Ocupar é, de acordo com alguns dicionários, estar na posse de algo. Para o projeto Ocupa Corpos é estar na posse de seu próprio corpo, mesmo que ele fuja dos padrões considerados belos na sociedade ocidental, mesmo que ele estampe quilos a mais ou a menos; marcas; assimetrias; formas e cores distintas. Cada corpo expõe sua luta e sua beleza. É com essa proposta que a fotógrafa Thais Carletti trabalha no projeto Ocupa Corpos, que alia fotografia, nudez, naturalidade e dessexualização.
O projeto é novo, tem pouco mais de um mês, e nasceu diretamente na internet e, inicialmente, apresentou um ensaio fotográfico nu com Cora Made, uma mulher que, apesar de branca, foge de muitos padrões estéticos costumeiramente estampados em capas de revistas e exaltados como princípios de corpos perfeitos. Logo após Cora, Thais Carletti apresenta o ensaio de Mauro Sergio, um jovem negro e gay que ocupa seu lugar de protagonização artística em meio a uma sociedade que, historicamente, reserva ao negro o papel de coadjuvante.
“A Cora, além de ser feminista, é muito minha amiga. Acho que ela foi a primeira pessoa que me levantou a possibilidade de fazer um projeto como o Ocupa Corpos. É maneiro porque ela foge do padrão estético social, foge às regras. Então ela topou de cara e fomos trocando ideia sobre o assunto. Não sei se foi pelo fato de termos essa relação de intimidade, mas acho que a gente acabou encarando tudo de forma muito tranquila. Já o Mauro, após ver o projeto pronto e acompanhar os comentários, disse despretensiosamente que aceitaria fazer o ensaio e eu não quis perder essa oportunidade”, detalha Thais.
O processo priorizado no Ocupa Corpos é a naturalização do nu, a beleza do corpo sem estar necessariamente aliada à veia erótica. Para alcançar esse resultado, Thais parte do princípio de mais observação do que direção de seus modelos. A proposta, de acordo com ela, é deixar as pessoas completamente livres com seus próprios corpos. Dessa forma, também com uma edição e finalização leve, o projeto apresenta ensaios que priorizam ideologias, quebras de paradigmas e todas as possíveis particularidades – que são, cotidianamente, afastadas da grande mídia – evidenciando a harmonia e a beleza de corpos ‘reais’.
“Pelos ensaios serem feitos até então num lugar completamente seguro, que é a Libre – Casa Coletiva, e eu não direcionar rigidamente meus modelos, acaba ficando mais natural mesmo, sem esse cunho sensual. É engraçado que eu sempre entro nessas discussões com amigos, porque entendo que a nudez tem essa questão social de ser pensada junto com o sexo, mas também acho que não é o grande plano da coisa. As pessoas estão olhando de um viés muito pequeno, sabe. Acredito que quanto mais as pessoas falarem e lidarem com isso, mais a nudez vai ser encarada de forma natural”, acrescenta.
Um dos fatos chamativos do projeto fotográfico é que ele nasce como uma espécie de resposta à situações que Thais passou quando estudava a nudez. “Quando eu fazia artes, já estudava o nu, era algo que me despertava e um tema que vem me acompanhando desde então. Falando como mulher vejo também que é uma temática que tem tudo a ver com o feminismo. No meu caso veio como uma questão de empoderamento feminino mesmo. Claro que não fotografo só mulheres nos meus projetos, mas a minha vontade de fotografar nudez vem daí”, explica ela que, antes do Ocupa Corpos, idealizou os projetos Use Flores, que não trabalhava o nu; e o Pistilos Libertos, que desenvolveu o trabalho do primeiro projeto e incluiu o nu.
O impulso para que Thais (à esq.) criasse o Ocupa Corpos veio a partir de complicações numa rede social, o facebook. Ao publicar fotos de projetos que usava como referência o nu artístico, Thais passou a ser denunciada e, automaticamente, bloqueada na plataforma. Não foi só um vez que as denuncias aconteceram e, de acordo com as regras do facebook, não é possível saber quem realmente denunciou, o que incomoda Thais por não saber com quem esta lidando, mesmo tendo consciência de que quem realizou a denuncia é algum conhecido seu, já que as postagens foram feitas de forma privada. Só amigos tinham acesso.
“Depois da primeira denúncia, fui bloqueada por um dia, mas da última vez fui bloqueada por três dias, não tinha como usar nada, fiquei incomunicável. Esse fato de ter sido bloqueada no facebook foi o boom de tudo. Foi quando concluí que precisava fotografar sobre o assunto. Devo ter demorado umas duas semanas depois de tudo o que aconteceu para começar a fotografar. Muitos amigos também incentivaram”, contou Thais.
A questão não era incomodar ou gerar embates, mas trabalhar uma temática artística que historicamente causa, sim, desconforto e estranhamento no ser humano, a nudez do próprio corpo – já que, ao longo da história, o homem aprendeu a reprimir sua nudez para viver em sociedade. Em relação à mulher, a nudez é ainda mais dura, já que nas redes sociais atos como amamentação podem ser denunciados facilmente, já que não só o facebook, mas diversas outras redes sociais, não permitem imagens de seio feminino que incluam o mamilo.
“É engraçado que quando eu fui denunciada pela primeira vez, conversei sobre isso com um amigo e parti da ideia de que não fazia o menor sentido esses bloqueios que o facebook nos dá, mas esse amigo me explicou que a internet é feita para a pornografia. A partir disso entendo que, se o facebook não bloquear e analisar essas coisas, vai acabar se tornando uma plataforma unicamente pornô, todo mundo vai postar o que quiser. Mas eu também tenho o questionamento do tipo de moderação que essas redes sociais fazem”, pondera.
Após a criação do Ocupa Corpos, Thais já foi denunciada novamente, mas a repercussão do projeto tem gerado mais aceitação do que incômodos até então. Além de amigos e desconhecidos criticando positivamente o projeto, a fotógrafa já conta com uma lista de pessoas interessadas em participar dos ensaios do Ocupa Corpos. Além disso, Thais planeja uma nova circulação do projeto. “Gostaria que ele fosse para além da internet, no sentido de ocupar espaços reais, como o espaço público. Minha ideia é ainda escolher fotos do projeto, transformá-las em lambe-lambe e colar pela cidade, justamente para as pessoas lidarem com os questionamentos do projeto em lugares diversos, pois quando você está na internet ainda existe a possibilidade de filtrar o que se quer ver, nas ruas não, se está lá você vai ver”.