O corte de faca, o corte de uma faca só lâmina, eis o que João Cabral de Melo Neto nos propõe. Sua imagem da faca é despertada no sentimento de ausência que possui um homem. Este homem quer o corte, João Cabral, com sua poética fria e compassada, nos dá em perfeito esquema uma faca como bala, e que se compassa exatamente como relógio.
João Cabral é colocado como o poeta da educação da pedra e da vida severina, com justiça, de todo, pois o que sua poesia nos dá é um modo de letra lúcida, a lírica por estas bandas não dá muito as caras, e no caso de Cabral, ela é dispensada e torna-se desnecessária, pois dificilmente deveremos nele toda esta nossa herança lusitana ou lusófona que se cria com tiques e batimentos ornados de barroquismos e arcaísmos. João Cabral é seco, aprendi um pouco com ele a também fazer a tal poesia “limpa”, e me dei bem por vezes.
A faca é a coluna vertebral deste longo escrito de João Cabral, e sua língua seca nos oferece na ausência a presença do corte, fundo e profundo, abarcando em um relógio que nos dá o tempo desta secura e deste corte, pois de toda a poesia de Cabral, esta faca só lâmina é um dos possíveis resumos do que significou a jornada poética de João Cabral de Melo Neto enquanto viveu aqui no Brasil e na Terra.
UMA FACA SÓ LÂMINA
(ou: serventia das ideias fixas)
(1955)
Para Vinícius de Moraes
Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra os próprios ossos.
A
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.
Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta,
Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.
Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
B
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.
E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.
Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.
Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.
E como faca que é,
fervorosa e enérgica,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:
a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e vive a se parir
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja a faca mesmo).
C
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se embotam mais no músculo,
Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.
É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,
e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.
Então se for a faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.
Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.
O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.
D
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.
Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.
Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor
bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.
E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira.
Bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.
(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais).
OBS: o poema continua, mas não vou colocá-lo na íntegra, pois é muito longo, aconselho a edição de Poesias Completas de João Cabral de Melo Neto da editora José Olympio)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com