Levar Machado de Assis para a sala de aula, e para além disso: apresentá-lo como ele realmente era, um escritor negro. São poucas as escolas públicas que conseguem oferecer um trabalho amplo de literatura para seus alunos, geralmente passa-se rápido pelos conteúdos, pelos escritores, pela literatura brasileira, o que faz com que muitos conteúdos virem meros detalhes. “Tem muito professor que diz que Machado de Assis é impossível de ser trabalhado em sala de aula. Tudo bem, mas nas escolas particulares tem gente fazendo o impossível para que isso seja possível. No final das contas, a diferença entre rico e pobre, negro e branco passa por aí também, de você achar que não é possível fazer isso”, detalha com certa indignação Jamille Ghil, produtora e apresentadora do programa de rádio Vice Verso, da Universitária FM 104.7; pesquisadora e integrante do projeto Rádio Escola no Ar.
O Rádio Escola no Ar nasce a partir do Vice Verso, que é um projeto de extensão do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), criado em meados de 2008 e orientado por Jorge Luis do Nascimento. “O Jorge falou ‘olha, vocês precisam ir para a comunidade. O impacto social do programa precisa ser maior’. Ele mesmo sugeriu que adentrássemos no universo escolar e a gente passou a pensar como seria a aplicação disso”, foi assim que surgiu a proposta do projeto experimental Rádio Escola no Ar, de acordo com Jamille Ghil.
Realmente a experimentação é o que move o projeto que, desde o inicio do ano, é realizado na EMEF Prezideu Amorim, no Bairro Bonfim, em Vitória – uma escola muito comum às diversas outras públicas: grades por todos os lados, muitos portões, espaços pequenos, poucas cores, muitas crianças e adolescentes. Mas lá a iniciativa do projeto é o que faz um diferencial dentro do espaço. São crianças e adolescentes aprendendo semanalmente como manter ativa a rádio da escola de forma artística, a ultrapassar os modelos jornalísticos e chegar na vertente de Rádio Arte. “O nosso foco é a língua portuguesa e a literatura. Então, a ideia é de que o programa de rádio seja um espetáculo radiofônico literário, e aí temos nessa trajetória os desafios que aparecem”, explica Jamile.
Entre tais desafios citados está um dos principais, a comunicação com crianças e adolescentes. São duas turmas, a primeira são de adolescentes, turma pequena (foto à esq.) e centrada que assiste atenta às aulas de sonoplastia que o cantor e integrante do Vice Verso, Fernando Zorzal (foto capa), ministrou numa minúscula sala da escola – reservada para ser o espaço da rádio. “Essa turma é formada por apenas cinco adolescentes. Tinha uma galera maior, mas tivemos um problema, muitos eram tímidos e não sabiam ler direito, apesar de terem seus 14 anos em média, daí houve o afastamento. Essa é uma questão que nos faz pensar também que o projeto pode ajudar a melhorar o português, a leitura; os adolescentes não sabiam fazer pesquisas na internet, então a gente vai aprendendo junto deles a lidar com esses processos”, conta Duana Peixoto, estudante de Comunicação Social que foi convidada a integrar o projeto como uma das professoras.
A construção de como lidar com os problemas são contínuas, conversadas e estudadas, esse é o diferencial mais perceptível do projeto Rádio Escola no Ar. Enquanto muitos projetos já chegam ‘engessados’ e prontos para serem aplicados da forma como estão no papel, os integrantes do Rádio Escola no Ar estudam modos de passar conteúdos, abordar temas, envolver os alunos e ser um projeto de maior sensibilização com a arte.
Em uma das aulas em que Duana Peixoto e Jamille Ghil dão às crianças, surgem dificuldades que são conversadas entre os integrantes do Vice Verso logo após o término das aulas. “Há dias e dias. As crianças são mais agitadas e assim vamos testando estratégias de tratamento, comunicação mesmo. Nossos estudos são como passar os conteúdos, como escutar os alunos, saber receber e entender as demandas deles”, explica Duana.
Por falar em demandas, Jamille e Duana contam com encantamento que há sim muitos anseios desse público que, por muitas vezes, é subestimado por professores e sociedade. Com os adolescentes, por exemplo, há mais resistência no conteúdo que era levado a eles, dessa forma foi preciso deixar com que eles apresentassem suas propostas para que, assim, elas fossem trabalhadas e, se necessário, problematizadas. “Já trabalhamos Manuel Bandeira e Tim Maia com as crianças. Com os adolescentes já conseguimos focar mais em montar roteiro, sonorização e trabalhar os conteúdos que eles trazem. Eles querem falar sobre raça, amizade, temas realmente profundos. São coisas que eles trazem e nós estudamos juntos”, detalha Duana.
Música e Literatura para aprofundar temas
“Tem professor que diz que criança não gosta de ler, mas o que a gente repara é que, na verdade, há mais problemas entre quem está mediando, do que diretamente na relação da criança e do adolescente com a obra literária. Fui fazendo alguns desafios para provar a minha desconfiança de que o problema está mais entre professor versos aluno do que professor versos a obra literária. Certo dia trouxemos a canção Ode aos Ratos, de Chico Buarque, a ideia era que as crianças recitassem antes de apresentar a música. Era um desafio com essa canção que é dificílima! Muitas pessoas me falaram que as crianças não iriam querer aquilo, que não daria certo, eu só falava ‘calma, vamos ver’.
Cheguei animada na sala, apresentei a canção, comecei a fazer para eles e, em pouco tempo, todos queriam tentar recitar, eles viram como um desafio mesmo. Todo mundo queria fazer a brincadeira do rato”, detalha Jamille com empolgação. Outro conteúdo trabalho por eles foi uma radionovela do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna; assim como um programa especial sobre Manuel Bandeira, em que foi apresentada uma playlist do Tim Maia; já tiveram programas com canções de Roberto Carlos, Rita Lee, entre outros.
O Rádio Escola no Ar também tem trabalhado em cima de teste de um modelo de recorte racial, já que o projeto está inserido numa escola e comunidade em que a maioria dos moradores e alunos são negros. A proposta tem sido abordar questões de raça, como os mitos de origem do mundo, a religiosidade e sua diversidade, entre outros diversos pontos que surgem a partir dos próprios alunos.
“Lançamos para os alunos temas que eles gostariam de trabalhar. Os adolescentes querem raça e beleza interior, por exemplo. Quando fizemos o diagnóstico com as crianças a partir de uma atividade de autorretrato, todos desenharam-se com cabelos lisos, daí começamos a levar canções que falavam de cabelo, pois isso é uma elemento muito forte, principalmente para as meninas negras, de como você assumir o seu cabelo, se achar bonita”, exemplifica Jamille.
A proposta , então, é de trabalhar dentro de um recorte racial que apresente o tratamento da cultura africana fora da escravidão e da estética da miséria, levando autores, escritores, artistas negros e, por vezes, ‘revelando’ esses artistas como negros – que é o caso citado de Machado de Assis, presente em muitos livros didáticos como um homem branco. Jamille e Duana contam que irão levar ainda Jorge Ben Jor, os afro-sambas de Vinicius de Moraes, Gilberto Gil, entre tantos outros.
E, em meio aos tantos nomes da literatura e da música que são apresentados aos alunos, o projeto passou por uma fase em que todos os integrantes bolsistas do Vice Verso foram ministrar pequenas oficinas de acordo com suas habilidades. A cantora Aline Maria, por exemplo, foi à escola conversar sobre voz, na oficina de orientação vocal; o cantor Fernando Zorzal deu uma aula sobre sonoplastia; a oficina de Teatro Sonoplastia, por Elvira Broetto; e a oficina de vídeo com Iuri Galindo, entre outras (fotos acima).
A proposta é de que o projeto seja mantido na escola, por enquanto, até o final do ano. Jamille Ghil contou que os integrantes estão em busca de expandir para o ano seguinte, caso consigam a aprovação em edital de programas de extensão federal. “A Rádio Escola no Ar é uma construção, ela precisa de continuidade. A escola nos acolheu desejando muito esse projeto, já era um desejo deles colocar a rádio para funcionar, por isso eles nos auxiliam em tudo, pois compreendem que a música e a literatura possuem um poder de mobilização muito grande”, finaliza Jamille.
Acompanhe as atividades do projeto Rádio Escola no Ar nas redes sociais e no blog descritivo do programa Vice Verso.