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O que será do Mercado da Capixaba?

Fotos: Leonardo Sá/Porã
 

 

O segundo pavimento do Mercado da Capixaba já abrigou um hotel, a Rádio Espírito Santo e uma secretaria municipal. Agora é o desamparo a céu aberto na Avenida Jerônimo Monteiro. A história cai aos pedaços nas amplas janelas que penduram-se a custo nas paredes. O teto engolido por um incêndio deixou tudo vulnerável às intempéries. 
 
O acesso vedado por um grande portão de ferro na Rua Arariboia delata um local abjetamente entulhado, que acolhe até um velho fogão. A umidade e a sujeira dominam toda a estrutura. A única coisa intacta é a placa na parede celebrando em 1996 a inauguração do espaço como abrigo da Secretaria de Cultura, iniciativa do então prefeito e hoje governador Paulo Hartung.
 
O térreo reforça o desamparo nas portas cerradas e pichadas das lojas externas: há ali apenas silêncio e sujeira enquanto ao redor o Centro fervilha em movimento, o comércio ao lado convocando os pedestres em vitrines chamativas e propagandas nas caixas de som, as calçadas apinhadas, as vias zunindo nos veículos que chegam ou deixam a região. 
 
É um quadro pulsante que de repente murcha nos 2.227,84 mil metros quadrados do mercado, uma quadra inteira, delimitada pelas ruas Desembargador O’Reilly e Arariboa e pelas avenidas Princesa Isabel e Jerônimo Monteiro, para recomeçar na quadra seguinte.

A área interna não abranda a melancolia. Uma parte serve de estacionamento para funcionários da Secretaria de Cultura e da Escola Técnica Municipal de Teatro, Dança e Música (Fafi). O restante é ocupado pela principal razão de ser da edificação: o Mercado Capixaba de Artesanato. A impressão que o local passa, no entanto, é de servir antes de comunicação exótica entre a Princesa Isabel e a Jerônimo Monteiro. O movimento é fraco. 

 
Quem passa, dificilmente se detém: dedica apenas uma curiosidade fria àquele ajuntamento de arte popular capixaba. O mercado reúne a produção artesanal os municípios da Grande Vitória e outros do interior, como Marataízes, Itapemirim e São Mateus. São duas seções separadas por um breve passagem. De um lado, utilitários de cozinha, mesa, quarto, sala e artigos de vestuário. Do outro, objetos decorativos e de jardinagem.  
 
Na seção dos utilitários, cestas, redes, sandálias de couro estão improvisados em estantes e mesas de chão. Livros velhos e empoeirados se acumulam noutra estante e em caixas; ao lado, vinis antigos empilham-se em caixas de plásticos, numa mesa que reúne até os vetustos vídeos e fitas cassetes. Tapetes pendurados na parede imunda e pontilhada de pregos enferrujados parecem existir ali desde sempre. Uma parte serve ainda de abrigo para carrinhos de água de coco. 

Pequenas poças d’água se forma aqui e ali, denunciando goteiras no precário teto de zinco que forra o espaço. Olhar para cima é também se deparar com a ferrugem nas velhas e precárias luminárias sem lâmpadas.

 

 

A seção de decorativos, que reúne canecas, vasos de barro e artesanato de concha, está disposta com alguma dignidade, logo vilipendiada pela parede lateral: uma mancha verde e úmida se impõe entre a estante e o teto. O mofo também atinge a parede do depósito de uma das lojas da frente, localizado acima do escritório do mercado de artesanato. A loja foi fechada, o depósito idem.  
 
A certa hora da manhã da última quinta-feira (21), três senhoras de repente brotaram dentro do mercado. Parecem turistas. Uma carrega sua pequena máquina fotográfica digital nas mãos. Passeiam os olhos com alguma curiosidade pelos produtos. Uma para em frente às cestas e manuseia uma aqui, outra ali; outra olha as colheres de pau e outros utensílios de cozinha. Seguem para as empoeiradas estantes de ferro com lembrancinhas. Novamente, apenas olham, para ir embora sem demonstrar entusiasmo. A máquina digital entrou e saiu desligada.
 
O baiano Maurício Rosa, 60, assiste cenas como essas há pouco mais de uma década, período em que o Mercado da Capixaba entrou numa fase de decadência que parece irremediável. Toca o negócio com auxílio de um irmão. Entram às 8h, fecham às 18h e saem quase às 19h. É o lojista mais antigo em atividade do mercado, qualidade que lhe dá tanto um certo orgulho de ter ajudado a preservar um pedaço da história da cidade, quanto a resignação provocada por inúmeras promessas não cumpridas.   
 
Sorri quando lembra os tempos de bonança. Hoje se refere ao mercado de maneira desapaixonada, assistindo um movimento a cada ano mais rarefeito. “Eu já nem sonho mais”. 
 
Ele aponta o ano de 2002 como uma espécie de marco da decadência. Em setembro, um incêndio que começou no início da noite na Spózer, loja de materiais esportivos no andar térreo, se alastrou e lambeu todo o segundo pavimento, onde funcionava a Secretaria Municipal de Cultura (Semc). A estrutura de madeira avivou a fúria das chamas. O teto desabou. Como vimos acima, até hoje nada foi recuperado.
 
De lá para cá, Maurício e demais comerciantes ouviram promessas de reforma de Luiz Paulo Vellozo Lucas e tomaram café da manhã com João Coser e equipe em outra promessa. “Mas não fizeram nada, a não ser retirar os resquícios do incêndio”, lembra. Agora, sabem da intenção do atual, Luciano Rezende (PPS), em transformar o mercado em polo gastronômico. 
 
Entre todas as promessas, Maurício diz que sentiu mais firmeza no atual prefeito. A expectativa joga um peso nos ombros de Luciano, que faz do projeto de revitalização do Centro não um discurso esporádico, mas uma bandeira de gestão.  “A gente está esperando. Isso aqui é uma referência. Já que se fala em revitalização do Centro de Vitória, por que não começar por aqui?”.
 
Problemas no arcabouço hidráulico e elétrico, vazamentos e pintura descascada só seriam remediados mesmo com uma intervenção profunda no mercado. Chuvas mais severas agravam o problema, já que a água que desaba sobre a antiga Semc se espalha para todo o pátio interno.
 
Maurício apoia a reforma, mesmo sabendo que talvez não retorne. O ideal para ele, se houver reforma e se puder voltar, é reduzir o espaço de seu artesanato. Hoje claramente a organização dos produtos é mais para tapar buracos: apenas 50% dos produtos sustentam a loja, mais destacadamente o artesanato em concha e modelos de panela de barro. O resto é gordura.
 

Natural em Feira de Santana, Maurício nasceu em família de artesãos. Aprendeu o ofício com os pais: aos 10 anos, já ia com os outros cinco irmãos ajudá-los nas vendas. Em 77, um amigo que morava em Vitória deu a deixa: a capital capixaba tinha mercado para artesanato. Com certa vocação turística, a cidade não apresentava nada ainda do gênero. Maurício e um irmão foram Vitória no final do ano realizar um levantamento do potencial capixaba. Aprovaram. 

 
No início do ano seguinte, aportaram na Rodoviária de Vitória. Enfrentaram uma dificuldade para achar um ponto adequado. O Centro de Vitória era o coração econômico do Estado, a disputa pelos pontos bem localizados era acirrada. Acharam o Mercado da Capixaba e negociaram uma loja na Princesa Isabel, cujo lojista estava de mudança para a Ceasa, em Cariacica. 
 
Em março de 78, abriram a família baiana abriu a loja de artesanato – hoje há uma loja comércio de jogos eletrônicos. Como o mercado é de propriedade do Estado, os contratos entre lojistas e poder público eram firmados via Empresa Capixaba de Turismo (Emcatur). Os dois irmãos foram morar no Parque Moscoso. Após três anos, viram que o negócio no mercado renderia bons frutos e trouxeram o restante da família, inclusive os pais.   
 
Poucos anos depois montou a loja no pátio interno. Ele conta que, quando chegou ao mercado, havia projeto de transformar a área interna em teatro de arena. A ideia não prosperou e o pátio foi esquecido. A seguir anunciou-se um projeto de estacionamento no local. Se hoje ainda é tarefa árdua estacionar no Centro, naquela época era ainda mais, mais uma vez pela posição central da região na economia estadual.
 
O setor cultural rechaçou o estacionamento. O responsável pelo projeto então ofereceu o espaço a Maurício, que já vislumbrava a expansão de seus negócios. O artesão topou. Mas também enfrentou uma rejeição forte da classe artística. Era como se forasteiros baianos estivessem usurpando um espaço da cultura capixaba. Recebeu também a rejeição dos jornais capixabas. Maurício conseguiu convencer uns e outros e finalmente fundou o Mercado Capixaba de Artesanato, como lê numa placa entalhada em madeira.
 
A história do Mercado da Capixaba talvez forneça algumas indicações do porquê a edificação converteu-se num ponto desconexo da vida da cidade, desajustado, desorientado, que oscila ente o nada e o lugar nenhum, que apesar da aura histórica, estão ali erigidos praticamente 100 anos de arquitetura, aos poucos se apaga no coração da cidade.
 

Em um texto de 2003, da Prefeitura de Vitória, apresentado a um simpósio nacional de História, Lília Figueiredo e Melissa Passamani destacam que a raiz do mercado remonta a 1871, ano da construção do primeiro mercado municipal de Vitória. Este foi demolido em 1926 pelo governo Florentino Avidos. O Mercado da Capixaba nasce no mesmo local e ano na então Avenida Capixaba – daí talvez o nome – depois rebatizada Jerônimo Monteiro. 

 
No segundo pavimento funcionava um hotel de propriedade particular. A fachada posterior virava-se para baía e abrigava um atracadouro – era mar onde hoje corre o asfalto da Princesa Isabel. 
 
Amplo e ventilado, o novo mercado municipal oferecia condições mais aceitáveis de higiene para o comércio de verduras, hortaliças, peixes e carnes no pátio central. O Mercado da Capixaba se investia da missão de ser o principal centro de abastecimento alimentício da capital. 
 
Ao mesmo tempo, a região sul de Vitória experimentava certo crescimento populacional, razão pela qual parte do Mercado da Capixaba foi transferida para uma construção de dois pavimentos na Vila Rubim. O novo mercado foi aberto em 1928. Quatro décadas depois, a inauguração do Mercado da Vila Rubim, em 1969, inicia um processo de desidratação da missão primordial de abastecimento do Mercado da Capixaba, assumido, agora, pelo novo mercado. Com o aterro realizado na mesma época, o Mercado da Capixaba perdeu a vizinhança com a baía. 
 
A concentração das atividades econômicas no Centro ainda conferia algum vigor ao Mercado da Capixaba. Maurício conta que, naquela época, o movimento era tão grande que o mercado registrava cerca de 20 funcionários. No Natal, era preciso contratar mais 20 funcionários. O mês de janeiro era mais aquecido que dezembro: as férias escoavam turistas e mais turistas para o mercado, especialmente os de Minas Gerais. Hoje apenas quatro das quinze lojas subsistem.
 
Hoje o destino do Mercado Capixaba é uma dúvida até para a gestão Luciano Rezende. Como o mercado está cedido sob regime de comodato pelo Estado à prefeitura, perguntamos se o contrato ainda está em vigor, quando expira, o valor do aluguel para cada imóvel, se há dívidas dos lojistas com a prefeitura e qual o montante, se há ordens de despejo e se existe previsão de desocupação de lojas. 
 
Nada foi respondido. Ainda assim, em nota, a Semc endossa a o projeto da atual gestão de tornar o prédio um “complexo gastronômico, cultural e artístico”. Diz também que a Secretaria de Desenvolvimento da Cidade (Sedec) “desenvolveu o projeto da parte externa, que inclui o projeto urbanístico das calçadas, da fachada e a cobertura, que já está pronto e em processo de captação de recursos para sua execução”.
 

A atuação da Sedec vale um parêntesis. O Plano de Despoluição Visual da Região Central, uma lei oriunda do Executivo municipal aprovada no final de 2014, prevê a higienização visual do Centro de Vitória. Os comerciantes serão obrigados a readequar as placas de publicidade de suas respectivas lojas segundo dimensões regulamentadas pelo plano. Mais de 500 comerciantes já foram abordados pela equipe da secretaria. 

 
Inclusive os do Mercado da Capixaba. Aqui nasce uma dúvida: para que investir numa nova placa se não sei se vou continuar aqui? É o que todos se perguntam. Existem na área externa uma loja de comércio de jogos eletrônicos, outra de acessórios para celular e outros dispositivos móveis, uma de material eletrônico e outra de artigos esportivos. Há ainda uma Farmácia Cidadã. 
 
Há ali clara vontade de reformar o espaço aqui e ali, torná-lo mais apresentável ao cliente. Por outro lado, existe a dúvida se não seria este um investimento jogado fora. Há informações de que ordens de despejo correm na Justiça, de dívidas de lojistas junto à Prefeitura, de que o contrato de comodato terminou este ano. Ao gosto de um lugar mais das dúvidas que das certezas, não há nada confirmado.

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