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As musas do Chico

Porteiro do Edifício Miramar, Chico anda arrastando as asas pra uma Carolina de olhos tristes, assistente de cozinha do 502. Quando a patroa sai pro trabalho, Carol se emoldura na janela dos fundos, acompanhando do alto o ir-e-vir do Chico nas tarefas do condomínio. Ao vê-la Chico entoa, romântico e desafinado, “Lá fora, amor, uma rosa nasceu… uma estrela caiu…”
 
Apesar do nome pomposo,  o prédio é modesto e do mar não recebe nem o cheiro, que pra chegar na praia tem que pegar dois ônibus. Quando a patroa retorna ao entardecer, trazendo  as crianças da escola, encontra Carolina sonhando na janela – o feijão não foi refogado, os bifes não foram descongelados e a roupa empilhada no tanque não foi lavada. Cadê a janta, Carol? Ih, dona, nem vi o tempo passar na janela…
 
Em sendo 40 apartamentos,  ali não poderia faltar uma Rosa, a do 603. Quando ela passa se requebrando no caminho da padaria, Chico entoa, ainda que um tanto desafinado: “A Rosa me jurou amor eterno, Me gusta, Me gusta…”  E gosta, de fato. Mas no  801 tem outra janela, onde se debruça Januária, e enquanto descarrega os botijões de gás, Chico falseia, mesmo fora do tom, “Toda gente homenageia, Januária na janela…”  Janu finge que não liga, mas não sai da janela.
 
Para o volúvel Chico, não faltam assistentes com nomes  já homenageados no vasto repertório do Buarque, de quem é fã registrado em cartório. Tem até os mesmos olhos azuis, herança de um bisavô italiano.  No 201 mora um senhor idoso, achacado de artrites e artroses, e sua assistente Silvia vai  na  farmácia pelos menos duas vezes ao dia. Passando tão insistentemente na portaria,  Chico lhe sussurra, desafinado mas apaixonado, “Morre de amor quem é capaz…”
 
Silvia lhe cai nos braços, sem saber que era subtraída… pela Lola, do 704. Chico fica de tocaia quando ela desce pra tirar o lixo – “Gosto de você chegar assim, arrancando páginas dentro de mim…” Lola sorri, toda Lolita, mesmo sem entender de que páginas ele está falando. Enquanto isso, Cecília, babá do 303, também passa pela portaria para  levar e pegar as crianças na creche. E Chico não desperdiça a chance de segui-la, “Te olho, te guardo, te sigo, te vejo…”
 
Cantando todas, nenhuma resiste aos doces olhos azuis do Chico e seu farto repertório poético. Como a Beatriz, do 902, “Será que ela é louça, será que ela é éter…” E a Rita, do 1001,“A Rita levou meu sorriso no sorriso dela”. Rita se espanta, mas não economiza sorrisos, “Eu?!”  Lili, do 103, usa uniforme azul – mesmo morando na periferia, a patroa ex-socialite mantém os hábitos dos bons tempos – e Chico a canta  como seu anjo azul. A  Lili, não a patroa.
 
As musas cantadas pelo porteiro acabam descobrindo a traição coletiva, e se unem na vingança – além de não mais ouvi-lo cantar, param de lhe levar pratinhos e docinhos surrupiados da cozinha, às escondidas das respectivas patroas. A Januária levava até umas latinhas de cerveja, que tomavam juntos atrás dos botijões de gás. Escondidos da visão invasiva das janelas.
 
Sozinho e ainda mais desafinado, Chico joga a culpa no Buarque, rasgando a carteirinha de fã incondicional. Afinal, se o Chico tinha tantos amores, por que não ele? Mas é entre espinhos que brotam as rosas, dizem os poetas, e chegam novos moradores no 304, trazendo na bagagem uma  nova assistente -Iolanda!  Chico não desperdiça sua nova chance, mas aprende a lição e lhe dedica amor eterno. “Eternamente, te amo”.

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