Ao final, ela se despede de um grupo com o registro de mais uma imagem, quando todos se juntam para um 'tchau' – ou até breve. 

 
 
Serviço
A mostra fotográfica Loucos por Inclusão, de Carla Osório, permanece em exposição de terça à sexta-feira das 9h às 17h; e sábados, domingos e feriados das 12h às 16h, no Memorial da Paz – Praça do Papa, Vitória. A entrada é livre. 

Mais Lidas