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Os poemas da grande fase de maturidade envolve agora o livro A Torre de 1928, parte dele aqui exposta nos três poemas abaixo, “Velejando para Bizâncio”, “Duas canções de uma peça” e “Entre crianças de escola”, livro que também contém o poema “Leda e o cisne”. A linguagem do mito, em todo o seu espaço de criação poética, tem na dupla face Cristo e Dioniso o interior de uma encenação em que o ato sacrificial no poema “Duas canções de uma peça” se consuma com a cena da morte de Dioniso com as simbologias do Gólgota de Cristo, e que tem ainda uma linguagem metafórica que coloca de maneira emparelhada o episódio de Paixão com o Natal, num ciclo em que há a recorrência dos fatos históricos “e nova Troia anunciará sua vinda”, num fluxo em que o mito se torna a emoção humana, quando da imaginação deste mesmo ser humano, diante do desamparo universal, cria-se todos os mitos. Os versos que começam com Dioniso: “Vi uma virgem fixar sua visão/No santo Dioniso trucidado/E arrebatar-lhe o coração do lado” encerram com Cristo: “Com a morte de Cristo o odor da chaga”. Aqui a Virgem Mãe, que carregou Jesus, também se vê diante do sacrifício dionisíaco.
 
Em meio ao torvelinho dos giros vorticais, o poeta se vê diante da velhice, comparável a um espantalho (“trapos sobre um bastão”) E segue nestes versos o conflito entre sensualidade e intelecto: “O peixe, o pelo e a pluma, no verão/Só louvam o que nasce e vai passar./Na música sensual veem com desdouro/As obras do intelecto imorredouro.” Isto é, a natureza é sensual, e o instinto conhece a natureza, pois é natureza, sendo o intelecto um refinamento da evolução que já de dissocia muito do ser natural. O entendimento produzido pelo intelecto não possui a essência que busca, pois na natureza dada está o sensual, e então o poeta é tentado a fugir das limitações do tempo e do espaço e a buscar o uno e o imutável.
 
É o que se propõe fazer em “Velejando para Bizâncio”, onde seu ideal de perfeição se transfigura nas glórias da arte bizantina, com seus “áureos mosaicos” e suas aves de ouro em “galho dourado”. Seria algo semelhante à beatitude do 13º Cone (do livro místico Uma Visão), traduzida, porém, em termos estéticos. O paraíso abstrato do “artifício da eternidade”, vislumbrado em “Velejando para Bizâncio”, ainda é um ideal, e quando há esta associação do mundo paradisíaco com a arquitetura de Bizâncio, podemos dizer que há uma homenagem da arte ao que se tem uma ideia do que seria o paraíso. Em versos como: “Oh vós, sábios de Deus no fogo santo,/Como em áureos mosaicos de um mural,/Ensinai-me a cantar”, aqui há a divindade nos mosaicos que trazem para o poeta a canção. E a natureza enfim é o paraíso, pois: “Fora da natureza nunca mais/Forma da natureza irei tomar”. É a fusão de Yeats com a natureza.
 
Yeats logo percebeu, entretanto, que seu ímpeto no poema de Bizâncio teria que ser equilibrado pelo fato de tal poema ter novamente dissociado o sonho da realidade, cisão incisiva e constante em toda a obra de Yeats. É essa questão que ele analisa em “Entre crianças de escola”. Nessa longa reflexão, após fazer a associação realista das devastações do tempo na pessoa da antiga amada, Maud Gonne (de cuja imagem juvenil se recorda ao olhar os rostos das crianças de uma escola que visitava), após constatar que ele próprio envelhecera e “Platão julgava o mundo um sorvedouro,/Paradigma espectral da fluidez;/Já Aristóteles descia o couro/No firme posterior de um rei dos reis;/Enfim Pitágoras das coxas de ouro/Nas cordas dedilhou por sua vez/O que estrela cantou à surda Musa:/Farrapos num bastão contra ave intrusa.” Yeats afirma aqui que o tempo não poupa sequer os grandes filósofos, os quais também buscam a essência, então parecidos, como diz o poeta, com farrapos, a aventura da Filosofia não dá conta do que o poema tenta versificar, empresa (inútil?) que dá em arte e pensamento.
 
O autor conclui que os nossos sonhos – sejam eles imagens de carne, como as criancinhas para as mães, sejam imagens de mármore ou bronze, como as estátuas dos santos para as freiras – são abstrações que estimulam as nossas empresas e conquistas, mas que morrem quando são dissociadas do fluxo vital que é nossa realidade. Assim sendo, a essência não se separa jamais dos fenômenos: a natureza, ao fim, é o paradigma do qual Yeats subsume todas as artes e pensamentos possíveis do engenho humano, pois este saiu da natureza com o intelecto, e tem, por outro lado, em alguns, esta nostalgia do paraíso, de uma ilha solar nos confins, que nunca nenhum homem ou mulher teve a impressão senão num delírio.
 
 
 
VELEJANDO PARA BIZÂNCIO
 
1
 
Este não é país para ancião.
 
Jovens aos beijos, aves a cantar
 
(Mortal estirpe), saltos de salmão,
 
Cavalas que povoam todo o mar,
 
O peixe, o pelo e a pluma, no verão
 
Só louvam o que nasce e vai passar.
 
Na música sensual veem com desdouro
 
As obras do intelecto imorredouro.
 
2
 
Um velho é apenas coisa irrelevante,
 
Trapos sobre um bastão ele é na essência,
 
A menos que a alma aplauda e alegre cante
 
Acima dos farrapos da existência;
 
Nem se aprende a cantar senão perante
 
Os monumentos da magnificência.
 
Sulquei por isso o mar e cheio de ânsia
 
Vim à cidade santa de Bizâncio.
 
3
 
Oh vós, sábios de Deus no fogo santo,
 
Como em áureos mosaicos de um mural,
 
Ensinai-me a cantar, deixando entanto
 
O fogo, perno em giro vortical.
 
Tomai meu coração: ansiando tanto,
 
E preso a perecível animal,
 
Não se conhece; e eu seja assimilado
 
Pelo artifício da eternidade.
 
4
 
Fora da natureza nunca mais
 
Forma da natureza irei tomar,
 
Mas forma que um ourives grego faz
 
Com ouro fino e fino cinzelar
 
E a sonolento imperador apraz;
 
Ou num galho dourado hei de cantar
 
Para a nobreza de Bizâncio ouvir
 
Do que passou, ou passa, ou há de vir.
 
 
 
DUAS CANÇÕES DE UMA PEÇA
 
 
 
1
 
Vi uma virgem fixar sua visão
 
No santo Dioniso trucidado
 
E arrebatar-lhe o coração do lado,
 
E deitá-lo na palma de sua mão,
 
E carregá-lo a palpitar depressa;
 
E as Musas se puseram a cantar
 
O Magnus Annus a desabrochar,
 
Como se um Deus morrer fosse uma peça.
 
 
 
E nova Troia anunciará sua vinda,
 
Linhagem nova ao corvo irá nutrir,
 
De novo a proa de Argo há de partir
 
Por bugiganga mais vistosa ainda.
 
Pasma, Roma Imperial largou então
 
As duas rédeas da paz e da querela,
 
Quando a virgem ardente com a Estrela
 
Chamou da fabulosa escuridão.
 
 
 
II
 
Da mente escura do homem apiedou-se,
 
Passou aquele cômodo e desceu
 
Em meio a um torvelinho galileu;
 
A luz de estrelas babilônia trouxe
 
Informe e fabulosa escuridão;
 
Com a morte de Cristo o odor da chaga
 
As disciplinas dóricas apaga
 
E apaga a tolerância de Platão.
 
 
 
Tudo aquilo a que os homens dão valor
 
Dura um momento apenas ou um dia.
 
Ao amor o prazer do amor esfria,
 
Queima o pincel os sonhos do pintor;
 
À sua glória e ao seu poder consomem
 
A voz do arauto e o passo do soldado:
 
O que à noite flameja é alimentado
 
No coração todo resina do homem.
 
 
 
ENTRE CRIANÇAS DE ESCOLA
 
1
 
Na sala de aulas a indagar passeio;
 
Segundo a freira idosa, os escolares
 
Fazem continhas, cantam no recreio,
 
Têm história, leituras exemplares,
 
Cortam, costuram … tudo com asseio,
 
No modo mais moderno. Seus olhares
 
Seguem curiosos e com atenção
 
O homem público risonho e sessentão.
 
2
 
Penso em corpo ledeano, que pendia
 
Sobre as brasas … na história que ela urdiu
 
De dura repreensão, ou ninharia
 
Que em tragédia mudou dia infantil …
 
E nossa dupla essência se fundia
 
Numa esfera de apego juvenil,
 
Ou, na imagem platônica de noivo,
 
Formava a gema e a clara do mesmo ovo.
 
3
 
E lembrando esse ataque de ira ou dor
 
Me indago, a olhar para esta e aquela criança,
 
Se ela na infância teve igual vigor
 
(Até filhas do cisne têm na herança
 
Um quê de qualquer bicho remador)
 
E a mesma cor nas faces e nas tranças;
 
Então meu coração fica fremente:
 
Ei-la criança viva à minha frente.
 
4
 
Vejo-a flutuar como é neste momento …
 
De mão quatrocentista foi nascida,
 
Pálida como alguém que bebe o vento
 
E tem apenas sombras por comida?
 
Mas se a plumagem rica não ostento
 
Dos ledeanos … Não mais! Melhor na vida
 
Sorrir a quem sorri, que assim eu talho
 
Um tipo confortante de espantalho.
 
5
 
Que jovem mãe, ninando criatura
 
Traída pelo mel da geração
 
E que dorme e que grita e se tortura
 
Conforme a droga ou a recordação,
 
Diria o filho, visse-lhe a figura
 
Com sessenta ou mais anos na expressão,
 
A paga para a dor do nascimento
 
E as incertezas de seu crescimento?
 
6
 
Platão julgava o mundo um sorvedouro,
 
Paradigma espectral da fluidez;
 
Já Aristóteles descia o couro
 
No firme posterior de um rei dos reis;
 
Enfim Pitágoras das coxas de ouro
 
Nas cordas dedilhou por sua vez
 
O que estrela cantou à surda Musa:
 
Farrapos num bastão contra ave intrusa.
 
7
 
A freira, como as mães, adora imagens:
 
Ante a candeia estas não têm, porém,
 
A animação da maternal miragem
 
E no mármore ou bronze se contém.
 
No entanto, empolgam … Oh Presenças que agem
 
Sobre paixão, piedade e amor também;
 
Oh símbolos das glórias altaneiras;
 
Da empresa humana inatas zombeteiras;
 
8
 
O labor brota e dança onde o prazer
 
Da alma não fere o corpo; jamais onde
 
O óleo da meia-noite dá saber
 
Ramelento, e a beleza em dor se esconde.
 
Oh castanheira firme a florescer,
 
Será você botão, ou folha, ou fronde?
 
Corpo entre sons, oh chispa repentina,
 
Como apartar da dança a dançarina?
 
 
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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