A condenação em primeira instância do tesoureiro do PT a 15 anos de cadeia por corrupção, ao lado de diretores da Petrobras, é um contrapeso-fichinha perto do que ainda pode vir das entranhas do poder político abraçado ao poder empreitarial.
Sim, precisamos falar desse velho/novo poder, que até agora operava silenciosamente à sombra das grandes obras públicas.
O poder empreitarial é a mais nova face do crime do colarinho branco.
O velho sonho petista de ver dezenas de patrões na cadeia está se realizando sob a forma de pesadelo com dramática intensidade.
A tolerância social com a corrupção produziu um descalabro na administração pública. Ao se revelar tamanha roubalheira, o povo desacredita de tudo: políticos, empresários, partidos, estatais, funcionalismo.
Pior do que isso, só os militares acobertando a tortura e a execução sumária de dissidentes taxados de subversivos e comunistas na época da ditadura militar.
No meio desse escândalo, o quarto governo petista vive uma situação que lembra o final do governo Jango (1963/64) e o do governo Vargas (1953/54).
Atingida por vagas suspeitas de ter conhecimento de malfeitos, a presidenta Dilma já nem se identifica como petista. Híbrida oriunda da resistência à ditadura que se firmou como economista na administração pública a serviço de governos progressistas, ela parece perdida no tiroteio que se intensificou depois das eleições de 2014.
Sim, até a eleição passada, fora o escândalo do Mensalão, o Brasil petista parecia ir bem. De repente o PT virou o vilão da história. Terá exagerado na dose social ao elevar os miseráveis à condição de cidadãos e consumidores? Pode ser, mas parece indiscutível que o PT errou na dose e sujou as mãos; está vivo mas perdeu a aura de justiceiro. Entre outras coisas, isso paralisa o governo.
Não se sabe como vai acabar essa novela, mas sabemos como começou. Foi quando Lula, em nome do partido, lançou a Carta ao Povo Brasileiro em junho de 2002. Na real, a carta era endereçada especialmente aos banqueiros internacionais.
O PT tinha 22 anos, já havia adquirido certa confiabilidade após governar as cidades de Fortaleza (Maria Luiza Fontenelle, 1983), São Paulo (Luiza Erundina, 1989) e Vitória (Vitor Buaiz, 1991), mandava em Porto Alegre (Olivio Dutra, Tarso Genro e Raul Pont) e havia conquistado os governos do Espírito Santo (Vitor Buaiz, 1995), Distrito Federal (Christovam Buarque, 1995) e Mato Grosso do Sul (Zeca do PT), três estados pequenos mas diferenciados por sua localização geográfica. Tudo isso sem falar das cidades do ABC paulista, genuinamente petistas. E Santos com Telma de Souza e o Rio com Benedita Silva.
Tudo isso era pouco. O objetivo maior é o poder central. No inverno de 2002, depois de perder três eleições presidenciais, os cabeças do partido liderados por José Dirceu concluíram que para alcançar o poder federal seria preciso fazer alianças não só à esquerda, mas com a direita e ainda obter um salvo-conduto do Capital mediante “a preservação dos contratos”. Foi aí que se deu o famoso pulo-do-gato. O resto sabemos.
Para poder aprovar projetos no Congresso, foi necessário comprar parlamentares. Para ir às compras, foi preciso passar o chapéu junto a empresas prestadoras de serviços do governo. Seus donos e filhotes acharam que podiam prevaricar à vontade, pois foi sempre assim desde Tomé de Souza. O governo é um ente aético, já dizia Delfim Netto, nos idos de 1973, no auge da ditadura militar.
Houve também o tradicional loteamento de cargos em ministérios e estatais para os partidos da base governamental. O PT se adaptou a práticas vigentes nos meios políticos e empresariais. Parecia tudo normal. O PT inchou. “Aparelhou” a máquina, como sempre se fez.
No começo eram estudantes, professores, ex-exilados, sindicalistas, religiosos ligados à teologia da libertação, jornalistas e esquerdistas em geral que haviam perdido as ilusões com o socialismo de Estado e acreditavam ser possível fazer justiça social a partir de um governo democrático convencional.
Pior ainda, com a perspectiva de permanecer longamente no poder, o PT atraiu gente da classe média que se vestiu de progressista para usufruir de cargos públicos. Arrivistas, oportunistas sem ideologia se filiaram ao partido por via digital. Foi assim que o PT terminou de perder a identidade original: juntando o pragmatismo da cúpula ao carreirismo emergente nas bases, o partido se corrompeu inexoravelmente.
Desiludidas, algumas pessoas se desligaram do PT muito antes das primeiras denúncias, feitas por um corrupto confesso que se travestiu de vestal. “Sai daí ligeiro, Zé”, disse o Jefferson carioca, num espetacular flagra de TV. O recado era para Zé Dirceu, o ministro-chefe da Casa Civil do primeiro governo Lula.
O lance inicial da escalada foi de R$ 3 mil para um diretor dos Correios lá colocado pelo PTB. Dez anos depois, ficamos sabendo que os lances subiram para US$ milhões manipulados por diretores da Petrobras.
Pode-se acusar o poder judiciário de possuir motivações ideológicas para investigar e condenar os petistas e seus aliados políticos e cúmplices empreitariais, mas a verdade é que se está chegando legalmente ao fundo do poço. Por coincidência, o governo Dilma se debate numa profunda crise de credibilidade/confiança habilmente manipulada por grupos de interesses políticos e empresariais cuja ponta de lança é a mídia tradicional, também abalada pela ascensão das redes sociais. Todo mundo está procurando abrigo. Para quem foi preso por indícios de participar de maracutaias, resta o silêncio ou recorrer ao instituto da delação premiada, que vem fazendo a diferença. Mas o maior diferencial parece vir mesmo da revolução digital.
Mesmo onde não há confissões e delações, surgem provas deixadas pelo rastro eletrônico do dinheiro — o velho e famoso móvel do crime. Coisa nunca vista, até as autoridades bancárias da Suiça, tradicional paraíso fiscal, estão colaborando e repassando dinheiro sujo. Idem os EUA sabe-se lá por quais motivações anglossaxônicas. All is business, all is money.
O que todo mundo sabe é que, nessa barafunda armada ingenuamente por neófitos na roubalheira, não há só plataformas de petróleo e refinarias, mas anéis viários, aeroportos, barragens, estradas, fundos de pensão, linhas transmissoras de energia, metrôs, pontes e terminais portuários. Isso sem falar de cursos de capacitação, treinamento e reciclagem de pessoal do serviço público. E de contratos de serviços de segurança, transporte e limpeza. E de contratos de propaganda e marketing.
A propina está tão entranhada no mundo dos negócios que, obviamente, mantém linha direta (on line) na administração pública, na qual há espaço para uma devassa completa. Interessa?
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual
governo colocou o país novamente em um impasse”.
Lula na Carta ao Povo Brasileiro de 22/06/2002