Fotos: Rogério Medeiros
A “guerra ecológica” travada entre Augusto Ruschi e o governo do Espírito Santo pela Reserva Biológica de Santa Lúcia, em Santa Teresa, é para mim o retrato mais fiel de sua relação com a Natureza. Ali o naturalista, o cientista, o ambientalista, o sábio e o valente se reuniram em um só homem para única e inexoravelmente proteger um quinhão de floresta da voragem tão capixaba de devastação ambiental.
A história é ótima. Um drama de tensão em níveis elevados, ameaças explícitas, intimidações escancaradas. Ruschi jurou de morte o então governador do Estado, o biônico Elcio Alvares, caso insistisse em tomar-lhe a reserva para plantar palmito. Isso em plena ditadura militar. Ainda é possível ver seus graúdos olhos azuis chamejando de raiva e convicção.
Estamos em 1977.
“Vou defender este patrimônio até a morte. Mas vão me encontrar armado e disposto a matar. Faço isso por estar certo de que o grande beneficiado será a própria humanidade, pois aqui existem milhares de espécies que clamam pela sua salvação. Eu guardei essas plantas e seus bichos durante 38 anos. É uma existência. É a minha vida, a vida delas. Se for preciso tirar a vida de alguém para mantê-las, eu faço sem pestanejar. Mato qualquer um. Até o governador do Estado”.
Meter o bedelho em Santa Lúcia foi o jeito que Elcio arrumou para retaliar um Ruschi que, de outra forma, já vinha incomodando a elite política e empresarial capixaba com ataques impiedosos às transnacionais da Ponta de Tubarão. Ruschi foi um crítico contumaz da instalação dessas grandes indústrias no local; já previa a catástrofe atmosférica que hoje seviciam os pulmões capixabas.
Hoje um obscuro Presidente da Banestes Seguro, Elcio talvez arrependa de ter posto os beija-flores, orquídeas e árvores de Ruschi sob ameaça. Em Alegre, onde é prefeito, Lemos deve sentir igual travo incômodo na alma. Ruschi rugiu para ambos.
O governador consultou seu então secretário de Estado da Agricultura, Paulo Lemos, procurando uma brecha legal para constranger o cientista. Achou: o Estado considerava a reserva uma área devoluta, justificativa perfeita para incorporá-la ao Instituto Estadual de Florestas (IEF). Lemos buscava serenar o cientista com uma cantilena ainda hoje entoada pelos governos: nada há acontecer, seus estudos estão garantidos. A ideia era destinar as terras ao cultivo de palmito.
Ruschi, claro, não se intimidou. O histórico do IEF depunha contra o próprio governo – ele, digamos, reavivou a memória do secretário com a devastação e ocupação desordenada da Reserva de Comboios, em Linhares.
A Estação Biológica de Santa Lúcia era uma área de 279 hectares com que Ruschi mantinha íntima relação desde pelo menos 1930 para estudos e pesquisas de flora e fauna. Ele apontava a existência de 600 mil orquídeas, 20 mil árvores e 320 espécies de animais, apesar das dimensões exíguas da área.
O patrimônio de Santa Lúcia ofereceu-lhe elementos para pelo menos duas centenas de trabalhos científicos. Uma área de importância inatacável para formar e consolidar o cientista mundialmente renomado. “Meus filhos, ando dentro dessa floresta melhor do que vocês na rua”, disse a um casal de pesquisadores do Museu de Nova Iorque a quem guiou por dentro da mata.
A posse da reserva pertencia desde 1939 ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que no entanto não gozava do domínio. Um convênio assinado entre governo do Estado e UFRJ selou o caso e Ruschi venceu a guerra.
Com seu jeitão briguento e frases ferozes, Ruschi peitava a elite empresarial capixaba, um gênero humano intratável e egocêntrico. Talvez para esse grupo, Ruschi tenha sido um dos primeiros ecochatos – cognome com que a retórica desenvolvimentista desqualifica quem busca evitar fatalidades como a morte de um rio, rompimento de barragens, extinção de espécies da fauna e flora.
Mas obviamente a impetuosidade ruschiana eram projéteis poderosamente enriquecidos de argumentos sólidos, compactos e consistentes. Quando falava o ecologista, o defensor das matas, falava também o cientista, o intelectual das matas. Nascia aí um defensor intransigente da natureza, que não com crimes ecológicos.
Foi uma espécie de profeta das mazelas ambientais capixabas: esbravejou contra a substituição de matas nativas por eucaliptos por ocasião da instalação da Aracruz Celulose e alertou para a poluição atmosférica com a chegada das grandes empresas na Ponta de Tubarão. Hoje o eucalipto e o pó preto são os principais algozes do meio ambiente do Espírito Santo.
Às vezes, parecia o último romântico das florestas, como quando se meteu a defender um jequitibá-rosa de 600 anos em Ibiraçu da fúria de tratores – “Deixa o jequitibá lá espalhando as suas sementes e fecundando o solo”, disse. Mas a questão era sempre defender o Espírito Santo da devastação florestal.
“Nosso estado, infelizmente, foi a ‘universidade’ que formou os maiores especialistas em destruição de florestas, seguramente, de todo o universo”, afirmou. Ruschi costumava apontar o dado de que, entre os anos 60 e 80, o Espírito Santo perdeu 23 mil quilômetros quadrados de uma cobertura florestal total de 38 mil quilômetros quadrados. Foram extintas centenas de aves, orquídeas, árvores.
E falar de devastação ambiental é falar de eucalipto e Aracruz Celulose. Em 75, Ruschi falava sobre o processo de desertificação que já se alastrava pelo estado e que poderia se agravar com a implantação violenta de uma espécie exótica ao sistema ambiental capixaba como é o eucalipto.
Pediu também cuidado com os sistemas de antipoluição atmosférica e marinha da empresa, cujas operações foram iniciadas em 80. Vã advertência. Em 84, ele denunciaria com todas as letras a matança dos mariscos do Rio Piraquê-Açu pelos efluentes; na foz do rio, já não se verificavam microorganismos vivos. E os gases das chaminés da Aracruz Celulose se espalhavam por nove municípios, dependendo da direção dos ventos.
Ruschi também investiu contra o pó preto. Numa entrevista de 75, de tão absurda a ideia, duvidou da instalação de uma siderúrgica na Ponta de Tubarão. Explicou que os ventos nordeste são predominantes em Vitória por oito a nove meses por ano. Empresas de grande porte, ali, significariam efetivamente pó preto nos pulmões da cidade.
“E como nos passos iniciais para o estabelecimento de qualquer indústria, principalmente do porte dessa siderúrgica de Tubarão, o primeiro fator a ser considerado é que os efluentes poluidores principais são os atmosféricos, é capital que se conheçam todos os dados metereológicos, bastando a direção dos ventos dominantes desfavoráveis para eliminar a sua implantação. Por isso, ainda não creio que ela será ali implantada […]”. Nossos pulmões que sabem o final dessa história.
Quiseram os astros que, justamente no ano do centenário de Augusto Ruschi, os presságios do naturalista ecoassem de forma tão vibrante e eloqüente. Este é o ano em que caiu a ficha: o rio Doce é um animal agonizante e a Vale e ArcelorMittal são antes doença que progresso. A diferença é que, num caso, Ruschi não culpou São Pedro ou produziu espetáculos chorosos, como a mídia oficial e governo Paulo Hartung; no outro, tampouco resguardou as empresas.
Não deixa de ser interessante que justamente o Espírito Santo, terra de dimensões acanhadas, mas que amargou como poucos as barbáries ambientais produzidas pelo capitalismo, tenha engendrado uma figura como Augusto Ruschi. Talvez, o contrário: só a mediocridade capixaba poderia engendrar uma figura rica e vigorosa como Ruschi.
Era incapaz de atribuir danos ambientais a inimigos sem rosto. Lógico que seu perfil peculiar de tratar as calamidades ambientais capixabas não seria absolvido pelos senhores locais. Daí que com a clareza e contundência de suas opiniões angariou apenas campanhas contínuas de apedrejamento moral dentro do próprio estado. A mídia corporativa sabe do que falamos.
Mas os problemas com que os capixabas se debatem hoje mostram que as brigas e gritos de Ruschi não foram vãos. Hoje o Espírito Santo é um indefectível eucaliptal das florestas do Caparaó, em Dores do Rio Preto, à Vila de Itaúnas, em Conceição da Barra; a Grande Vitória é uma bolha de pó preto. Ruschi avisou.
Carregado pelos beija-flores, Ruschi vai passar a data de seu centenário, 12 de dezembro, assistindo ao rio Doce estertorar sob a lama tóxica do maior crime ambiental do novo século, ocorrido em Mariana, Minas Gerais.
E logo o rio por que tanto brigou: em 77, ele apontava o desmatamento de uma das mais exuberantes florestas do planeta como causa primeira. A agricultura, a indústria de madeira e a formação de pastagens ceifaram a cobertura vegetal original. A onda desenvolvimentista via instalação dos grandes projetos industriais trouxe as fatais floretas de eucalipto, cuja expansão desimpedida devorou de forma selvagem as pequenas propriedades.
O que diria Ruschi do Canal Caboclo Bernardo, uma prótese ao rio Doce operada pela Aracruz Celulose (Fíbria) para alimentar a própria fábrica?
Carlos Drummond de Andrade, cujos proféticos versos de Lira Itabirana andam circulando vertiginosamente pela internet após o crime de Mariana, dedicou uma crônica a Ruschi. Chamou-o de “sábio valente”.
O bardo mineiro entendeu por que quando Ruschi saía em defesa de três espécies de beija-flor, ameaçados pelo desmatamento da Fazenda Klabin, em Pedro Canário, ou das tartarugas-gigantes, ameaçadas pela ocupação desordenada da Reserva de Comboios, em Linhares, único local conhecido para a desova do colossal animal, ou das orquídeas e beija-flores da Reserva de Santa Lúcia, ele o fazia porque entendia a dinâmica interna da Natureza dependia de um complexo sistema de equilíbrio entre seus elementos.
Ao final da vida, mesmo a saúde debilitada, reafirmou, recordando o entrevero com Elcio Alvares: “Pela Natureza eu ainda mato, mesmo do jeito que estou”.
Ruschi nunca confiou nos meios, expedientes e instrumentos jurídicos tradicionais para julgar os crimes ecológicos, como o que testemunhamos em Mariana. Considerava, e o tempo confirmaria sua hipótese, que o Brasil perderia tudo, Amazônia incluída, sem um modelo alternativo de justiça. Assim propôs uma instância estritamente ambiental, a que batizou Tribunal da Natureza.
“Tenho esperança de que ele surja pelo processo de desenvolvimento de uma mentalidade ecológica do povo brasileiro, como espero o surgimento de um Ministério da Natureza”. No “sábio valente”, o cientista e o brigão marcharam lado a lado para erigir um visionário comovente. Razão e emoção aos borbotões.