Fotos: Leonardo Sá / Agência Porã
Joana Carvalho da Silva, de nome indígena Tatantin Rua Retée – que lhe deu a própria xamã Tatantin, sua avó – fala pausadamente, às vezes interrompida por ki, o macaco escritor, que os guarani têm em sua aldeia, Tekoa Porã, Boa Esperança para os brancos. A aldeia é próxima do rio Piraquê-Acu, hoje com pouca água, mas ainda belo.
Difícil imaginar que, sem subir o tom, Joana Carvalho da Silva fosse revelar uma prática criminosa, protagonizada com frequência pelos brancos, sejam religiosos ou simples visitantes. E, até mesmo praticada por funcionários que ganham para proteger sua saúde, que trabalham no posto médico da aldeia. Prática que revolta Joana, e todos os seus.
De forma doutrinária, os brancos procuram induzir as índias para não terem filhos. No mínimo, que não tenha muitos filhos. E indicam métodos anticoncepcionais. Até que retirem suas trompas. E, que os homens façam vasectomia, visando ao controle da natalidade.
“Aconselham as mulheres, os homens, e até as crianças. As mulheres têm seu papel. Precisam ter filhos, filhas. Precisam de dar educação, ensinar o índio a viver em harmonia com a natureza, protegendo a terra, a água, a floresta e todo tipo de vida”, afirma Joana.
E quem faz isto? Gente de fora, das igrejas que se instalaram na aldeia. Até funcionários no posto médico, na realidade um mini posto, dito por enfermeira e outros funcionários. Ela sobe um pouco o tom ao manifestar sua indignação. Lembra que as índias e os índicos se sentem mal, muito mal, com este assédio dos brancos.
“Minha avó ensinou que temos de ter filhos, ter mais índios para criar e educar. A conversa deles está errada. Não abrimos mão de nossa função. Não queremos esta conversa aqui. Índio tem que andar e fazer as coisas de acordo com suas leis. Garantir a terra para nossos netos do jeito que a gente encontrou. Se as meninas continuarem ouvindo isto todo dia, no futuro não vão querer ter seus filhos”, sentencia. Lembra que a população branca é infinitamente maior do que a população indígena.
Joana Carvalho da Silva informou que as mulheres vão discutir como participar da luta para defender seu povo durante a conferência. Mas assegurou que mulheres, homens e as crianças desde idade de oito anos vão participar, a um só comando, das lutas que se prenunciam.
Uma delas, contra a PEC 215, que produzirá o genocídio dos índios no país, como já dito. E outra, contra o controle da natalidade do povo indígena. “Remédios para controle da natalidade fazem mal à saúde”, afirma.
Macaco escritor
O macaco Ki que brincou com Joana vive livre, em contato com a natureza. em pleno vigor de sua raça. Diferentemente de outros de sua espécie, vive também no mundo dos humanos. Deu sorte: escolheu um povo indígena. Se não, estaria preso e, provavelmente, em condições que lhe impediriam de viver. Quem sabe não estaria em jaula, como os que são castigados com penas deste tipo? No mundo de Ki, portanto, água, árvores, terra, sol. E crianças.
Livre, Ki se mostrou algo como escritor. Provocou risos, e não só das crianças e do adulto com quem dividia a mesa, pouco antes usada para abertura dos trabalhos da conferencia indígena Guarani, quando pegou uma caneta e fez rabiscos. Parecendo entender a importância do momento, mal começaram as falas, trocou o local da assembleia pelas árvores próximas.
A 1ª Conferencia de Política Indígena dos Guarani conta com a coordenação dos caciques, à frente Toninho, da aldeia de Tekoa Porã. Ainda na tarde desta quinta-feira (16) será finalizada, com a produção de seu relatório final, como fizeram esta semana os Tupinikim do Espírito Santo, que se reuniram com o mesmo propósito.
Em assembleias, os índios do Espírito Santo e de todo o país discutem o que querem e como vão lutar para se consolidar em termos de direitos. Os Guarani e os outros povos finalizam sua reunião escolhendo os delegados que os representarão em uma assembleia regional, que aprofunda as discussões. Uma assembleia nacional, ainda este ano, reúne o conjunto de reivindicações. Trata-se de um momento importante, pois é a primeira assembleia nacional indígena do país.
O Krenak
Na sua conferência, os Guarani receberam um irmão ilustre. Um krenak. Ailton Krenak é o seu nome. Ele foi responsável pela estratégia e tática seguida durante a Assembleia Nacional Constituinte. Pediu e foi ouvido pelo presidente da Assembleia, o histórico Ulisses Guimarães, para falar aos parlamentares. Conseguiu. Se vestiu como os brancos, com roupas emprestadas, e deu seu recado. Durante sua fala da tribuna, foi pintando o rosto de preto, simbolizando o luto do povo índio.
Falou do sofrimento e das dores de seu povo. Dos genocídios, do roubo das terras. Foi ouvido em silêncio. Terminado o trabalho, estava lançada a semente que, em solo próprio, germinaria nascendo na Constituição Federal de 88 sob a forma expressa de garantia dos direitos indígenas. Foi a primeira vez que os índios brasileiros ganharam espaço na Constituição Federal.
Entre os direitos expressos em lei, a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 231, define: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. …”. Este direito e os outros já garantidos na Constituição terão que ser respeitados, exigem os índios.
Ailton Krenak se fez intelectual. É considerando um dos mais influentes do Brasil. Dos mais importantes estrategistas do seu povo no país. Com firmeza, porém de forma serena, falou aos presentes na assembleia Guarani.
“Faltam muitas coisas para que nossos direitos sejam respeitados. Desejo que os caciques Toninho e Nelson, como todos, façam uma boa conferência. Hoje buscam desmanchar direitos incluídos na Constituição Federal de 88. Significa que temos de continuar defendendo nossos direitos. Sempre alguém vai nos tentar jogar para fora. O povo Guarani tem seu jeito de viver, de lutar. Que estes modos sejam expressos aqui”.
Antes de terminar, Ailton Krenak (foto à esquerda, ao lado do cacique Toninho) teve tempo de convidar seus irmãos Guarani e Tupinikim, que enviaram algumas de suas lideranças à assembleia de Tekoa Porã.
“Quando visitarem nossa aldeia, em Minas Gerais, que apareçam na casa de d. Laurita, “para um café”. Laurita é de de sua família.
Na ocupação do Brasil, os brancos escravizaram e tentaram tornar todos os índios cristãos. Este assédio doutrinário, ainda continua. Não só igrejas evangélicas, como católicas, introduzem os seus templos nas aldeias. Desrespeitam as crenças indígenas. Os índios têm seus deuses, seus ritos. Alguns, até visitantes, em nome do conforto dos brancos, tentam fazer com que os índios se façam ricos.
Durante a ocupação das terras indígenas, o domínio branco se fez a ferro e fogo. Há estimativas que 5 milhões de índios foram chacinados no Brasil. Parte deste genocídio praticado no Espírito Santo. Os índios tiveram suas terras griladas, seja por fazendeiros, seja por empresas.
Inimigo número um
Além de assegurar as terras já demarcadas e a demarcação de outras áreas que demandam por serem reconhecidamente indígenas, os índios vão definir – eles próprios, sem tutela da Fundação Nacional do Índio (Funai), nem de nenhuma outra organização – o que querem também em termos de saúde, educação e cultura. O que querem estará definido e expresso em documento ainda este ano.
Hoje, a principal ameaça aos índios, é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215) que retira direitos garantido na Constituição Federal de 88. A PEC também fere de morte descendentes quilombolas, e é ameaça às unidades de conservação. Transfere a palavra final sobre demarcação das terras destes povos do Poder Executivo para a Câmara dos Deputados.
A Câmara quer se dar tanto poder a ponto de ter o direito de anular atos já definitivos, como os referentes às terras indígenas e quilombolas já demarcadas. O mesmo poder quer a Câmara para anular as unidades de conservação e alterar sua tipologia. Todos temem as manobras que a aprovação da PEC 215 irá gerar.