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Bertolt Brecht, o poeta (parte 1)

Criador do chamado teatro épico, portanto, bem conhecido como dramaturgo, Bertolt Brecht também foi poeta. Um dos maiores artistas do século XX, viveu em sua arte todo o intenso embate do século passado, sendo um dramaturgo e poeta bem representativo do que foi este século. No teatro, teve como base uma práxis baseada numa síntese entre os experimentos teatrais de Piscator e Meyerhold, tornando-se, neste ínterim, um marxista convicto, o que se refletiu muito fortemente em seu teatro e poesia, sendo então um crítico do capitalismo e do fascismo. Herdou ainda o conceito de estranhamento de Chklovski, do teatro chinês e do experimentalismo soviético.
 
Na poesia, Brecht foi um poeta político e social em grande parte de seu trabalho. Nos poema que enumerei nesta primeira parte, isso fica bem evidente. Em “Hino a Deus”, o fenômeno da fome e da pobreza veem como interpelação pela existência de Deus e de sua justiça, até que ponto é necessário Deus, ou em que lugar mora a redenção de tanta miséria, se o mundo é cruel e injusto? Por sua vez, em “Aqueles perderam a si mesmos de vista”, há uma tendência lírica, mas ainda muito questionadora deste mundo de contradições do fenômeno humano. Pois, de que é feito o desaparecimento destes que vivem? E, se vivem, por qual razão há tanta invisibilidade? Para onde se vai do jovem ao velho e em que resiste os puros de coração, no lirismo brechtiano este poema não nos dá resposta, mas apresenta as “desrazões” do humano, o que aqui se faz por desaparecer, em que “cada qual esqueceu-se de si” e que “muitos esconderam-se desamparados na noite”. Há neste lirismo toda a melancolia da alienação, num sentido profundo de desamparo.
 
No seguimento, aparece o poema biográfico “O pobre B.B.”, em que Brecht fala de si mesmo, um pouco de sua história, em forma poética, por óbvio. “Eu, Bertolt Brecht, venho da floresta negra”, neste verso e nos seguintes de “O pobre B.B.”, meio que Brecht se apresenta ao mundo, e no poema, também, há ainda um jogo metafórico próprio da poesia, Brecht se mostra mas ainda faz poesia com isso.
 
Nos últimos três poemas desta série, primeira parte dos poemas que apresentarei aqui de Brecht, temos a veia propriamente política deste poeta e dramaturgo, o que havia de social nos poemas anteriores, agora veem com toda a carga política, e a marca do século XX cravada em poemas como “Dinheiro”, “Quando o fascismo se tornava cada vez mais forte” e “Canção do pintor Hitler”. “Dinheiro” como mais uma crítica social do que política, na verdade, e a luta feroz do comunista Brecht contra o fascismo e o nazismo, pois Brecht é sobretudo um fenômeno artístico do entreguerras e do pós-segunda guerra, tendo seu escopo ideológico se voltado pela formação de um marxismo militante, o que na sua arte tomou bastante espaço, pois no poema “Quando o fascismo se tornava cada vez mais forte” isso está patente, é um marxista lutando contra o fascismo e o nazismo, o que entra como sátira contra Hitler no poema “Canção do pintor Hitler”.
 
(1913-1926):
 
 
 
HINO A DEUS
 
1
 
No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
 
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
 
Mas você reina eterno e invisível
 
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.
 
 
 
2
 
Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
 
Mas os que desejavam morrer, não permitiu …
 
Muitos daqueles que agora apodreceram
 
Acreditavam em você, e morreram confiantes.
 
 
3
 
Deixou os pobres pobres, ano após ano
 
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
 
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
 
Morreram bem-aventurados, no entanto – e

apodreceram imediatamente.

 
4
 
Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
 
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
 
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam
 
               morrer __
 
Diga-me, que importância pode ter então que você
 
             não exista?
 
 
 
AQUELES PERDERAM A SI MESMOS DE VISTA
 
1
 
Aqueles perderam a si mesmos de vista.
 
Cada qual esqueceu-se de si. O mar carregou seu cadáver
 
Para algum recife, onde pássaros dele se alegraram
 
E dele viveram mais umas semanas.
 
Muitos esconderam-se desamparados na noite, crendo
 
Serem invisíveis, quando nada viam. A noite
 
Deu-lhes proteção, e displicente
 
Tocando maternalmente seu rosto
 
Tomou-lhes em silêncio a visão. Entre sons de vento
 
               e água
 
Tornaram-se vozes de lamento, espantalhos para pássaros
 
Fantasmas de crianças, camisas esvoaçando na passagem
 
Tremendo de medo da risada …
 
2
 
E logo se ergue
 
Rindo no vento, outra estirpe:
 
Homens que dormem no escuro, comedores de pássaros
 
Em casa no corpo
 
E senhores de indizível prazer.
 
3
 
E dos suspiros daqueles
 
De risos e queda
 
Alimenta-se o sol, e a noite bebe.
 
Portanto, a cada hora se renova de queda e voragem
 
A sensação interminável
 
Destinada aos humildes e aos de coração puro:
 
Ser jovem com exuberância e envelhecer com satisfação.
 
 
(POEMAS DO “MANUAL DE DEVOÇÃO DE BERTOLT BRECHT):
 
 
DO POBRE B.B.
 
1
 
Eu, Bertolt Brecht, venho da floresta negra.
 
Para a cidade minha mãe me carregou
 
Quando ainda vivia no seu ventre. O frio da floresta
 
Estará em mim até o dia em que eu me for.
 
2
 
Na cidade de asfalto estou em casa. Recebi
 
Desde o início todos os sacramentos finais:
 
Jornais, muito fumo e aguardente. Desconfiado
 
Preguiçoso e contente – não posso querer mais!
 
3
 
Sou amável com as pessoas. Uso
 
Um chapéu cartola segundo seu costume.
 
Digo: São animais de cheiro bem peculiar
 
E digo: Não faz mal, também tenho esse perfume>
 
4
 
Pelas manhãs, em minha cadeira de balanço
 
De vez em quando uma mulher faço sentar
 
E observando-a calmamente lhe digo:
 
Em mim você tem alguém em que não pode confiar.
 
5
 
À noite, alguns homens se reúnem à minha volta
 
E entre nós, “gentlemen” é o tratamento vigente.
 
Colocam os pés sobre a minha mesa
 
Dizem: As coisas vão melhorar. E eu não
 
             pergunto: Realmente?
 
6
 
Na luz cinzenta da aurora os pinheiros urinam
 
E seus parasitas, os pássaros, começam o gorjeio.
 
Por essa hora eu na cidade entorno a bebida
 
Jogo fora o charuto e vou dormir com receio.
 
7
 
Habitamos, uma geração fácil
 
Em casas que acreditávamos eternas
 
(Assim construímos aquelas imensas caixas na
 
                  ilha de Manhattan
 
E as antenas cujos sinais cruzam o mar como
 
              invisíveis lanternas).
 
8
 
Destas cidades ficará: o vento que por elas passa!
 
A casa faz alegre o conviva: ele a esvazia.
 
Sabemos que somos fugazes
 
E depois nada virá, somente poesia.
 
9
 
Nos terremotos que virão tenho esperança
 
De não deixar meu “Virginia” apagar com amargura
 
Eu, Bertolt Brecht, chegado há tempo na selva de asfalto
 
No ventre de minha mãe, vinda da floresta escura.
 
 
(1926-1933) :
 
O DINHEIRO
 
                     Diante do florim, criança, não tenha medo
 
                    Pelo florim, criança, você deve ansiar.
 
                                                                 (Wedekind)
 
Ao trabalho não o quero seduzir.
 
Para o trabalho o homem não foi feito.
 
Mas do dinheiro não se pode prescindir!
 
Pelo dinheiro é preciso ter respeito!
 
 
 
O homem para o homem é uma caça.
 
Grande é a maldade no mundo inteiro.
 
Por isso junte bastante, mesmo com trapaça
 
Pois ainda maior é o amor ao dinheiro.
 
 
 
Com dinheiro, a você todos se apegam.
 
É tão benvindo como a luz do sol.
 
Sem dinheiro, os próprios filhos o renegam:
 
Você não vale mais que um caracol.
 

Com dinheiro não precisa baixar a cabeça!

 
Sem dinheiro é mais difícil a fama.
 
Dinheiro faz com que o melhor aconteça.
 
Dinheiro é verdade. Dinheiro é flama.
 
 
O que seu bem disser, pode acreditar.
 
Mas sem dinheiro não busque seu mel.
 
Sem dinheiro ela lhe será roubada.
 
Somente um cão lhe será fiel.

 

Os homens colocam o dinheiro em grande altura
 
Acima do filho de Deus, o Herdeiro.
 
Querendo roubar a paz de um inimigo já na sepultura
 
Escreva em sua laje: Aqui Jaz Dinheiro.
 
 
QUANDO O FASCISMO SE TORNAVA CADA VEZ MAIS FORTE
 
 
Quando o fascismo se tornava cada vez mais forte na
 
                  Alemanha
 
E mesmo trabalhadores o apoiavam em massa
 
Dissemos a nós mesmos: Nossa luta não foi correta.
 
Pela nossa Berlim vermelha andavam em pequenos
 
              grupos
 
Nazistas em novos uniformes, abatendo
 
Nossos camaradas.
 
Mas caiu gente nossa e gente da bandeira do Reich.
 
Então dissemos aos camaradas do SPD:
 
Devemos aceitar que matem nossos camaradas?
 
Recebemos como resposta:
 
Poderíamos talvez lutar ao seu lado, mas nossos líderes
 
Nos advertem para não usar terror vermelho contra
 
                o branco.
 
Diariamente, dissemos, nosso jornal combateu os
 
                 atos de terror
 
Mas diariamente também escreveu que só venceremos
 
Através de uma Frente Unida vermelha.
 
Camaradas, reconheçam agora que esse “mal menor”
 
Que ano após ano foi usado para afastá-los de
 
             qualquer luta
 
Logo significará ter que aceitar os nazistas.
 
Mas nas fábricas e nas filas de desempregados
 
Vimos a vontade de lutar dos proletários.
 
Também na zona leste de Berlim os social-democratas
 
Saudaram-nos com as palavras “Frente Vermelha!” e já
 
                usavam o emblema
 
Do movimento anti-fascista. Os bares
 
Ficavam cheios nas noites de debates.
 
E então nenhum nazista mais ousou
 
Andar sozinho por nossas ruas
 
Pois as ruas pelo menos são nossas
 
Depois que eles nos roubaram as casas.
 
 
CANÇÃO DO PINTOR HITLER
 
1
 
Hitler, o pintor de paredes
 
Disse: Caros amigos, deixem eu dar uma mão!
 
E com um balde de tinta fresca
 
Pintou como nova a casa alemã
 
Nova a casa alemã.
 
2
 
Hitler, o pintor de paredes
 
Disse: Fica pronta num instante!
 
E os buracos, as falhas e as fendas
 
Ele simplesmente tapou
 
A merda inteira tapou.
 
3
 
Ó Hitler pintor
 
Por que não tentou ser pedreiro?
 
Quando a chuva molha sua tinta
 
Toda a imundície vem abaixo
 
Sua casa de merda vem abaixo.
 
4
 
Hitler, o pintor de paredes
 
Nada estudou senão pintura
 
E quando lhe deixaram dar uma mão
 
Tudo o que fez foi um malogro
 
E a Alemanha inteira ele logrou.
 
 
(DO LIVRO : BRECHT – POEMAS – 1913-1956) – BERTOLT BRECHT – EDITORA BRASILIENSE – SELEÇÃO E TRADUÇÃO DE PAULO CESAR SOUZA
 
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

 
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
 
 
 
 

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