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Revolução dos bichos

Fotos: Leonardo Sá/Porã
 
John já está deitado na gaiola para cachorros. Miriam senta-se ao lado e põe-lhe a focinheira de plástico enquanto, em pé, Rhayner ajeita o suporte para soro e prepara a agulha de seringa. Pronto. Rhayner se agacha dentro da gaiola e busca com os olhos o melhor local no lombo do cão de pele vermelha e pelagem branca para injetar a agulha. Estático, John sente o momento, os pequenos olhos parecem aflitos. 
 
Miriam cinge o pescoço do bicho com o braço, diz palavras doces para acalmá-lo. Pouco adianta: John se debate quando vem a picada, quer se desvencilhar a qualquer custo. A agulha entra na pele do animal, Miriam afrouxa o braço e retira a focinheira. John relaxa. 
 

Quando a brisa do alívio já afagava os semblantes, a agulha se desprende. Todo o procedimento se repete. Miriam repõe a focinheira, Rhayner prepara a seringa, ela abraça o cachorro – que mais uma vez se agita em agonia – ele finaliza o processo. Agora agulha se fixa. Miriam retira a focinheira e se levanta para cuidar de outros afazeres. Com a cabeça já repousada sobre as patas dianteiras, John finalmente recobra a serenidade após o fim da fase mais angustiante da sessão semanal de injeção de soro.

 
O branquelo peludo é um vira-lata de 10 anos de idade que, hoje, passa a maior parte dos dias e noites em um banheiro minúsculo na sede do grupo de proteção a animais abandonados Patinhas Carentes, em Vitória. O banheiro não é uma prisão. A vida amarga que teve até chegar ali, em abril de 2013, semeou-lhe a hostilidade e a intolerância com os semelhantes, razão pela qual tem um lugar só para ele. Só se entende com o sexo oposto.
 
Quando sai para dar uma volta no pátio, sai sozinho e sedento por liberdade. O lugar é o paraíso em terra perto do buraco imundo e úmido em que foi resgatado na Avenida Leitão da Silva, onde ganhou todas as mazelas com que convive ainda hoje: problemas renais, hormonais, de articulação e de pelo. Além do soro, toma comprimidos de ômega-3, antibiótico e antialérgico diariamente e se alimenta de ração terapêutica. Consulta o nefrologista regularmente. Faz exames de rotina praticamente todo mês.
 
É o cão que mais demanda cuidado entre os mais de 50 do grupo. Cada um tem sua ficha de controle, todas reunidas em uma só pasta. John tem uma pasta só para ele, tamanha a quantidade de exames e outros registros médicos. É a maior ficha de controle do Patinhas Carentes. Hoje a pelagem de John está estabilizada, embora algumas falhas denunciem o passado de sevícias – como a marca vermelha do pescoço. 
 
Foi descoberto por uma mulher que trabalha no comércio da avenida e cuida dos cachorros de rua da região. Jonh estava praticamente sem pelo. Ainda hoje o pescoço é cingida por um traço vermelho, onde não nasce mais pelos. Como provavelmente vivia acorrentado a uma coleira, foi acometido por fungos, que não foram tratados.
 
Era um cão irascível, desses que avançam nas motos. Numa dessas, foi atingindo. Saiu com a boca sangrando miseravelmente. O grupo então o resgatou e o conduziu para uma clínica. Ficou internado e teve alta. Conseguiu-se um lar temporário para ele – lar temporário é uma ação em que alguém dispõe sua casa para receber o animal; os cuidados com alimentação e medicação continuam a cargo do Patinhas Carentes. Lá foi iniciado o tratamento dermatológico, no curso do qual foi descoberto o problema renal.
 
Fundado em 2008, após trabalhos semelhantes de proteção animal desenvolvidos com os cães abandonados na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e  no Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Vitória, o grupo hoje formado por oito pessoas cumpre o papel de, até onde braços e pernas alcançam, conferir dignidade a cachorros e gatos abandonados nas ruas.  
 
É uma organização conduzida por voluntários e que vive de doações. Há três anos, deram um importante passo ao ganharem uma sede, privilégio entre os grupos de proteção animal. Evitam divulgar o endereço para que o espaço não vire uma espécie de filial do CCZ e também para não desrespeitar a vizinhança com uma quantidade incômoda e barulhenta de cachorros. 
 
Hoje, a sede reúne 12 belíssimos cães espalhados em cerca de seis baias. Todos chegaram em estação físico degradante e hoje ostentam o entusiasmo e a agitação caninos. Desde a peralta Olívia – uma vultuosa cadela resgatada na Ilha do Boi, em Vitória, em processo de parto – ao meditativo João – o líder da matilha, que só aceita fêmeas e machos mais novos – exibem uma pelagem aveludada, macia e reluzente que reflete o tratamento cuidadoso: são castrados, vacinados, comem ração de qualidade.
 

No grupo desde 2013, Miriam Fernanda, enfermeira que largou o trabalho em dezembro passado para se dedicar integralmente ao Patinhas Carentes, conta a história que serve de alegoria dos princípios do grupo. Um homem impaciente chega à sede querendo um gato. Em tom ríspido, deixa claro que só está ali a pedido da filha. Olha para um e decide que vai levá-lo. 

 
Miriam responde: “Por favor, preencha este formulário”. Ele se espanta: “É muita coisa para eu levar apenas um gato”. Miriam quer saber se o apartamento é telado. O homem diz que mora em uma casa grande, razão pela qual não iria telar. Ele insiste: “Vocês querem ou não querem me dar o gato?”. “Senhor, a gente tem regras”. “Deus me livre, vocês são muito enjoados. Vou comprar na loja, então”. 
 
“Não é de agrado de um protetor ouvir uma coisa dessas, que a gente exige demais. A gente tirou eles da rua e não quer buscar os filhos deles na rua”, explica ela, justificando a entrevista realizada com cada candidato à adoção. Além da entrevista, o grupo acompanha o adotado pela internet. No Facebook há um grupo para acompanhamento dos adotados, em que o dono envia fotos e vídeos do animal. 
 
Se o dono não tem contatos virtuais, ele fica obrigado a receber visitas regulares do Patinhas Carentes.  Sempre tentam evitar que a história de Lolita, cachorra que acabou de ir para o terceiro lar, se repita: o segundo adotante a prendeu em um galpão de Cariacica. Estava sozinha, magra e tomada de carrapatos. 
 
A sede do Patinhas Carentes é composta apenas de uma edificação rodeado por um amplo pátio. A edificação é dividida em dois quartos. Em um, estão reunidos o escritório do grupo, na parede fica um mural de controle médico dos cachorros, duas estantes com objetos de doação (toalhas, coleiras, almofadas, caminhas, ração, tigelas para ração, entre outros) e as gaiolas com os cinco gatos. As janelas são teladas, os gatos são soltos à noite. Mais ao fundo, está o banheiro de Jonh. No quarto vizinho, ficam outros quatro cachorros.  
 
O trabalho de todo dia na sede começa por volta das 9h com a alimentação e medicação dos animais, além da limpeza (varrição e lavagem) de todo o espaço físico, as baias dos cachorros e gaiolas dos gatos. Por fim, os membros dão uma carinhosa atenção aos bichos. “Ficar aqui sozinhos é muito ruim para eles. Então a gente tenta adiantar tudo para dar atenção”, explica o estudante Rhayner Ganda, há quatro anos no grupo. O expediente termina às 17h. Até o dia seguinte, em regime diário de revezamento, uma matilha fica solta no pátio principal.
 

A restrição física é o principal motivo por que a aposentada Neida Vaz abriga gatos e não cachorros em seu apartamento em Jardim da Penha. Em uma década de ativismo, já encaminhou 250 gatos para adoção. “Isso me faz sentir um ser humano tão privilegiado!”, derrete-se. “Mas tem que ressaltar que não adianta só pegar na rua e depois não acompanhar o animal. Peço sempre que ninguém doe meus animais, se não quiser, eles voltam”, completa.

 
De repente ela olha para o lado e solta um “Ei!”. Um de seus gatos está tranquilamente afiando as ruas no largo sofá. No momento, Neida cuida apenas, digamos assim, de seus 15 felpudos de estimação, quatro machos e 11 fêmeas, todos castrados. Mas a qualquer hora, destaca, pode receber uma ligação de alguém com uma ninhada para ela cuidar.
 
A carioca que chegou ao Espírito Santo em 1981 teve bichos a vida inteira. O primeiro que lhe vêm à memória e o Lulu da Pomerânia que teve aos seis anos: depois pela via afora vieram tartaruga, coelho, pombo e mais cachorro. Essa paixão felina é recente. E foi quem a iniciou de forma mais sistemática e incisiva no ativismo animal. 
 
Há cerca de 10 anos, tinha apenas uma cachorrinha em casa quando a filha lhe pediu uma solitária gata que vivia presa nessas gaiolas de pet shop. Neida viu a persa de pelos negros, se compadeceu e levou para casa.
 
É a mais velha de seus gatos. A maioria resgatada na rua em estado sofrível, mas hoje ostentando uma beleza deslumbrante. Pompom, um alvíssimo persa himalaio de basta pelagem, foi pego vagando em Ponta da Fruta, em Vila Velha. Uma amiga resgatou e solicitou ajuda. O caso mais grave, no entanto, foi encontrado em André Carloni, na Serra.
 
Há quatro anos, Chaninho – o gato de rua nas mãos da filha de Neida na foto abaixo; o branco é o Pompom – foi vítima de atropelamento; a região traseira foi gravemente comprometida. Nem andar, andava. Foi levado para uma clínica. Ficou quatro meses em internação, regularmente fazendo enema (lavagem retal para remoção de fezes). Neida conheceu-o já na clínica. O tratamento do bichano começou a pesar no orçamento da pessoa que custeou as primeiras internações: Neida então assumiu o caso.
 

O bichano teve alta e levou para casa. Pôs Chaninho para adoção, mas aquele gato com um andar ainda meio troncho não seduzia os candidatos. “Depois de um ano, que ele ficou lindo, gordo maravilho, normal, começou a aparecer gente. Aí eu não dou.”. Rindo, Neida traça um breve perfil dele: dócil, amoroso, porém mimado e choraminguento. Cheio de manias. 

 
O apartamento de primeiro andar de Neida não é telado. Ela não sabe por quê, mas os gatos não se aventuram para além dos limites do espaço. Vão à varanda, sobem na mureta, mas ninguém cai ou pula. Só precisou telar a janela que dá para a cozinha de um vizinho: uma de suas gatas de vez em quando se aventurava em passeios furtivos na casa alheia. Mas, para fins de adoção, Neida destaca que exige telamento.
 
Outra curiosidade: o lar também dispõe de um elegante jardim de inverno, com uma pequena banheira em que Neida cria vistosos peixes numa água cristalina. O convívio, ali, no entanto, é orientando pela harmonia e respeito mútuo. Os gatos até bebem da água…
 
Como na sede do Patinhas Carentes, o serviço de higienização ali é rigoroso. Não há odores, nem sujeira. Mantém um regime de limpeza diário da casa inteira de segunda a sábado coma a ajuda de uma funcionária do lar. Pelos naturalmente são vistos pelo sofá, um dos locais prediletos dos peludos.
 
Seja em grupo Patinhas Carentes, seja individualmente, como Neida, embora ela tenha articulação com empreitadas coletivas, o calcanhar de Aquiles de qualquer rede de proteção animal é o bolso. As histórias dos protetores costumam ser transformadas em ingênuas alegorias de heroísmo e abnegação que, em verdade, velam o suor e as dificuldades da batalha diária pela dignidade animal.
 
É comum ouvir exemplos de impotência: tal animal foi visto em certo lugar e não pôde ser resgatado porque não há vagas nos abrigos. Poucas iniciativas dispõem de espaço físico – o Patinhas Carentes é uma honrosa exceção. O campus de Goiabeiras da Univerdade Federal do Espírito Santo (Ufes) é sempre apontado como um ponto viciado de descarte animal. Até coelho em gaiola. Terra Vermelha, em Vila Velha, é também apontada como outra região para fins semelhantes.
 
O Patinhas Carentes cuida de 54 cachorros ao todo: os 12 da sede e os demais divididos entre as casas dos membros. Rhayner, por exemplo, cuida de 10 do Patinhas Carentes além dos sete que já têm em sua casa em Maruípe. Obviamente, dedicação significa custo, com alimentação, medicação e higiene. 
 
Doações, financeiras ou de artigos e objetos, e parcerias com clínicas veterinárias, o que reduz em até 50% uma cirurgia de castração, por exemplo, são o que geralmente sustenta os grupos. O Patinhas Carentes bola ainda expedientes próprios como os três eventos fixos anuais para arrecadação financeira. O evento natalino é interessante: aqui uma pessoa se candidata a ser padrinho/madrinha de um animal, cobrindo todos os custos de sua criação. John tem uma madrinha.
 
Os trabalhos artesanais de Hilma Odete, outra integrante, também ajudam bastante: graças ao que arrecadou, os cachorros deixaram de tomar banho de mangueira no chão quente e ganharam uma pequena área coberta com banheira no pátio.
 
Dois dos gatos de Neida sofrem caiu de uma síndrome rara de auto-rejeição dos dentes, o que os obriga a consultas veterinárias mensais. Neida também firma parceria com clínicas veterinárias: os adotantes assinam um termo pelo qual se comprometem a castrar o animal aos seis meses de idade. O procedimento é realizado nessas clínicas a custo menor em relação ao preço de mercado.
 

O quesito alimentação, contudo, é o que mais consome o orçamento dos protetores. Ração é item de absoluta e inadiável necessidade. Os cães da sede do Patinhas Carentes devoram um saco de 25 quilos de ração por dia. Os gatos de Neida abatem 30 quilos de ração por mês. A ração foi o elemento que acendeu a luzinha das boas sacadas na cabeça da advogada Silvia Vargas, do Revistaria Animal. O projeto completou um ano na última terça-feira (7). A proposta é para lá de valiosa: arrecadar recurso para repasse aos grupos de proteção.

 
Silvia já se empenhava em proteção animal. Ano passado, resolveu ajudar uma amiga protetora de Ponta da Fruta. A casa da mulher cuida de 100 cachorros em sua casa. Silvia comprou R$ 500 em ração e se entusiasmou: “Nossa, agora vou ajudar muito!”. Chegou em Ponta da Fruta toda serelepe. “Nossa vai te ajudar bastante, né?”, disse à amiga, que respondeu.  “Ah, vai dar para uns dois dias”. Silvia murchou na hora. Achou que fazia muita coisa, mas ainda era uma gota no oceano. 
 
Como odeia pedir doações, resolveu praticar o desapego e vender uma coleção de revistas de história que adorava. Criou um perfil no feice chamado Revistaria Animal com foto de seu gato, convidou os amigos e anunciou a venda das revistas e o objetivo. Vendeu tudo em dois dias. Em uma semana a página registrava 100 curtidas; em um mês, quase mil. Aí resolveu vender seus livros também. 
 
A cunhada começou a ajudar e, então, sugeriu: vamos fazer uma feira. Montaram uma singela banquinha na Praça Duque de Caxias, no Centro de Vila Velha, e lograram êxito: venderam R$ 400. Hoje vendem cerca de R$ 2 mil em média por mês nas banquinhas de livros e revistas que vendem a preços acessíveis – de R$ 1, R$ 5 e R$ 10. A doação de que o projeto necessita é dos artigos que vende, que podem ser deixados nos cinco postos de coleta mantidos em Vitória, Vila Velha e Serra.
 
Com seis membros fixos e 15 voluntários, realizam cerca de quatro a cinco ações por mês. São dois tipos de ação: participam de feiras de adoção dos grupos – em que a arrecadação é remetida diretamente para o grupo organizador – e realizam feiras para manter os custos do próprio projeto – os membros têm seus resgates e o dinheiro já possibilitou a compra de um reboque para transporte das caixas de livros e revistas.
 
Em um ano, explica Silvia, a Revistaria Animal arrecadou R$ 12 mil, metade dos quais nos últimos quatro meses, fato que alimenta a ótima perspectiva para o próximo ano de duplicar a arrecadação. Hoje ajudam de forma mais regular cerca de sete organizações protetoras.
 
Para Silvia, todo esse esforço ativista ainda é pouco para os bichos. “O ramo da proteção animal está muito esgotado. Um grupo resgatou um cachorro no Centro [de Vitória] semana passada que estava com a orelha caindo, cheio de bicho. Ele foi levado para a cirurgia e na hora de achar um abrigo para acolher esse cachorro… Todos estão lotados. Liguei para abrigos de Vila Velha, Serra, Vitória. Nenhum tem vaga”, diz Silvia. 
 

Apenas políticas públicas eficazes de proteção animal podem redesenhar esse quadro desalentador. “Do contrário, é enxugar gelo”, afirma.  De acordo com o senso animal de 2014 realizado pelo Centro de Vigilância em Saúde Ambiental (CVSA), da Secretaria Municipal de Saúde, Vitória tem 21.043 cães e 5.807 gatos com guarda responsável. Por força de lei municipal, desde 2011 a prefeitura aplica medidas de esterilização – antes, a política seguia uma recomendação do Ministério da Saúde de captura e eutanásia.

 
Ainda assim, são os fatos que dizem, as políticas públicas são falhas e ineficazes. O que torna os esforços voluntários de proteção animal iniciativas indispensáveis.

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