Hölderlin, poeta fundamental da História alemã e mundial, mostra à posteridade duas frentes para a análise de sua poesia. O poeta Hölderlin pode ser encarado como um emissor do fenômeno de seu tempo e de seu país, ele que foi o contemporâneo dos pré-românticos alemães do Sturm und Drang, e que com eles contrapôs o entusiasmo do gênio criador e apaixonado ao status conformado do bom gosto, a espontaneidade do estado natural de Rosseau às afetações da sociedade aristocrático-burguesa, as demandas do sentimento aos limites do despotismo da razão, ao mesmo passo em que fazia tinha na Natureza um fenômeno central e absoluto, como suprema potência criadora e destruidora, de cujas instâncias seriam, todas elas, outras tantas manifestações do Divino, colocando a Natureza num pedestal celeste e sobrenatural, no idealismo que parte de Rosseau para um panteísmo de fusão com tudo que é natural, há este Hölderlin que parte da Grécia Antiga e se funde à Natureza.
Outro aspecto, este histórico, é o de que Hölderlin, na sua obra, tem um papel sui generis na evolução literária da Alemanha, pois ao pré-romantismo não se seguiu, de imediato, como poderia parecer, o romantismo propriamente dito, mas sim um classicismo revigorado e renovado, que envolvia vultos como Schiller e Goethe, e que teria a sua sede espiritual no principado de Weimar. Como esses dois fanáticos da Antiguidade clássica, Hölderlin também cultuou a Grécia como um ideal de arte e de vida, sem deixar de lado, e atuando, simultaneamente, na sua valorização e exaltação da cultura alemã, a qual se afirmava então com bastante vigor na literatura, na filosofia, na teoria estética e em toda investigação erudita.
E quando se ousa chamar Hölderlin de antecipador do moderno, isto se dá na perspectiva histórica que foi adiante a partir dele, ou seja, a importância do poeta e sua influência nos tempos posteriores de sua obra. Hölderlin atua como inovador que, sem deixar de estar ligado à sua circunstância histórica, nesta dupla frente de Antiguidade clássica e cultura alemã, conseguiu se projetar além desta circunstância na direção do futuro para anunciar os vindouros caminhos da poesia do Ocidente. Hölderlin não antecipou apenas o estilo rítmico de um Nietzsche, a lírica de um Verlaine, um Baudelaire e um Swinburne, mas tudo o que hoje forceja por encontrar a poesia mais moderna.
E de acordo com Wilhelm Dilthey, um dos primeiros críticos alemães a perceber a grandeza de Hölderlin, o poeta contrapôs “poesia e história, linguagem e sociedade” e ao ver na poesia o “ponto de interseção entre o poder divino e a liberdade humana, o poeta como guardião da palavra que nos preserva do caos original”, antecipou ele, também, no dizer de Octavio Paz, “os temas centrais da poesia moderna”. E Hölderlin teve também, como influências literárias, escritores como: Klopstock, Schiller, Young e Ossian, autores canônicos do pré-romantismo então vitorioso.
A vocação poética de Hölderlin começa já então sob a influência de suas leituras de Platão, nas quais ele se afastava cada vez mais da fé protestante. Os poemas dessa fase traem o magistério de Klopstock, o que inclui não somente o uso dos metros antigos, como nas referências religiosas e nas invocações patrióticas, mas também o gosto pela pintura de paisagens melancólicas banhadas de luar e por devaneios amorosos repassados de notas tumulares, lugares poéticos exaltados e abissais em que deixa claro o magistério de Ossian e Young. Mas a influência da lírica ideológica de Schiller é que irá levar o jovem Hölderlin à conquista de uma dicção própria, na qual o “ritmo interior”, caracterizado por Dilthey como aquele “que exprime o desenvolvimento do processo anímico através da ordenação e combinação de períodos” e que se sobrepõe à regularidade da métrica convencional, conduzirá ao “estilo rítmico”, que o mesmo Dilthey tem por distintivo da lírica hölderliniana, nele vendo inclusive uma antecipação dos rumos futuros da poesia europeia.
O tema de “Os carvalhos”, por sua vez, apresenta o contraste entre a natureza domesticada dos jardins, que é símbolo usual do espírito rococó, e a natureza titânica das florestas, como tal cultuada pelo espírito pré-romântico de forma quase mística. No poema de Hölderlin, à livre individualidade natural dos carvalhos, “um mundo cada um de vós, (…) cada qual um deus” se opõe a escravidão da civilização, a “vida gregária” de que o próprio poeta aspirava a libertar-se. Mas não podia, pois o poeta se encontrava preso pelos “laços do amor” – o amor de Diotima-Susette que o fazia resignar-se à condição servil de preceptor, olhado de cima pelos frequentadores da casa do banqueiro Gontard. Ou seja, o aspecto biográfico e simbólico se fundem numa mesma música neste poema, e que Diotima como Susette será grande vulto nestes conhecidos poemas que comporão o chamado Ciclo de Diotima.
O ímpeto ascensional dos carvalhos se torna essência em “Ao éter”, que nos dá a medida do que pretendia o “politeísmo da imaginação e da arte” proposto no “Programa” de 1795, o primeiro programa do idealismo alemão, feito por Schelling, mas com orientação decisiva de Hölderlin. O éter, em grego aither, tem a acepção de “céu” em Homero, de “ar” em Empédocles e de “o elemento divino da alma humana” em Filóstrato, feito divindade alegórica, surge na Teogonia de Hesíodo como um dos filhos da União entre o Ar e o Dia, juntamente com a Mãe-Terra e o Mar. Trata-se, pois, não de um verdadeiro mito ligado ao sistema religioso arcaico, e sim de uma elaboração filosófica, mais bem adequado, por isso mesmo, ao tipo de “nova mitologia da razão” sonhada por Hölderlin. O éter sempre aparece como algo onipresente em toda a atmosfera universal, tal como um fluido em que se cerca a realidade natural e do universo. Tal tem sentido tanto místico como puramente físico.
Diotima: poema escrito na época ditosa de sua ligação com Susette Gontard; nele, como em outros de igual título que também inspirou, ela aparece sob o seu cognome platônico, tal que é a sábia de O Banquete. Escrito em dísticos elegíacos, um verso de seis pés seguido de outro de cinco, nos quais ainda se trai a influência de Klopstock, a estrutura ternária do poema se ostenta na oposição da tese – a “antiga natureza do homem”, que pode ser tanto a do homem natural de Rosseau quanto a do ateniense de outrora, saído “belo de corpo e alma” das mãos da própria Natureza – com a antítese da “agitação dos tempos” de derrocada do Antigo Regime vividos pelo poeta e sua musa. Esta surge como intermediadora entre os imortais e os mortais, pois vem trazer aos últimos “os tranquilos acordes do céu” que vão instaurar a síntese – o reinado da utopia, a nova idade de ouro, sob a égide não mais do terror e sim da paz. O Ciclo de Diotima, por sua vez, será uma das fases de abertura de toda a poesia de Hölderlin, que se dá de forma promissora e que, ao fim, culminará na sua fase decadente dos poemas de loucura, o que tratarei adiante nesta série.
(DO CICLO DE DIOTIMA – 1795-1798)
OS CARVALHOS
Saindo dos jardins, vou até vós, oh! filhos da montanha;
Dos jardins onde, paciente e caseira, a Natureza convive
Com os homens diligentes, cuidando e sendo deles cuidada.
Mas vós vos ergueis, altivo povo de Titãs, em meio
A mundo mais dócil, só de vós mesmos dependentes,
E do céu que vos nutriu e educou, e da terra que gerou-vos.
Nenhum de vós frequentou jamais a escola dos homens;
Jubilosos e livres, desde a robustez das raízes,
Vos lançais para o alto, em tropel, com braço vigoroso
Conquistando o espaço, como a águia à presa, e para as nuvens
Voltando as vossas copas amplas, joviais, ensolaradas.
É um mundo cada um de vós; como os astros do céu,
Viveis em livre associação, cada qual um deus.
Tolerasse eu ser escravo, jamais invejaria
Essa floresta e me sujeitaria à vida gregária.
Não estivesse meu coração cativo dessa vida
E do amor, quanto me agradaria viver à sombra vossa!
AO ÉTER
Ninguém, entre os homens e os deuses, foi-me tão fiel
E bom como o foste, Pai Éter; antes já que minha mãe
Me tomasse nos braços para aleitar-me em seu seio,
Tu me enlaçaste com meiguice e me verteste no peito
Infante a poção do céu e no ouvido o sacro sopro teu.
Não é só de alimento terrestre que vivem os seres,
Mas és tu que os nutres a todos com teu néctar, Pai!
De tua fonte sempiterna corre e flui por todos
Os condutos da vida teu ar vivificante.
Por isso os seres te amam e forcejam para o alto,
Buscando-te o tempo todo em ditoso crescimento.
Celeste! não te procura a planta com seus olhos,
E o arbusto rasteiro não te estende os braços tímidos?
Para encontrar-te é que a semente reclusa rompe a casca;
Por ti vivificada, e para banhar-se em tuas vagas,
É que o bosque sacode de si, roupa excessiva, a neve.
Os peixes também sobem à tona e saltam anelantes
Por sobre o espelho do rio, como que fugindo
Do seu berço para ti; os nobres animais terrestres
Amiúde ganham asas quando a ânsia impetuosa,
O secreto amor por ti, os impele para cima.
O soberbo corcel desdenha o chão; aço em arco, busca
Com o pescoço as alturas, mal toca a areia com os cascos.
Como a brincar, o pé do gamo roça o talo de relva
E transpõe, zéfiro, o riacho a espumejar impetuoso,
Saltando-o uma e outra vez, visível a custo entre os arbustos.
Mas os favoritos do Éter, os pássaros ditosos,
Vivem e brincam no sempiterno pórtico do Pai!
Há lugar para todos. De nenhum a senda está marcada.
Pequenos e grandes se movem livres pela casa.
Alegra-me tê-los sobre a cabeça, e o coração,
Num prodigioso anseio, voa até eles; pátria amável,
O Éter me chama lá do alto, e aos cimos dos Alpes
Eu quisera subir para gritar à águia apressada
Que, como outrora o menino eleito aos braços de Zeus,
Me levasse do cativeiro ao pórtico celeste.
Néscios, vagamos de um para outro lado; como a vide
Errante que, sem esteio, cresce no rumo do céu,
Alastramo-nos pelo solo e, extraviados, em vão
Vagamos pelas zonas da Terra, oh meu Pai Éter!
Anseios de morar no teu jardim conosco vão.
Às ondas do mar nós nos lançamos, em planícies mais livres
Fartamo-nos, e brinca a infinda vaga com a nossa quilha
E se alegra o coração com o poder do deus do mar.
Mas isso não basta, oceano mais fundo nos seduz,
Onde a vaga se move mais ligeira – oh! quem pudesse
Às costas de ouro impelir o nosso barco errante!
Mas enquanto anseio por essas lonjuras esfumadas,
Onde tua vaga azul envolve as praias ignotas,
Múrmuro, do alto das árvores floridas do pomar,
Vens tu mesmo, Pai Éter, aplacar-me o coração,
E, propenso como outrora, vivo entre as flores da Terra.
DIOTIMA
Vem, oh delícia da celeste Musa, tu que os elementos
Outrora irmanaste, vem acalmar o caos do tempo;
Com os tranquilos acordes do céu, amansa a luta irada
Até no peito dos mortais a discórdia apagar-se
E a antiga natureza dos homens, imponente, serena,
Ressurgir, força e júbilo, da agitação dos tempos.
Volta, vívida beleza, aos carentes corações do povo!
Volta de novo à mesa hospitaleira, volta ao templo!
Pois, tal como as tenras flores de inverno, Diotima vive
Rica do seu próprio espírito, mas buscando o sol.
Todavia, o sol do espírito, o mundo mais belo se foi
E na fria noite raivam somente os furacões.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.