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Stéphane Mallarmé, a poesia nova de vanguarda (parte II)

Mallarmé, quando da sua ruptura com a tradição poética, consumada de vez com O Lance de Dados (Um Coup de Dés), ele é representante, como poeta e feitor de poema-poesia, ou certo o responsável por abrir um caminho novo: ele aponta para o futuro. O que é que ele fez? Veja. No cume do processo de evolução histórica da poesia, Mallarmé faz com sua obra tanto uma ruptura como uma denúncia da falácia e das limitações da linguagem discursiva, o Lance de Dados só é o clímax e ponto de chegada de um longo processo individual de um poeta que, ao mesmo tempo, resulta num efeito de processo histórico inovador, que é, nada mais, que um novo campo de relações, sentidos, visual, e possibilidades do uso da linguagem, na convergência, mais ao fundo, da experiência própria da música e da pintura, e que, na sua radicalidade, terá intersecção com os modernos meios de comunicação, do chamado “mosaico de jornal” até o fotograma cinematográfico, ao cabo, por fim, no extremo, na técnica publicitária, o visual que vai ao fim suplantar o prolixo discursivo da poesia silogística tradicional.
 
Nas palavras de Augusto de Campos: “E assim como a aparente destrutividade da abolição do tonalismo em música (Schoenberg-Webern) e a da figura em artes plásticas (Cubismo-Malievitch-Mondrian) levam a um novo construtivismo, a contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que encerra um capítulo, abre e entreabre toda uma era para a poesia, acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do próprio livro como suporte instrumental do poema.”  O caráter construtivo da poesia de Mallarmé, por sua vez, passa ao largo de conotações negativas da “arte pela arte” ou ainda do clichê da “poesia pura”. O slogan fácil não funciona neste caso, e nem é para tal. Pois, para o poeta, sim, para Mallarmé, ele se define como um poeta em greve, e aqui tomo mais uma vez licença a Augusto de Campos, que nos dá a nota: “É significativo que Mallarmé, para definir o seu marginalismo de poeta, tenha ido buscar não uma metáfora aristocrática como a da torre de marfim, mas uma expressão extraída do vocabulário econômico-social, a palavra greve, emblemática da luta de classes.” E aqui diz Mallarmé: “A atitude do poeta em uma época como esta, onde ele está em greve perante a sociedade, é pôr de lado todos os meios viciados que se possam oferecer a ele. Tudo o que se lhe pode propor é inferior à sua concepção e ao seu trabalho secreto.”
 
E na questão nevrálgica para muitos escritores ao caso de não prostituir o próprio trabalho literário, isto passa ao largo da crítica comum de cunho sociologizante, à exceção honrosa de Karl Marx, pois na recusa da ordem simplesmente contratual do trabalho literário, isto contém um termo ético de liberdade criativa e de uma noção visionária de quando o escritor está plenamente consciente de que participa de um processo histórico no médio e longo prazo, não podendo, portanto, ser só um ente comercial rendido ao sucesso, pois seu intento é a História e não o comércio por si  mesmo, o que nos leva ao pensamento marxista, quando Karl Marx afirma, por exemplo: “O escritor deve naturalmente ganhar dinheiro para viver, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro”. E acrescenta: “O escritor não considera seus trabalhos, de nenhum modo, como um meio. São fins em si. São tão pouco um meio para ele e para os outros que ele sacrifica a sua própria existência à existência de sua obra, quando necessário, e que, como o pregador religioso, ele se curva ao princípio de obedecer mais a Deus que aos homens, aos homens entre os quais ele próprio está confinado com suas necessidades e seus desejos de homem.” E citando novamente Augusto de Campos: “Nesse sentido, a obra de Mallarmé é exemplar. Na difícil querela sobre a possibilidade de engajamento da poesia, em que Sartre, toma partido recusando a hipótese da participação poética, uma coisa é certa: nenhuma tentativa de engajamento em poesia pode ser válida tomando a linguagem como meio ou instrumento passivo, pois o poeta, antes de mais nada, está engajado com a linguagem, ou para melhor dizê-lo, na perfeita e intraduzível fórmula de Jean Tardieu: le langage l`engage.”
 
No poema “Outro Leque” (De Mademoiselle Mallarmé) temos trechos como: “Ó sonhadora, por quem plano/Num puro gozo sem timão,/Sabe, por um sutil engano,/Guardar minha asa em tua mão.” E ainda: “Vertigem! Eis que se detém/O espaço como um grande beijo”. E mais: “Sente esse paraíso louco/Como um sorriso que soçobra”. Ou seja, o poema de Mademoiselle Mallarmé não é um poema de amor dentro dos padrões românticos com todos os clichês que vossas imaginações possam conceber, está além do clichê romântico, é uma constatação de um fenômeno mais do que uma declaração de amor, e o poema amorosamente acaricia mademoiselle com seu domínio, ou ainda, a mademoiselle é descrita imageticamente, a sonhadora que, para Mallarmé, guarda a sua asa “em tua mão”, e no jogo espacial dos corpos, aparece o beijo, e que lhe dá vertigem, exclamativamente, sem mais. Abre-se um chão no beijo, a vertigem é o espaço aberto, o infinito além de si no corpo e beijo de mademoiselle, de que tem na interpretação do poeta, pois, a sua percepção fundada de que ela “sente esse paraíso louco”, e é mais uma vez o mundo que se abre, o chão e sua rachadura, “como um sorriso que soçobra.” O amor é vertigem, soçobra, e é paraíso, o leque de mademoiselle faz vento e abre o espaço, Mallarmé treme.
 
No segundo poema desta série, é um sem título, após as árias, e que tem a simbologia do cisne como ponto condutor, e que tem versos como: “O virgem, o vivaz e o viridente agora/Vai-nos dilacerar de um golpe de asa leve/Duro lago de olvido a solver sob a neve”. E ainda estas trágicas notas: “Lembrando que é ele mesmo esse cisne de outrora/Magnífico mas que sem esperança bebe”. E que culmina: “Fantasma que no azul designa o puro brilho,/Ele se imobiliza à cinza do desprezo/De que se veste o Cisne em seu sinistro exílio.” O cisne, que tem direta associação com a morte em seu canto, no chamado “canto do cisne”, tem neste poema o processo de um cisne (pessoa) que foi da glória ao profundo da decadência, pois da ascensão do voo à queda sem asas, a vida nos dá os dois caminhos simultaneamente, e a escolha é trágica ou feliz, dando ao fado apenas o gosto de sangue e fel, ou de doçura e amores. O olvido (esquecimento) no bater de asas ao vento do cisne, segue à segunda estrofe como um maldito ao qual “outrora Magnífico”, agora, sem esperança, bebe. E Mallarmé confirma com sua pena que tal história é o caminho de um exílio, sinistro exílio, no qual há um fantasma, do puro brilho, o Cisne se veste da cinza do desprezo, não há esperança, o dia em que outrora não é mais, e a este que se afunda resta sua asa pretérita, longe de si.  
 
E para fechar, temos o poema “A Tumba de Edgar Poe”, que tem versos como: “Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,/O Poeta suscita com o gládio erguido/Seu século espantado por não ter sabido/Que nessa estranha voz a morte se insurgia!”. E estes: “Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo –/A ideia só – não esculpir baixo-relevo/Que ao túmulo de Poe luminescente indique, (…) Calmo bloco caído de um desastre obscuro,/Que este granito ao menos seja eterno dique/Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.” Edgar Allan Poe, o escritor do livro de contos “Histórias Extraordinárias” tem aqui uma espécie de obituário em forma de poema, e ele surge em seu esplendor e cheiro de morte, Edgar Poe tem em si o guia eterno, já morto, em paz com seu túmulo, baixo-relevo, inscrição granítica de quem foi, e com as palavras de Mallarmé, signo, marca, e que ecoa de forma esparsa como blasfêmia aos tempos do futuro.
 
 
 
OUTRO LEQUE
 
De Mademoiselle Mallarmé
 
 
 
Ó sonhadora, por quem plano
 
Num puro gozo sem timão,
 
Sabe, por um sutil engano,
 
Guardar minha asa em tua mão.
 
 
 
Uma aragem de entardecer
 
Te vem a cada movimento
 
Preso que faz retroceder
 
O horizonte suavemente.
 
 
 
Vertigem! Eis que se detém
 
O espaço como um grande beijo
 
Que por nascer para ninguém
 
Não soma ou some o seu desejo.
 
 
 
Sente esse paraíso louco
 
Como um sorriso que soçobra
 
Do fim da boca escoar um pouco
 
No fundo da unânime dobra!
 
 
 
O cetro das areias rosas
 
Quietas nas tardes de ouro é este
 
Branco voo fechado que pousas
 
Contra o fogo de um bracelete.
 
 
 
SEM TÍTULO
 
 
 
O virgem, o vivaz e o viridente agora
 
Vai-nos dilacerar de um golpe de asa leve
 
Duro lago de olvido a solver sob a neve
 
O transparente azul que nenhum voo aflora!
 
 
 
Lembrando que é ele mesmo esse cisne de outrora
 
Magnífico mas que sem esperança bebe
 
Por não ter celebrado a região que o recebe
 
Quando o estéril inverno acende a fria flora,
 
 
 
Todo o colo estremece sob a alva agonia
 
Pelo espaço infligida ao pássaro que o adia,
 
Mas não o horror do solo onde as plumas têm peso.
 
 
 
Fantasma que no azul designa o puro brilho,
 
Ele se imobiliza à cinza do desprezo
 
De que se veste o Cisne em seu sinistro exílio.
 
 
 
A TUMBA DE EDGAR POE
 
 
 
Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,
 
O Poeta suscita com o gládio erguido
 
Seu século espantado por não ter sabido
 
Que nessa estranha voz a morte se insurgia!
 
 
 
Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia
 
Um sentido mais puro às palavras da tribo,
 
Proclamaram bem alto o sortilégio atribu –
 
Ído à onda sem honra de uma negra orgia.
 
 
 
Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo –
 
A ideia só – não esculpir baixo-relevo
 
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,
 
 
 
Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
 
Que este granito ao menos seja eterno dique
 
Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.
 
 
 
(Poemas de Stéphane Mallarmé)
 
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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