Reportagem: Kauê Scarim
Fotos: Gustavo Louzada
Afinal, é possível que exista alguma consequência ruim, seja social ou ambientalmente, na instalação de megaempreendimentos e em grandes projetos econômicos? Por princípio, deve-se partir da premissa que, sim, é possível. Comecemos por aí.
Porém, à luz dos olhos, parece que ninguém mais se pergunta sobre as consequências. É o caso, por exemplo, de quem acompanhou os pronunciamentos das autoridades estaduais e nacionais sobre pacote de nove plataformas portuárias que serão construídas no Espírito Santo a partir do próximo ano, todas elas presentes no “Programa de Investimento em Logística: Portos”, lançado no último dia 6 pelo governo da presidente Dilma.
Ajudada por uma parte da mídia, pelo jeito, boa quantidade dos receptores das informações sobre o projeto responderiam “não” sem sequer se questionar do porquê. É que o lobby tem sido muito forte.
Para quem não sabe ou não quer ter o trabalho de procurar o termo no Google, aqui vai a definição. Lobby é o nome que se dá à atividade de pressão de grupos, ostensiva ou velada, com o objetivo de interferir diretamente nas decisões do poder público em favor de interesses privados.
É claro que, no caso dos portos, há muito interesse privado. Das nove plataformas, oito terão investimentos unicamente particulares, a partir de licitação. A outra – o Porto de Águas Profundas (Superporto), que deve ser construído em Vila Velha – vai funcionar a partir de uma parceria público-privada.
Tem-se dito por aí que a previsão de número de empregos que seriam gerados chega ao exorbitante número de 25 mil, nos nove portos. Quem tem alguma memória do período do governo Paulo Hartung e gosta de fazer contas deve se lembrar que, à época, de tão grandes as promessas de empregos, haveria mais postos de trabalho do que população – gente mesmo! –, no Espírito Santo.
Em geral, os monstruosos números de supostos empregos cumprem basicamente a função de mascarar uma quantidade igualmente grande ou maior de impactos sociais e ambientais. O problema é que os impactos tendem a ser mais reais do que os postos de trabalho, principalmente se forem considerados as vagas que surgem para capixabas – é só se lembrar da eterna crítica de que “não há” mão de obra qualificada no Estado. Assim, o que acontece em geral é uma grande “importação” de profissionais.
Com os nove portos, a orla capixaba seria absolutamente picotada. E, salvo engano, nestas praias há muita coisa. Por exemplo, milhares de seres humanos – ou seja, animais bípedes que se distinguem dos outros por possuírem polegar opositor e telencéfalo altamente desenvolvido. Mas, diferentemente dos outros seres humanos, nestas praias vivem alguns que necessitam do mar para sobreviver: são pescadores.
Meio fora de moda, o.k. Mas que existem, existem. Pergunta básica: com nove portos a mais, onde estes seres humanos vão poder pescar, no intuito de obter o fruto de sustento de si e de sua família, os peixes? A instalação de portos afeta muito o pequeno pescador artesanal, cuja produção depende diretamente da zona costeira.
No município de Aracruz, por exemplo, diversos pescadores perderam importantes pontos pesqueiros para empreendimentos portuários, sendo obrigados a inclusive mudar de profissão e parar de pescar. Segundo Hudson Pinheiro, da ONG Voz da Natureza e pesquisador da California Academy of Scienses, nos Estados Unidos, a rota das embarcações condicionam a perda de pesqueiros, uma vez que os barcos destroem e rebocam instrumentos de trabalho como redes e espinhéis. “Este conflito existe na proximidade de todos os portos existentes e irá se intensificar”.
A ancoragem de embarcações também traz impactos diretos nos habitats, pois destrói recifes e os fundos de rodolito (espécie normalmente confundida com os corais), extremamente importantes para grande parte da biodiversidade marinha. “Todos esses impactos são previstos para se intensificar nas zonas costeiras, em áreas extremamente importantes para a criação de peixes e camarões”, afirma Pinheiro.
O que parece estar colocado, no fundo, é a perda de um patrimônio natural e cultural do Estado cuja importância histórica não é possível estimar.
Igualmente inestimável é o impacto ambiental decorrente do empreendimento. A atividade de dragagem, por exemplo, que é constantemente feita durante toda a existência do porto para ampliar a sua profundidade, destrói e modifica habitats. Além disso, o substrato marinho que é retirado é posteriormente lançado no próprio mar, em locais chamados de “Botas-Foras”. Nesses lugares, o material lançado começa a se dispersar para novos ambientes, destruindo outros habitats. É, por exemplo, o caso da Grande Vitória.
Boa parte dos nove portos será destinada à exportação. Com o mercado internacional em queda, com a crise – é só lembrar-se da queda do montante de orçamento da Vale para o próximo ano –, como serão arranjados os compradores para a produção a ser escoada?
Além disso, afinal, o Espírito Santo vai exportar o quê? A grande maioria entre os poucos itens de exportação produzidos no Estado, em especial os industriais (de celulose a minério), já têm os seus próprios portos para a exportação. Para citar: o Praia Mole, da Vale, e o Portocel, da Aracruz Celulose (Fibria).
Uma alternativa possível seria exportar itens de outros Estados, mas o Espírito Santo está longe dos grandes centros produtivos. O próprio governador Renato Casagrande até tentou com os amigos quase-capixabas de Minas Gerais, mas não conseguiu muita coisa.
Além disso, o Estado não possui infraestrutura adequada para conseguir escoar grande produção. Isso coloca o Espírito Santo fora da disputa dos peixes grandes na exportação, focada em portos específicos do Sul e do Nordeste. Uma ação possível, como divulgado pelo governo estadual, é investir largamente em logística para reposicionar o ES. Precisaria, no mínimo, de uma grande malha viária e ferroviária, além da construção de polos industriais, hoje inexistentes.
Outro fator mascarado é que, no caso da exportação, há desoneração do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Ou seja, diretamente, os nove novos portos dariam pouco ou nenhum dinheiro para o Estado.
Assim, quem vai bancar os grandes investimentos? O Estado, é claro. Mas, se os portos não vão render ao executivo estadual os recursos de ICMS, a pergunta se mantém. E passa a ter outra resposta: a população. Comentando o assunto, o deputado estadual Claudio Vereza (PT) – justiça seja feita, o único da Assembleia Legislativa a comentar criticamente o assunto, inclusive entre os seus correligionários – definiu como “insanidade” o que está sendo planejado. “O que vai sobrar para o povo? As rodovias. O modelo, pra mim, não tem racionalidade”.
É a população que vai bancar, de seu magro bolso, a possível grande logística que o Estado vai passar a ter, tendo em contrapartida maiores investimentos de outras empresas em suas terras. E, mais que tudo, os impactos ambientais e sociais.
E é assim há um bom tempo, em nosso Estado. Remonta ao longínquo ano de 1967, em plena Ditadura Militar, o início das atividades da antiga Aracruz Celulose (Fibria) no Espírito Santo. Em 1985, foi inaugurado o Portocel, totalmente especializado no embarque de celulose, para atender à empresa.
Já em junho de 1976, também nos Anos de Chumbo, foi constituída a Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), que começou a funcionar apenas em 1983. Antes estatal, foi privatizada em 1992 e comprada pela Arcelor em 2005. Um ano depois, fundiu-se com a Mittal Steel, dando origem à empresa que conhecemos hoje como ArcelorMittal.
Da época da chegada dos empreendimentos também vem a memória de um período nebuloso para boa parte da população do Estado, que se estende até hoje. Em especial para aqueles, digamos, menos abastados – ou marginalizados, como queiram –, tais como quilombolas, indígenas, pescadores e tanto outros. Abusos na tomada das terras, sem respeito às culturas populares, ao meio ambiente e à vida da população geram até hoje diversas denúncias que amontoam nas costas das empresas.
Em decorrência disso, hoje há um quadro de total insegurança alimentar para quilombolas, contaminação de água das comunidades, um Estado que sofre com o aumento aparentemente eterno dos índices de poluição – melhor parar; as consequências são muitas e a matéria já está grande demais.
Ao que parece, é o momento desta população colocar a sua balança em dia, poli-la, limpá-la e finalmente pesar as consequências dos empreendimentos, em comparação às promessas de melhorias nos investimentos. O custo de tudo isso vai ser alto. E quem vai pagar, como sempre, não vão ser os responsáveis pelos megaprojetos.