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Bertolt Brecht, o poeta (parte II)

Um recém-chegado à poesia recebe os conselhos de poetas eminentes, consagrados pela História, em meio da briga e da gargalhada, assim Brecht enumera sua ficha particular de poetas com ironia e metáfora em seu “poema de poetas”, isto é, o poema “visita aos poetas banidos”, pois na voz de Eurípides e Shakespeare, na hora representando o teatro, e que também são poetas, o trágico e o elisabetano, o mundo antigo é apresentado pela alma de Ovídio, e outros da dinastia Tang, chineses, obviamente, uma constelação dando conselhos ao desprevenido visitante que no poema não é identificado, mas que, na cara, é poeta, e que de uma das várias advertências, tem a mágica que todo poeta tenta fazer: “Escuta, sabem eles também os teus versos de cor?” pela voz de Dante. O poeta empalidece, pois sua voz poética agora flerta com o desterro, e na sua voz se ouve, ou seja, se ouve toda a constelação de poetas, pois do trabalho poético, o verso não só escreve, como deve, sobretudo, ler. Esta é uma das estórias da série de poesia de Brecht: “Poemas de Svendborg”.
 
A aventura continua com o socialismo do século XX, a revolução de outubro na Rússia comemora seus vinte anos neste poema de Brecht intitulado “O Grande Outubro”: que tem trechos ou versos como: “Desde então/O mundo tem sua esperança./O mineiro do País de Gales, o cule da Manchúria/E o operário da Pensilvânia que vive pior que um cão”, e mais estes: “Move-se a cada ano na Praça Vermelha/O infindável cortejo dos vencedores.” E a chave de prata que é também a coda, isto é, o início e o fim do poema: “Ó grande Outubro da classe trabalhadora!” Assim, fica patente a época do poema, sua marca é totalmente do século XX e carrega o terror e a esperança do século, aqui mais o termo esperança, pois é um poema de exaltação socialista, uma ideologia que viveu pela nova ordem mundial de justiça social, atualmente muito questionada pelo seu aspecto econômico e político, para além de sua doutrina social para os trabalhadores. Mas aqui temos Brecht vestindo as cores vermelhas do Outubro russo e soviético, Brecht viveu e pensou a esperança social que a Revolução de Outubro oferecia à época, e mesmo sendo fruto de um século particular, este que foi das duas grandes guerras e da guerra fria, não tenho por este poema a forma datada, pois de esperança vive não só o socialista, mas todo que vive e gosta da vida, deixo aqui a impressão de que a ideologia carrega uma tríade de aspectos políticos, econômicos e sociais, o que neste poema comemorativo é evidente, mas a palavra esperança carrega uma cepa universal, para além disso tudo, refletindo o sonho humano de justiça.
 
E no último poema desta série temos o intitulado “Aos que vão nascer”, que nestes trechos (versos) temos mais uma vez a tal esperança social, desta vez sem o proselitismo evidente do poema anterior que citei, mas com as mesmas feições de justiça e reforma do mundo, aqui está: “As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque/tem!/Mas como posso comer e beber, se/Tiro o que como ao que tem fome/E meu copo d`água falta ao que tem sede?/E no entanto eu como e bebo.” Pois temos em Brecht um poeta social e político, proselitista de uma ideologia muitas vezes, mas é bem humano em tudo o que escreve, na sua poesia e neste poema ele deixa sua impressão digital, seu teatro épico é a cabeça maior de seu trabalho, mas tudo é forrado no chão da poesia. “Aos que vão nascer” funciona também como uma carta náutica para os homens e mulheres do futuro, e nesta carta está sua esperança, o mundo do futuro, que muitos de nós sempre almejam como o lugar da fartura do que desejava e esperava, a esperança em Brecht aparece não só como posição política ou ideologia, neste poema para o futuro vemos muito mais de sua fome de justiça social, do que simplesmente uma comemoração socialista de um regime político como no poema do Outubro Vermelho. Antes de Brecht ser político ou ideólogo, Brecht quer um mundo melhor, e nisso a maioria de nós, homens e mulheres, se não somos loucos celerados, concordamos.
 
(DOS “POEMAS DE SVENDBORG”):
 
VISITA AOS POETAS BANIDOS
 
Quando penetrou em sonho
 
Na cabana dos poetas banidos, vizinha
 
À cabana dos mestres banidos (de onde
 
Ouviu briga e gargalhada), veio-lhe ao encontro
 
Ovídio, e disse-lhe a meia-voz:
 
“Melhor não sentares. Ainda não morreste. Quem sabe
 
Senão tu mesmo.” Porém, consolo nos olhos
 
Aproximou-se Po Chu-yi e disse sorridente: “O rigor
 
Fez por merecer todo aquele que uma só vez
 
deu nome à injustiça.”
 
E seu amigo Tu-fu disse suave: “Compreendes, o
 
desterro
 
Não é o lugar onde se desaprende o orgulho.” Mas,
 
Mais terreno
 
Interpôs-se o maltrapilho Villon, e perguntou: “Quantas
 
Portas tem a casa onde moras?” E tomou-o Dante pelo
 
braço
 
E levando-o para o lado murmurou: “Teus versos
 
Estão cheios de erros, amigo, considera
 
Quem está contra ti!” E Voltaire berrou de lá:
 
“Cuida dos tostões, senão te matam de fome!”
 
“E usa gracejos!” gritou Heine. “Não ajuda”,
 
Esbravejou Shakespeare, “quando veio Jacó
 
Também eu não pude mais escrever.” __ “Se houver
 
processo
 
Toma um patife como advogado!”, aconselhou
 
Eurípides
 
“Pois ele conhece os furos nas malhas da lei.” A
 
gargalhada
 
Ainda soava, quando do canto mais escuro
 
Veio um grito: “Escuta, sabem eles também
 
Os teus versos de cor? E eles que sabem
 
Escaparão à perseguição?” __ “Estes são
 
Os esquecidos.”, disse Dante em voz baixa
 
“Foram-lhes destruídos não só os corpos, mas também
 
as obras.”
 
A gargalhada cessou. Ninguém ousou olhar na direção.
 
O recém-chegado
 
Empalideceu.
 
O GRANDE OUTUBRO
 
No vigésimo aniversário da
 
Revolução de Outubro
 
Ó grande Outubro da classe trabalhadora!
 
Levantaram-se afinal os que estavam
 
Por tanto tempo curvados! Ó soldados, que afinal
 
Dirigiram os fuzis para a direção certa!
 
Os que lavravam o campo no início do ano
 
Não o fizeram para si mesmos. No verão
 
Curvaram-se mais ainda. Mesmo a colheita
 
Foi para os celeiros dos senhores. Mas o Outubro
 
Viu o pão já nas mãos certas!
 
Desde então
 
O mundo tem sua esperança.
 
O mineiro do País de Gales, o cule da Manchúria
 
E o operário da Pensilvânia que vive pior que um cão
 
E o alemão, meu irmão, que ainda
 
Inveja aquele: todos
 
Sabem, existe
 
Um Outubro.
 
O soldado da milícia espanhola
 
Vê por isso com menos preocupação
 
Os aviões dos fascistas
 
Que investem contra ele.
 
Mas em Moscou, a célebre capital
 
De todos os trabalhadores
 
Move-se a cada ano na Praça Vermelha
 
O infindável cortejo dos vencedores.
 
Levando os emblemas de suas fábricas
 
Imagens dos tratores, novelos de lãs das fábricas
 
de tecidos
 
também feixes de espigas das indústrias de cereais.
 
Acima deles os aviões de combate
 
Que escurecem o céu, e à frente deles
 
Os seus regimentos e esquadrões de tanques.
 
Em largas faixas
 
Carregam as suas senhas e
 
Os retratos dos seus grandes mestres. Os panos
 
São transparentes, de modo que
 
Tudo isso é visível a um só tempo.
 
Pequenas, em mastros delgados
 
Agitam-se as altas bandeiras. Nas ruas mais distantes
 
Quando o cortejo para
 
Animam-se danças e jogos. Alegres
 
Vão os grupos em desfile, um ao lado do outro, alegres
 
Mas para todos os opressores
 
Uma ameaça.
 
Ó grande Outubro da classe trabalhadora!
 
AOS QUE VÃO NASCER
 
I
 
É verdade, eu vivo em tempos negros.
 
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
 
Indica insensibilidade. Aquele que ri
 
Apenas não recebeu ainda
 
A terrível notícia.
 
Que tempos são esses, em que
 
Falar de árvores é quase um crime
 
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
 
Aquele que atravessa a rua tranquilo
 
Não está mais ao alcance de seus amigos
 
Necessitados?
 
Sim, ainda ganho meu sustento
 
Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
 
Me dá direito a comer a fartar.
 
Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou
 
Perdido.)
 
As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque
 
tem!
 
Mas como posso comer e beber, se
 
Tiro o que como ao que tem fome
 
E meu copo d`água falta ao que tem sede?
 
E no entanto eu como e bebo.
 
Eu bem gostaria de ser sábio.
 
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
 
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
 
Levar sem medo
 
E passar sem violência
 
Pagar o mal com o bem
 
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los
 
Isto é sábio.
 
Nada disso sei fazer:
 
É verdade, eu vivo em tempos negros.
 
II
 
À cidade cheguei em tempo de desordem
 
Quando reinava fome.
 
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
 
E me revoltei junto com eles.
 
Assim passou o tempo
 
Que sobre a terra me foi dado.
 
As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
 
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
 
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
 
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
 
Assim passou o tempo
 
Que sobre a terra me foi dado.
 
As forças eram mínimas. A meta
 
Estava bem distante.
 
Era bem visível, embora para mim
 
Quase inatingível.
 
Assim passou o tempo
 
Que nesta terra me foi dado.
 
III
 
Vocês, que emergirão do dilúvio
 
Em que afundamos
 
Pensem
 
Quando falarem de nossas fraquezas
 
Também nos tempos negros
 
De que escaparam.
 
Andávamos então, trocando de países como de sandálias
 
Através das lutas de classes, desesperados
 
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.
 
Entretanto sabemos:
 
Também o ódio à baixeza
 
Deforma as feições.
 
Também a ira pela injustiça
 
Torna a voz rouca. Ah, e nós
 
Que queríamos preparar o chão para o amor
 
Não pudemos nós mesmos ser amigos.
 
Mas vocês, quando chegar o momento
 
Do homem ser parceiro do homem
 
Pensem em nós
 
Com simpatia.
 
(DO LIVRO : BRECHT – POEMAS – 1913-1956) – BERTOLT BRECHT – EDITORA BRASILIENSE – SELEÇÃO E TRADUÇÃO DE PAULO CESAR SOUZA

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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