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Bertolt Brecht, o poeta (parte III)

Brecht demonstra em seu poema “Canção do escritor de peças” como ele se revela como dramaturgo, pois sua poesia, o chão em que seu teatro invariavelmente pisa, neste poema, ao contrário, temos seu teatro sendo equacionado pela poesia, ou melhor, pelo que este poema, em particular, afirma. Portanto, o que na dramaturgia de Brecht, temos nela, o serviço prestado da poesia, aqui neste poema o serviço do teatro entra como definição dos próprios versos deste poema. “Eu sou o escritor de peças”, diz Brecht na abertura do poema, e evolui seu compasso com exemplos do que pode ser definido como o que é e o que sustenta como tese em seu teatro, tal como versos assim: “Aquilo que vi. Nos mercados dos homens/Eu vi como o homem é tratado.” Ou ainda: “Como ficam nas ruas e esperam/Como preparam armadilhas uns para os outros”.
 
Pois Brecht tem no Homem sua tese de teatro, as relações humanas com densidade social e política, muitas vezes até panfletária, e o homem que ama, também pode ser, dada as circunstâncias, algo hobbesiano como o homem é o lobo do homem, como se diz em um dos versos que citei deste poema, no caso das emboscadas e armadilhas que uns preparam para outros, nesta nossa vida regida por leis, mas que é selvagem mesmo assim. Brecht dá tratamento ao homem miserável, no mercado e nas ruas o homem é o exemplo, a demonstração e, por fim, a tese. E neste poema, fica o sentido do teatro de Brecht, o escritor de peças, em que toda sua sustentação vem da poesia.
 
Já no poema “O pão do povo” Brecht volta com sua demanda social, de sua formação socialista, mas aqui sem panfleto político explícito, mas como tese abundante de seu cabedal de proposições sociais, o que em Brecht une sua poesia e seu teatro. Versos como: “Alimentado do pão da justiça/Pode ser feito o trabalho/De que resulta a abundância.” Neste poema do pão, o trabalho deve se vincular diretamente à justiça. E de que se trata? Nada mais do que a justiça social, força propulsora de grande parte do ofício de arte de Bertolt Brecht. A arte que fala do povo, fala de seus desejos de justiça, como no verso exclamativo: “Fora com a justiça ruim!” E que culmina com sua tese aqui de socialismo implícito, nos versos: “Deve o pão da justiça/Ser preparado pelo povo.” Por fim, é o povo a justiça para o povo, quem faz toda a justiça é quem quer a justiça, e a justiça dita ruim é a que não deixa o pão ao povo, e quando o pão é do povo e não há mais fome, a justiça cai nas mãos dos que fazem todo o trabalho, a divisão social dá lugar à abundância, uma das promessas de vitória do teatro e da poesia de Brecht, com viés político umas vezes, mas sobretudo como tese social e ideia de sociedade, que tem na palavra justiça seu eixo de demanda e lutas.
 
CANÇÃO DO ESCRITOR DE PEÇAS
 
Eu sou o escritor de peças. Eu mostro
 
Aquilo que vi. Nos mercados dos homens
 
Eu vi como o homem é tratado. Isto
 
Eu mostro, eu, o escritor de peças.
 
 
 
Como entram uns nas casas dos outros, com planos
 
Ou com cassetetes ou com dinheiro
 
Como ficam nas ruas e esperam
 
Como preparam armadilhas uns para os outros
 
Cheios de esperança
 
Como marcam encontros
 
Como enforcam uns aos outros
 
Como se amam
 
Como defendem seus despojos
 
Como comem
 
Isto eu mostro.
 
 
 
As palavras que gritam uns aos outros, eu as registro.
 
O que a mãe diz ao filho
 
O que o empresário ordena ao empregado
 
O que a mulher responde ao marido
 
Todas as palavras corteses, as dominadoras
 
As suplicantes, as equívocas
 
As mentirosas, as inscientes
 
As belas, as ferinas
 
Todas eu registro.
 
 
 
Vejo tempestades de neve que se anunciam
 
Vejo terremotos que se aproximam
 
Vejo montanhas no meio do caminho
 
E vejo rios transbordando.
 
Mas as tempestades têm dinheiro na carteira
 
As montanhas desceram de automóveis
 
E os rios revoltos controlam policiais.
 
Isto eu revelo.
 
 
 
Para poder mostrar o que vejo
 
Leio as representações de outros povos e outras épocas.
 
Algumas peças adaptei, examinando
 
Com precisão e respectiva técnica, absorvendo
 
O que me convinha.
 
Estudei as representações das grandes figuras feudais
 
Pelos ingleses, ricos indivíduos
 
Aos quais o mundo servia para desenvolver a grandeza.
 
Estudei os espanhóis moralizadores
 
Os indianos, mestres das sensações belas
 
E os chineses, que retratam as famílias
 
E os destinos multicores encontrados nas cidades.
 
 
 
E tão rapidamente mudou em meu tempo
 
A aparência das casas e das cidades, que partir por dois
 
               anos
 
E retornar foi como uma viagem a outra cidade
 
E as pessoas em grande número mudaram a aparência
 
Em poucos anos. Eu vi
 
Trabalhadores adentrarem os portões da fábrica, e os
 
                portões eram altos
 
Mas ao saírem tinham de se curvar.
 
Então disse a mim mesmo:
 
Tudo se transforma e é próprio apenas de seu tempo.
 
 
 
Portanto dei a cada cenário seu emblema
 
E em cada fábrica e cada edifício gravei em fogo o seu ano
 
Como os pastores gravam números no gado, para que seja
 
                reconhecido.
 
E também às frases que lá eram faladas
 
Dei-lhes seu emblema, para que se tornassem como as
 
                   sentenças
 
Dos homens efêmeros, que são registradas
 
Para não serem esquecidas.
 
 
 
O que a mulher em avental de trabalho disse
 
Nesses anos, debruçada sobre os panfletos
 
E como os homens de bolsa falaram com seus empregados
 
Ontem, chapéus atrás da cabeça
 
A isto marquei com o sinal de impermanência
 
De seu ano.
 
 
 
Tudo entreguei ao assombro
 
Mesmo o mais familiar.
 
Que uma mãe deu peito ao filho
 
Isto relatei como algo em que ninguém acreditará.
 
Que o porteiro bateu a porta ao homem morrendo de frio
 
Como algo que ninguém jamais viu.
 
O PÃO DO POVO
 
A justiça é o pão do povo.
 
Às vezes bastante, às vezes pouca.
 
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
 
Quando o pão é pouco, há fome.
 
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
 
 
 
Fora com a justiça ruim!
 
Cozida sem amor, amassada sem saber!
 
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
 
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
 
Quando o pão é bom e bastante
 
O resto da refeição pode ser perdoado.
 
Não pode haver logo tudo em abundância.
 
Alimentado do pão da justiça
 
Pode ser feito o trabalho
 
De que resulta a abundância.
 
 
 
Como é necessário o pão diário
 
É necessária a justiça diária.
 
Sim, mesmo várias vezes ao dia.
 
 
 
De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
 
No trabalho que é prazer.
 
Nos tempos duros e nos felizes.
 
O povo necessita do pão diário
 
Da justiça, bastante e saudável.
 
 
 
Sendo o pão da justiça tão importante
 
Quem, amigos, deve prepará-lo?
 
 
 
Quem prepara o outro pão?
 
 
 
Assim como o outro pão
 
Deve o pão da justiça
 
Ser preparado pelo povo.
 
Bastante, saudável, diário.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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