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Boa Vista, violência e dor

Fotos: Leonardo Sá/Porã

Os olhos ferozes, Glória transmite com pasmo e indignação o teor da conversa que acabara de travar por telefone com uma assistente social da Prefeitura de Vila Velha. O grupo reunido em frente à Unidade Municipal de Ensino Fundamental (Umef) Juiz Jairo de Mattos Pereira ouve com uma atenção que ao final também vai desaguar no mesmo pasmo e indignação. 

 
Glória ligara para saber informações sobre acesso ao Aluguel Social e retorno às casas. “Ainda não tenho o parecer”, lhe respondera a assistente, que, segundo detalhou a sua interlocutora, aguardava um laudo técnico da Defesa Civil para analisar e elaborar o parecer. Completava-se naquela segunda-feira (1) um mês que uma rocha de três mil toneladas e fragmentos de peso não menos impressionantes deslizaram no Morro da Boa Vista, em São Torquato, em Vila Velha. Cerca de mil pessoas tiveram que abandonar suas residências. 
 
Um mês depois, desabrigados e desalojados ainda estão à deriva, sem saber se receberão Aluguel Social, sem saber se podem ou não voltar para casa. Os desabrigados acolhidos pela escola, que, há um mês, é um abrigo municipal improvisado, ainda remoem uma aflição extra: segundo o cronograma da prefeitura, as aulas na Jairo de Mattos começariam na quinta-feira (4), mas foram prorrogadas para o próximo dia 15. Hoje 13 famílias estão no abrigo improvisado.
 
Mulher forte e obstinada, Glória não aceitou o abrigo. Há um mês vive de aluguel numa casa de três cômodos de um vizinho com cinco crianças, entre filhos e netos, o marido e o genro. A lar original, cravado no alto do morro, aonde se chega por ruas e becos sujos demarcados por casas sem reboco e barracos de madeira, está sob risco de queda. É uma casa simples, de quatro cômodos, mas asseada e digna, de piso azulejado e paredes pintadas. Uma exceção. 
 
Pousada a cerca de 10 metros da casa, a rocha gigante produziu riscos finos de rachadura que se espalhando pelo azul-celeste da parede. O acidente feriu a neta de três anos, que foi parar no hospital com a perna lanhada por filigranas de pedra, e levou-lhe ainda um casal de esquilos e um coleiro. 
 
Após o acidente, Glória relutou em sair. Com 38 anos, a balconista forneira desempregada é cria do Boa Vista, mas morava há apenas um ano na casa. Uma contradição aparente, que a paisagem de uma ocupação desordenada e precária explica limpidamente: é a segunda vez que se vê desalojada. A primeira foi em dezembro de 2012 após uma chuva violenta; o terreno cedeu e a casa desmoronou. Hoje sua aflição com a falta de notícias da prefeitura é a aflição de todos os desabrigados: o aluguel de R$ 300 já venceu.
 
O Morro da Boa Vista é uma paisagem monótona de casas sem reboco, barracos de madeira, ruas estreitas mal pavimentadas, becos sujos, cachorros errantes, tristes e magros, e terrenos baldios amontoados de lixo. É um caso clássico de expansão desordenada e ocupação irregular consumadas sem a mínima atenção do poder público. Casas brotam sobre as rochas como as jaqueiras e mangueiras brotam pelo morro; uma água suja às vezes escorre à céu aberto pelas vielas. Crianças negras de dentes amarelos e pés descalços correm sorridentes para cima e para baixo.
 
A casa de Maria do Consolo, 48, e seu marido, Antônio Oliveira, 54, é um desses exemplos de convivência entre homens e formações graníticas: a pequena casa está encravada entre quatro rochas grandes rochas à qual se chega após um lace de escadas coberto por um matagal de capim-guiné. A fachada esquerda faz fronteira com uma rocha, o pequeno quintal, onde os pés de manjericão de Consolo crescem com exuberância, é delimitado por outras pedras enormes. Única com vista livre de pedras, a fachada dianteira se descortina para a ampla paisagem de Cariacica, Vila Velha e Vitória.
 

“Eles estão se preocupando mais com a obra lá do que com nós aqui”, diz Antônio, a expressão severa, apontando da rua da Jairo de Mattos as obras de contenção das pedras, de onde é possível divisar o rasgo no morro feito pela rocha e as estruturas de engenharia montadas ao longe. 

 
O casal ainda hoje está no abrigo: saiu de casa antes do Natal, terminou 2015 e começou 2016 fora de casa. Ou seja, assistiram a quase tragédia pela TV. Ela estava na casa de uma amiga em Colatina; ele, na da mãe em Guarapari. 
 
Foram avisados por telefone pela filha que, talvez, a casa tivesse sido tragada pela rocha. Quando chegaram, subiram o morro para verificar o estado da casa e desceram com a impressão de que qualquer sopro pode desmoroná-la: defrontaram uma rachadura de tais dimensão e extensão na parede da sala que desencorajam qualquer ideia de retorno. 
 
“Tenho medo”, diz ela, singelamente. “Sair da boca da morte para volta para lá? Não. Mas se eu fosse embora amanhã, ia dar graças a Deus”, desabafa. Móveis e vestimentas permanecem todos na casa. Estão usando a roupa do abrigo desde 4 de janeiro, dia em que deram entrada no local. A casa está trancada por uma corrente de aço enferrujada que a porta e a parede. Mas pela janela aberta da fachada dianteira o medo de Consolo se explica: a incisiva rachadura parece que desajusta as frações superior e inferior da parede sala. Sem Aluguel Social, Consolo não faz ideia para onde ir.
 
Antônio é diabético. Licenciou-se da construtora em que trabalha para tratar da doença. Passou mal duas vezes no abrigo, em uma das quais peregrinou pela unidade de saúde do bairro, depois pelo Pronto Atendimento da Glória, para finalmente voltar para São Torquato, onde obteve remédio na Farmácia Popular. A esposa garante que foi a comida do abrigo que fez mal ao marido.  
 

“Comida de presídio”, costumam dizer os desabrigados, com um esgar de asco, sobre a alimentação servida no abrigo. “Várias pessoas já passaram mal com essa comida”, reforça Glória. Uma mulher que passava pelo grupo, que optou pelo abrigo de uma igreja vizinha, disse que seu filho passou mal com a comida do abrigo. Glória faz coro à crítica. A alimentação de almoço e janta é servida por duas empresas contratadas pela prefeitura. Uma delas, a Sabor Original, presta o mesmo serviço para o Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases).

 
Os “moradores” da Jairo de Mattos criticam também a estrutura do “abrigo”, o que, no final das contas, é criticar a estrutura da escola. Salas quentes com ventiladores quebrados e banheiros que empoçam à toa são críticas comuns. O Jairo de Mattos é uma das três escolas da região, junto com a Unidade de Educação Infantil Izabel Correia da Silva e a escola estadual de Ensino Fundamental Silvio Rocio. Em 2011, as escolas fecharam por toque de recolher após a morte de um traficante.
 
Josimara Rocha, 24, até tentou colocar o filho de quatro anos na creche. Não tinha vaga. Agora ele vai passar o resto do ano aqui vagando pela varanda da casa. “Esse ano ele já não entra mais. Só ano que vem…”, diz, resignada. A porta da casa exibe um folheto com o Salmo 91 que se reproduz em muitas outras portas do morro, indicando a inclinação dos moradores à doutrina evangélica. O trecho bíblico é aquele que professa: “Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti”. Sintomático
 
Josimara ficou três semanas no abrigo. Não agüentou. “Ah, calor demais e crianças passando mal por causa da comida, do calor”. Cita também a sujeira e a bagunça. A família de pai, mãe e dois filhos ainda não viu a cor do Aluguel Social. 
 

Andar pelas ruas, becos e velas do Morro da Boa Vista é constatar que o deslizamento da rocha e o acesso precário à educação pública ou ao planejamento urbano são mais um dos problemas dos cerca de 1.400 moradores da região. São dores, mas ainda há outras mais pungentes.

 
Vide a história de X.. (pediu para não ser identificada). Ela tem apenas 20 anos e dois filhos – duas crianças. É mais uma entre as muitas mulheres jovens na região com mais de um rebento. Anda sempre com os cabelos crespos presos, shorts curtos e o piercing no umbigo à mostra. Exibe tatuagens, numa das quais lê-se o nome da mãe no antebraço esquerdo. 
 
Teve mais sorte que Josimara na educação do filho, para quem conquistou uma vaga na creche. Mas duas semanas atrás tentou um pediatra para a consulta mensal da filha na Unidade de Saúde de São Torquato: a sorte não reapareceu. 
 
Em junho, perdeu o pai da caçula para a guerra entre traficantes do Boa Vista e Cobi de Cima que há anos aflige a região. O rapaz soltava pipa no alto do morro com uma criança no colo e não notou os dois estranhos que se aproximavam. Deixaram que ele soltasse a criança e o mandaram seguir em olhar para trás. O único tiro entrou pelas costas e varou o peito. 
 
Uma violência tipicamente capixaba – ele era jovem (21 anos) e negro. Mais especificamente um exemplo pulsante do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Social 2014, divulgado ano passado pelo Governo Federal, segundo o qual no Espírito Santo um jovem negro tem quase seis vezes mais chances de ser assassinado do que um jovem branco. 
 
Os mortos dessa guerra brotam com facilidade dos relatos dos moradores. No dia 31 de dezembro, novo homicídio, outro jovem negro. Os assassinos desceram o morro celebrando o feito, brandindo as armas como bandeiras. Semana passada, um taxista de Cariacica que nasceu e cresceu no Boa Vista foi alvejado dentro do veículo na baixada do morro. Está no hospital em estado grave. Moradores evitam certos caminhos para não rememorar o parente que viu morto.
 
Até agora, contudo, um único caso desse conflito particular extrapolou as fronteiras de São Torquato: o da professora de inglês morta em fevereiro do ano passado na saída da Unidade Municipal de Ensino Fundamental (Umef) Juiz Jairo de Mattos Pereira. Moradores relatam uma troca de tiros.
 
Antônio tinha razão: a Prefeitura de Vila Velha parece mais preocupado com as obras de contenção das rochas. O trabalho está a todo vapor, homens sobem e descem com sacos nas costas; o máquinário ruge sem folga. No ar, o teleférico igualmente sobe e desce com equipamentos.
 
A subida ao local onde a rocha estacionou é feita por uma viela tortuosa e de pavimentação irregular. Uma casa vazia, paredes externas rachadas, escombros de concreto amontoados no interior e espalhados pela viela são primeiro indício do acidente. A casa acima exibe quadro semelhante de abandono. 
 
Um lance de escada e a mensageira do caos se revela com toda a potência. A rocha de três mil toneladas exibe dimensões espetaculares, um portento de granito de pelo menos três metros de altura que sabe-se lá como estancou ali: fosse o contrário, teria pulverizado um renque de casas até o pé do morro, causando uma tragédia intangível mesmo à mais fúnebre imaginação. Mas parou. Tem à frente um rocha e atrás outra muito menores, mas de potencial destruidor também significativo.
 
Há diversas casas abandonadas em um raio de quinze metros ao redor do buraco causado pelo deslizamento. Os cenários são semelhantes: fragmentos de tijolos, pedras, madeira e amianto, móveis revirados, roupas empoeiradas pelo chão, brinquedos esfacelados, paredes e telhados vazados por pedras voadoras. Adentrá-las é assimilar uma ideia mais precisa, porém ainda remota, do impacto do acidente.
 

Chama a atenção um barraco de madeira de apenas vinte metros quadrados: o interior é um retrato triste de pobreza que o acidente só fez acinzentar. O fogão branco asquerosamente encardido recepciona quem entra; sofá e geladeira estão revirados; uma boneca nua e esquartejada repousa sobre a prateleira. O único respiro são as janelas que enquadram a imensidão de Cariacica e da baía sul de Vitória, ao longe os carros deslizando na Segunda Ponte. 

 
Em outro ponto, uma casa de paredes verdes se apropriou de uma das rochas, praticamente tornando-se um elemento da residência. Outro caso é ainda mais impressionante. O cômodo, provavelmente um quarto de casal com crianças, como denuncia o colchão grande e as roupinhas amontoadas no chão, está a dois metros da grande vala do deslizamento. A rocha gigante empurrou uma rocha localizada junto à parede do quarto. A parede como que estufou. A dona da casa estava dentro do quarto no momento fatídico. 
 
De um lado e de outro da grande rocha, moradores seguem suas vidas, mesmo cientes que estão abrangidos pela área de risco definida pela Defesa Civil municipal. Um senhor desfruta a brisa na varanda, uma senhora olha a tarde na janela, crianças correm pelas vielas. Como até hoje pouco receberam de prefeitos, vereadores ou governadores, não seria dessa vez que a coisa mudaria: é o que se lê no olhar opaco e no tom de resignação com que os moradores se referem à vida no Boa Vista.
 
O senhor se chama José Pereira Alves, um homem negro, rijo e de careca reluzente de 70 anos. No dia do acidente, ele estava assistindo TV na sala. De repente explodiu o estrondo; a casa tremeu. 
 
“Parecia um avião. É que de vez em passa avião aqui, né? Aí eu pensei: ‘Será que esse avião bateu nas pedras lá em cima e veio descendo?’. Se fosse avião, ele ia explodir, porque avião depois que cai, explode. Eu sai correndo, fui pular do outro lado”, diz o homem, soltando risadinhas, numa calma e singeleza absolutamente incompatíveis com o que poderia ter acontecido. 
 
Moradores relatam que seu José, morador da região de mais de quatro décadas, rugiu para agentes da prefeitura e policiais militares que insistiam para que desocupassem a casa. Acabou cedendo, mas três dias depois estava de volta. Erguida sobre um grande fragmento de rocha, é um ponto solitário de cor e graça no morro, com fachada em verde-limão e janelas em azul-frança. Refestelado na cadeira de sua varanda, o homem vê a pedra há cinco metros de distância e todo o trabalho de contenção das rochas.
 
Um de seus filhos, um homem negro e alto de 32 anos, sentencia: “Sabe o que eles vão fazer? Vão largar aquele pessoal lá no abrigo até cada um voltar por si mesmo”. Enquanto isso, seu José, cotovelo no guarda-corpo da varanda e mão no queixo, deita uns olhos tranqüilos sobre o Boa Vista.

 

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