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Mirtes e a busca pela consagração do movimento negro no Estado

Oriunda de uma comunidade quilombola chamada Angelim, na região do Sapê do Norte, em Conceição da Barra (norte do Estado), Mirtes Santos já era formada em Direito, pela Faculdade Batista de Vitória (Fabavi), quando tomou frente da criação de um dos coletivos que muito tem incomodado, o Coletivo Negrada.

Tempo ela não tem, nenhum. Às vezes, entre uma brecha e outra, é possível sentar e conversar sobre sua militância em prol das luta. E neste último dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, Mirtes conseguiu conversar e descansar um pouco da viagem recente a Belo Horizonte, enquanto se preparava para seguir para a VIII Marcha Estadual Contra o Extermínio da Juventude Negra – realizada nessa sexta (20) no Centro de Vitória.

 
No segundo semestre de 2009 ela finalizava o curso de Direito na faculdade para adentrar finalmente como estudante da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no curso de Letras; além de dar início à pós-gradução em Políticas de Promoção da Igualdade Racial na Educação – tudo praticamente ao mesmo tempo.

“A minha turma de Letras só tinha três negras, contando comigo. Na época ainda não havia esse sistema mais abrangente de cotas, então nós negros estávamos lá resistindo. Era bem difícil e houve um fator determinante para que a gente criasse o Coletivo Negrada: a separação de uma turma inteira entre cotistas e não-cotistas no Departamento de Letras”, recapitula.

Foi preciso então uma mobilização rápida com os estudantes negros para chamá-los a se organizarem de acordo com as pautas que lhes contemplavam, com o intuito de fortificar o jovem negro na Universidade e, assim, evitar o afastamento desses estudantes de seus cursos. Eles, juntos, aguardaram até o dia 18  de julho – data que se lembra o Dia Internacional de Nelson Mandela – para realizar a primeira reunião do Coletivo dentro da Ufes, local hoje que abriga o ‘quilombo’ do Negrada – especificamente no hall da Reitoria, além de uma sala fixa no prédio de Direito.
A militância de Mirtes foi construindo-se aos poucos dentro dela. Além de negra, ela cresceu vendo a tia-avó tomar frente das lutas quilombolas no Sapê do Norte, em prol do bem mais negado a essa população: o direito às terras.

“Até bem velhinha, pouco antes de morrer, minha avó ainda militava no movimento quilombola. Então, sempre a vi fazendo parte disso, participando dos processos políticos e de luta de direitos. E, diante de toda essa necessidade que o povo negro tinha por lá, e em especial a minha família  – que é de maioria negra -, fui me agregando à causa. Aliás, sempre quis fazer Direito na vontade de conseguir ajudar nessas lutas. Mas eu também não sabia se conseguiria resolver os problemas de minha família”, resgata Mirtes.

Hoje Mirtes não está à frente das pautas quilombolas, de fato, como a avó gostaria de ver, mas ela sabe que estar na militância do movimento negro é estar, automaticamente, também lutando pelas pautas quilombolas.

Ao sair de seu território para estudar em Vitória, ironicamente, calhou de trabalhar na área ambiental em uma empresa de grande porte, uma potencial poluidora que não respeitava o direito ao território de povos como os quilombolas. A indignação foi tamanha que largou a empresa e foi estudar.  Nessa época já acompanhava o vai-e-vem de um movimento de alunos brancos de escolas particulares que se posicionavam contra as cotas na Ufes. Adentrou na Universidade sabendo que não seria tão fácil sua estadia por lá.

 
 
“O ingresso na Ufes me deu mais possibilidade de pensar o Movimento Social Negro, já que a minha presença era muito exclusiva, a partir do fato de que era muito raro ver outro igual a mim”, acrescenta Mirtes. A partir do entendimento de que o jovem negro cotista que entra na Ufes atualmente não dispõe, na maioria das vezes, de tempo para reuniões e discussões sobre movimentos socias, o Negrada então realiza ações que desenvolvem discussões na tentativa de incluir quem ainda está distante.
“O jovem negro cotista que está dentro da Ufes não vem aqui para fazer movimento estudantil. Não vem aqui para se divertir nos 'rocks' noturnos. Ele vem aqui para estudar. E ele tem esse tempo muito restrito, mal consegue participar de grupos de estudos e fazer pesquisas. Os auxílios que a Universidade oferece são irrisórios e burucráticos, impossíveis de atender às nossas necessidades de poder parar de trabalhar e só estudar”, destaca.
Sendo assim, o Negrada levanta, entre suas pautas, a necessidade de se pensar as cotas para além do ingresso na Universidade, mas chegando às formas de auxiliar o aluno cotista a manter-se no espaço.

Outra pauta constante é a luta pela implementação da Lei 10.639/2003 – obriga o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas de ensino fundamental e médio das redes pública e privada de todo o Brasil -, no intuito de levar essa obrigatoriedade para a formação universitária também, já que existe tal decisão do Ministério da Educação, mas nas universidades não há dialogo sobre o assunto. Além, claro, das demandas constantemente debatidas, como a discussão sobre a redução da maioridade penal e o extermínio da juventude negra.

Por morar perto da Ufes, atualmente é muito comum encontrar Mirtes pelos arredores da universidade – sempre muito disposta a conversar sobre projetos e ações que podem mudar um bocado a relação de estudantes negros com o ensino superior. Talvez quem a encontre na rua nem faça ideia dos diversos casos de racismo que ela e o Coletivo Negrada ajudam a denúnciar, resolver e auxiliar no âmparo às vítimas de racismo.

“Recentemente as pessoas tiveram acesso ao Caso Malaguti, mas existem tantos outros casos de racismo na Universidade, e tão graves quanto, que não tornamos públicos. Às vezes as pessoas pensam que o Negrada está parado, sem fazer nada, mas nós estamos no acompanhamento e denúncia de casos que não se podem expôr as vítimas. São casos com professores, com alunos brancos oprimindo estudantes negros”, relata.

 
 
O Caso Malaguti veio à tona neste ano, quando o então professor de Ciências Sociais, Manoel Luiz Malaguti Barcelos Pancinha, foi denunciado por dizer em aula que “detestaria ser atendido por um médico ou advogado negro”, entre outras ofensas aos alunos negros da Ufes. Mirtes e o Coletivo Negrada tomaram frente da denúncia e orientaram todo o processo dos alunos que sentiram-se ofendidos com as falas. O resultado surtiu efeito e, ainda neste mês de novembro, o professor foi exonerado do cargo – uma conquista não só para os estudantes negros da Ufes, mas um alerta a quem ainda pratica racismo no meio universitário.
“O caso Malagutti aconteceu com estudantes que não eram do coletivo. Só que a referência do coletivo naquele momento foi fundamental para que a denúncia fosse feita. Lembro que eu estava chegando no prédio do IC-3 para uma aula e, de repente, uma menina chegou chorando perto de mim e contou o que havia acontecido na turma dela. Quando virei, vi as pessoas saindo da sala transtornadas com o que o professor havia falado. Eles começaram a me contar e eu pedi para que cada um escrevesse naquela hora, com detalhes ainda frescos, o que tinha ocorrido”, detalha Mirtes. O passo seguinte foi decidir por uma denúncia na Ouvidoria, feita sob o nome do Coletivo Negrada.

“Fizemos isso porque  alguns deles sentiram receio de se expor, medo até. A juventude negra já sofre racismo todos os dias, então expôr o espaço onde se ocupa com tanto carinho para denunciar mais um caso de racismo é pesado para muitos deles. Decidimos em conjunto por fazer a denúncia como Coletivo Negrada, até para fortalecê-los. Então registramos e depois o departamento do curso e o centro acadêmico também tomaram providências”, detalhou.

A visibilidade do caso ganhou as mídias e revelou também que é preciso muito que casos de racismo sejam denunciados, já que muitas pessoas têm dificuldade de aceitar que tais casos são de preconceito e precisam ser avaliados e punidos. Mirtes relata que houve quem defendesse em peso o professor Malaguti, como o colunista de A Gazeta, João Baptista Herkenhoff.

“Estamos bem chateados no momento por conta da declaração do Herkenhoff em uma coluna. Nela, ele defende Malaguti e ainda alega que um representante do nosso coletivo também concordava que a penalidade de exoneração era exacerbada, que nós do Negrada esperávamos que fosse apenas a aposentadoria compulsória. Jamais nós falaríamos isso, inclusive vamos pedir direito de resposta. Isso é muito sério, ele mentiu e usou nosso nome”, declara – a coluna em questão foi publicada nessa quarta-feira (18) e não dá nome ao representante do coletivo.

Hoje o Negrada se declara apartidário e participa, mesmo que por vezes timidamente, das marchas e ações sociais que tomam conta das ruas desde as grandes manifestações de 2013. A participação tímida é por entender que a grande maioria dos movimentos sociais ainda não pautam as lutas do povo negro, mesmo que haja insistência para que isso seja levado às ruas.

Mirtes conta que na recente Manifestação Estadual de Mulheres Contra Cunha, em Vitória, a mulher negra não se viu representada nem nas falas, nem nos gritos, nem na caminhada. “A mulher branca prega a luta unificada em prol de todas as mulheres, mas nós negras temos especificidades que devem ser pautadas. Nós vivemos no segundo Estado que mais mata as mulheres, e mulheres negras em sua maioria, e isso não é destacado suficientemente. É por isso que achamos importante o recorte racial”, lembra Mirtes.

 
Todas as quartas o Coletivo Negrada se reúne na Ufes para discutir suas pautas e pensar ações. Só neste ano foram realizados seminários, intervenções em diversas escolas públicas; criado o Cine Negrada, com programação audiovisual para estudantes de ensino médio e comunidade, além de debates.

Na próxima terça-feira (24), o coletivo realiza o evento Denegrindo Gênero e Feminismo, que traz como convidada a Mestre em Filosofia, Djamila Ribeiro; além da formação de uma mesa de debates sobre raça, gênero e interseccionalidades dentro e fora do ambiente acadêmico, com a presença uma representante bissexual, dois transsexuais, e ainda há a possibilidade de incluir uma mulher africana.

 
“Não incluímos a mulher branca porque entendemos que esse espaço é para que ela ouça. Quem sabe nos próximos encontros a gente possa fazer um diálogo com a mulher branca, mas no momento percebemos que é preciso um avanço da parte delas para dar espaço às causas da mulher negra, quando percebermos que esse avanço tem sido feito, iremos pensar formas de inclusão nas falas”, explica Mirtes.
Mirtes acrescenta que quem quiser conhecer o Coletivo Negrada pode frequentar seus eventos, bailes, discussões e algumas reuniões. Os membros já são tantos que ela perdeu a conta da quantidade de integrantes. Ainda assim, consegue contar histórias de muitos deles, como a da jovem de 17 anos, Arielly, que se achegou ao coletivo em um evento do Negrada e, hoje, já representa o grupo no Conselho Estadual de Juventude.

“Quando a gente propõe atividades dentro de Ufes, não  nos damos conta de que isso chega de fato na juventude lá fora. A Arielly mandou uma mensagem na página do coletivo querendo participar do evento, ela perguntou se podia entrar na Ufes. Isso porque a Ufes é vista como um espaço inatingível. Eu falei para ela 'esse espaço é seu! se você quiser, eu vou lá na porta te esperar', e foi assim que nos conhecemos”, relata ela num sorriso sem tamanho em meio ao campos de Goiabeiras da Ufes que, apesar de seus empecilhos, é o lugar onde milita, estuda e constrói realizações.  

 
Serviço
O evento de discussão Denegrindo Gênero e Feminismo, com participação de Djamila Ribeiro, será na próxima terça-feira (24), a partir das 19h, no Cine Metrópolis. A entrada é livre. 

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