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Em ‘Retrato do Artista Quando Jovem Cão’, Dylan Thomas mergulha na sua veia autobiográfica

Dylan Thomas (1914-1953) teve uma vida curta e intensa, trabalhando como repórter, profissão que lhe possibilitou viajar pela Europa e pelos Estados Unidos, sendo que, na Segunda Guerra, passou na BBC de Londres, e sua produção, como citei em outra resenha, tem dois momentos chaves: a poesia, com o Collected poems (Poemas reunidos) e o volume de contos que farei aqui uma pequena digressão, Retrato do Artista Quando Jovem Cão, que é uma espécie de versão própria do autor para Dublinenses de James Joyce.
 
Ainda em sua obra, em Dylan Thomas podemos ainda citar que ele fez romances, roteiros para cinema, e também documentários. Ele também foi referência no comportamento como um dos antecessores principais do que viria a ser chamada de a geração beat. Participou de movimentos, o que o levou a um tipo de sucesso que lhe permitiu ganhar prêmios literários, com inúmeras conferências em universidades, tornando-se uma celebridade, via pela qual ele seduziu seu público como escritor e homem de boêmia.
 
Retrato do Artista Quando Jovem Cão, publicado pela primeira vez em 1940, é sua primeira obra editada no Brasil, e é considerada um dos maiores exemplares da prosa poética de Dylan Thomas, com seu caráter moderno de narrativa ligada ao cotidiano autobiográfico do autor, que é uma literatura moderna, com a fonte de Dublinenses se tornado, contudo, outro exemplar original, mesmo com esta referência joycenana até no título do volume de contos.
 
Autobiografia
 
A veia evidentemente autobiográfica do autor nestes contos se dá pelo fato de ser uma sucessão de acontecimentos que seguem a mesma cronologia feita por Joyce em Dublinenses, isto é, infância, adolescência e início da vida adulta. Os contos, que em Joyce podemos encaixar na narrativa realista e naturalista, por vezes, aqui com Dylan Thomas, contudo, temos algo como um apanhado que flerta com o surrealismo e o humor.
 
Escritor de veia sonhadora, Dylan Thomas é um escritor atento à sonoridade das palavras e de um estilo que ganhou um caráter totalmente pessoal, pois a literatura tem dessas noções que colocam o escritor num mundo referencial, ou seja, aqui os contos de Thomas partem da matriz joyceana, para ganhar o que o escritor na verdade busca: sua voz própria. E nestes contos Dylan Thomas toma Joyce no esquema (a sucessão das idades e talvez o tom autobiográfico) para depois ter em sua originalidade na fronteira surrealista e de humor que lhe dão o toque Dylan Thomas de escrita e estilo, que já não é nada o Joyce de Dublinenses.
 
Pois Dylan Thomas é daqueles fantásticos e surpreendentes autores que têm o raro dom de encantar e conquistar o leitor, deixando-lhe a ótima impressão de estar diante de uma obra fundamental para a literatura mundial, com esta intersecção irlandesa e inglesa que só uma biografia como a de Dylan Thomas produziu, e que na verdade é uma cisão entre Gales e a Inglaterra, o veio irlandês entra aqui como a face inspiradora das letras joyceanas. Sua obra é indispensável, e este volume de contos não está fora deste caudal original, que toma para si Joyce, e desemboca no si próprio autobiográfico chamado Dylan Thomas.
 
Conto e poesia
 
Pois um dos sentidos depreendidos é o de que a prosa de Dylan Thomas é um prolongamento de sua poesia, ou ainda, uma das vias que este caminho literário tomou para si, pois entre o conto e a poesia, não há necessariamente uma descontinuidade, os temas são parelhos numa mesma via ou caminho, pois quando lemos Dylan Thomas, temos o termo simbolista e moderno em sua poesia, e a matriz joyceana do cotidiano irlandês que logo se arvora em um caráter surrealista de pena própria, a escrita que ganha voz única, e na poesia e conto de Dylan Thomas falamos de uma continuidade entre uma matriz e outra, o escritor tem uma unidade firme em sua obra, tanto que se destaca em ambas.
 
A prosa de Dylan Thomas, portanto, é uma visitante de sua poesia, e é uma visita ilustríssima, com a mesma propriedade de sua poesia, não há queda de qualidade entre ambas, pois o escritor, para além até da prosa e poesia, mantém seu domínio e suas conquistas também como grande roteirista que foi, isto é, Dylan Thomas tem amplo território, e não se fez de pequeno, pois queria ser até “mais do que Keats foi”. Sua prosa, então, convive com sua poesia, e sua poesia lhe dá as entranhas do que serão os seus contos, isto é, quando se lhe conhece a tessitura poética, os contos são mesmo um prolongamento do que havia feito em versos, a mesma veia artística lhe possui do início ao fim em poesia, e que detona um caudal autobiográfico como prosa.
 
As short stories deste Retrato do Artista Quando Jovem Cão (cujo título pega velado tributo à influência que sobre o autor exerceu a revolucionária prosa de Joyce, embora Thomas evasivamente o negue), revelam um escritor em estado de contínua insubordinação contra cânones a princípio realistas (daí a possível ruptura com a matriz, por suposta, de Joyce) e contra os limites racionais que lhe impunham também os cânones sintáticos e vocabulares da língua inglesa, como se vê, por exemplo, em suas duas outras coletâneas de contos, ambas de publicação póstuma, Quite early one morning (Certa manhã, bem cedo, 1954) e A prospect of the sea (Uma visita para o mar, 1955), e em seu romance inacabado Adventures in the skin trade (Aventuras no comércio de peles, 1955).
 
O contista galês
 
Os contos de Dylan Thomas, por fim, não são o Dublinenses de Joyce, e o título do Retrato não é o romance de Joyce, para ficar claro: Dylan Thomas parte de Joyce na forma dada, mas nem tanto, pois ele é escritor próprio, sendo a matriz joyceana um tipo de referência irlandesa para a sua escrita também irlandesa, neste sentido, como fonte, mas galesa na biografia, em estado de guerra contra os limites da língua inglesa, com a cisão biográfica do vivente Dylan Thomas, entre a Irlanda e a Inglaterra literariamente, e entre o País de Gales e a Inglaterra de fato na vida.
 
Nos dez contos que constituem esse tumultuoso e lírico retrato da infância e parte da adolescência do autor, se percebe a matriz irlandesa, mais do que a simplesmente joyceana, e que, contudo, se trata do cotidiano galês, o que se vê, por exemplo, na presença de sua terra natal, Swansea, e na verdade todo o País de Gales, com seus pormenores e personagens característicos. Ou seja: a escrita de Dylan Thomas parte de um imbricamento irlandês joyceano, uma vida profissional tipicamente inglesa, e uma história de vida nascida nas entranhas do País de Gales.
 
Dylan Thomas, se pudermos escolher dentre as três esferas culturais, diante de seus contos, ele é irremediavelmente galês, e de Swansea, e de uma vida nada inserida na língua inglesa, pois a Inglaterra aparece para Dylan Thomas como meio de vida e de futuro, mas seus pés não saem da origem galesa, daí sua originalidade, que lhe colocou à parte de sua própria geração, mas que não lhe condenou ao ostracismo, muito pelo contrário. Em Dylan Thomas: com Joyce se tem a Irlanda, ainda se tem a competição metafísica com Keats, uma juventude à moda Rimbaud, um meio de vida inglês, e uma vida literária com olhos voltados ao País de Gales. Este resumo coloca os dilemas e influências culturais que cercaram e fizeram a produção escrita de Dylan Thomas, mas ele é galês, sem dúvida.
 
O País de Gales aparece então neste volume de contos Retrato do Artista Quando Jovem Cão como a verdadeira matriz de Dylan Thomas, isto é, a sua vida de fato. Swansea, portanto, e nem tanto a Irlanda literária de Joyce ou a Inglaterra profissional de seus roteiros, é o que de mais forte se tem em sua literatura, sobretudo em seus contos. O mar e os bosques aos quais Dylan Thomas se refere, e que também estão em seus últimos poemas, configuram uma espécie de regresso cósmico às suas origens galesas.
 
Memórias de um Jovem Cão
 
O “jovem cão” é a memória de Thomas que vira contos. Pois nos contos que envolvem este volume, tais como “Os pêssegos”, “Uma visita ao avô”, “A luta” ou ainda “Um sábado quente”, captam a veia própria de uma infância específica num lugar específico, que não é a grande Londres, é a pacata Swansea. E neste caminho dos contos se traça, desde a infância, um matiz de zombaria irônica de si mesmo pela sina solitária do jovem poeta rimbaudiano que quer ser melhor ainda do que foi Keats, e que não morre tão jovem, ou não abandona a poesia, como os dois citados, mas que terá na bebida, futuramente, sua fundação beat e sua morte aos 39 anos. O destino do poeta Dylan Thomas se transforma, em seus contos, em um regresso memorial à sua fonte galesa, a sua Swansea da infância e adolescência, e o que resulta nisso é um apanhado do cotidiano galês como expressão de arte, contos de poeta, pois.
 
Dylan Thomas jamais deixou para trás a consciência de seu destino retrospectivo, a alma de jovem poeta que não se esquece das praias, dos vales e das campinas galesas. Por outro lado, na sua técnica, seus contos de poeta, contudo, em se tratando como no caso de sua poesia, portanto, sua prosa aparece marcada por um caráter matizado e marcado pela experimentação, por acentuados traços surrealistas e pelo elemento supremo de surpresa que só os grandes escritores como Dylan Thomas são capazes de produzir, pois não há dívida com a prosa joyceana em seu caso, a estrutura infância-adolescência é um ponto de partida, mas seu ponto de chegada é original e de fonte galesa, não irlandesa ou inglesa, mesmo que sua literatura tenha pés também nestas terras.
 
Desde o primeiro até o último conto tem-se a observação e a percepção de que há uma evolução de seu estilo, de sua arte de narrar esses episódios que lhe marcaram a infância em Swansea, sobretudo o que encerra esta coletânea do jovem cão, o “Um sábado quente”, onde a memória ficcional de Dylan Thomas alcança seu estágio mais amadurecido, onde intriga, ação e personagens se delineiam com extraordinária propriedade, com pleno domínio de recursos, e algo que também está nos contos joyceanos, a concisão literária que não dá toque fora do lugar em matéria de ritmo.
 
Alguns incautos poderão dizer, por exemplo, que por se tratar de contos de poeta, estes escritos de Dylan Thomas são relatos que sofrem interferência excessiva de sua poesia ou veia poética, pois poderia haver neste caso o grande poeta que foi Dylan Thomas confrontando o tempo todo em seus contos o fato de ele ser originalmente poeta.
 
Ora, não há descontinuidade entre poesia e prosa em Dylan Thomas, mas isto não quer dizer que ele, como contista poeta, tenha feito de seus contos algo acessório em relação à sua poesia, não. A continuidade e prolongamento entre poesia e prosa em Dylan Thomas não é de uma noção acessória, é uma transposição entre técnicas diferentes que podem, no entanto, ter nuances semelhantes de estilo, mas Dylan Thomas é contista, e não só poeta. Poesia e prosa contínuas não são siamesas em técnica, são modos de expressão com propriedades próprias e que não fazem concessões entre si.
 
Pois tal continuidade entre poesia e prosa em Dylan Thomas aparece, pois sim, como uma virtude literária, antes do que uma suposta limitação, então não se trata de uma falha do escritor, mas de sua virtude ficcional em que o resultado é um fluxo narrativo que nos fascina e surpreende a cada instante, com imagens e situações às vezes estranhas ao linearismo discursivo da prosa tradicional. É mantido nos contos de Dylan Thomas, portanto, toda uma gama de habilidades a matizes que afirmam a propriedade do poeta sobre estes contos, o que resulta propriamente numa narrativa de magia poética que não é só poesia, é conto mesmo, com o conflito habitual de Dylan Thomas com os cânones linguísticos ingleses, e com toda a sua pertinente agilidade para diálogos precisos, pontuais e não gratuitos, num ritmo amiúde vertiginoso daquele que foi, por fim, “o maior poeta galês dentre todos os poetas maiores da língua inglesa”.
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
 Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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