domingo, novembro 17, 2024
22.9 C
Vitória
domingo, novembro 17, 2024
domingo, novembro 17, 2024

Leia Também:

O pixo como integrante do grafite e questionador do sistema social no Estado

 
“O maior símbolo do grafite brasileiro é a pixação”, fala Fredone Fone. Sim, a pixação com X mesmo, essa que se vê na rua, nos muros, nos prédios, nos espaços públicos e privados. Essa que recebe a reprovação do governo, da sociedade e da mídia. Essa pixação que é vista como feia, suja e violenta. Contudo, pasmemo-nos ao saber: a pixação não foi feita para parecer agradável, bonita ou comportada. A pixação é subversão, questionamento social. E separar pixação de grafite é coisa de leigos na área, desentendidos do que é o movimento do grafite. 
 
O conceito acima é manifestado por 18 grafiteiros da Grande Vitória convidados a ter voz no documentário A Febre (teaser abaixo), um registro do movimento do grafite do Espírito Santo. A proposta surgiu com o jovem João Oliveira, que no começo de 2014 iniciava seu primeiro documentário como um projeto de conclusão do curso de Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Só que o projeto cresceu, tomou uma proporção maior, ganhou mais tempo de duração e, consequentemente, mais tempo de gravação e finalização, além de aprofundar mais questões. Agora, antes mesmo de ser lançado, A Febre já se mostra um importante registro de vozes marginalizadas socialmente, os grafiteiros. 
 
 
Fredone é um dos entrevistados em A Febre. Junto dele está Kika Carvalho (foto ao lado), a única representante feminina diretamente entrevistada e que, na época, era uma das poucas grafiteiras em atividade contínua em Vitória – cenário que está mudando.

Para Kika e Fredone, falar de grafiteiros é falar também de pixadores. “No Estado a galera que faz o trampo que é visto como bonito pelo povo é a mesma galera que pixa. Não existe essa separação do que é pixo e do que é grafite – como vemos tão explicitamente em São Paulo, por exemplo. Existem grafiteiros daqui que o próprio governo paga para fazer um mural, fornece todo o material e, aquela mesma lata utilizada para fazer um trabalho que é aceito socialmente, também é usada para pixar a cidade depois. Essas duas intervenções andam juntas”, explica Kika

 
A princípio, a maior desconstrução que A Febre lança ao público é, sem dúvidas, esse questionamento acerca da divisão entre pixo e grafite, entre o que é vandalismo e o que é arte – e ainda como isso prejudica o movimento. Contudo, o documentário apresenta muitas outras questões que valem de grandes reflexões e desconstrução sobre as práticas do grafite. 
 
“Acho que o filme vai se mostrar para muita gente, principalmente para quem discorda do grafite, como uma propaganda dos grafiteiros. Na verdade minha intenção nunca foi mostrar o grafiteiro como uma vítima de alguma coisa, mas sim mostrar que o grafite existe e que há motivos para isso. Além de destacar ainda que o grafite é um movimento e não algo aleatório e esporádico. Essas pessoas arriscam a vida, gastam dinheiro para comprar latas de tinta e correm o risco de serem presas por motivos que a sociedade não procura saber. Então vamos entender quais são esses motivos? Vamos lidar com isso”, acrescenta João. 
 
 
Construído a partir de falas de grafiteiros e incursões nos chamados rolês (as saídas nas ruas para realizar o grafite), A Febre apresenta o ponto de vista de quem pratica tais intervenções na cidade, acompanhando durante o período noturno e diurno as ações de pintura em muros, vagões de trens, prédios e fachadas. O clima das cenas de pintura quase sempre é tomado pelo constante alerta dos grafiteiros em não serem vistos, preenchido pelo silêncio em diversas vezes e, claro, regado de adrenalina e da sensação de pertencimento à cidade, do ato de se mostrar imprimindo a própria presença no cotidiano da urbe. 
 
Contudo, o medo também é um sentimento presente nesse contexto. E vale destacar que na época de gravação do documentário, a cidade de Vitória ainda nem havia aprovado a Lei 8.943/2016, que institui o programa de combate à poluição visual e à depredação de imóveis públicos e privados. A nova legislação prevê multa de R$ 9 mil aos responsáveis e reparação dos danos causados às edificações. E, novamente, o que essa nova lei reitera é a separação entre o que é a arte e o que é vandalismo, quando busca “ajudar a criar ambientes mais seguros ao inibir a pichação” – atrelando diretamente a violência ao pixo
 
 
“Essa questão da criminalização é um problema sério, porque é o que vem sendo feito comumente. Ninguém chama esses meninos do grafite para conversar – começamos por aí. E tem outra coisa, a questão da juventude. Se uma juventude não for contra o status quo, quem vai ser? É visível que a lei criminaliza a juventude da periferia. Contudo, na verdade, a sociedade já criminalizou antes. É como Foucault falou, nós estamos nos especializando cada vez mais no sistema de vigilância e de punição. A gente vigia e pune mais do que dialoga”, analisa o professor Dr. Jorge Luiz Nascimento, da Ufes.
 
Nascimento é professor de Letras da Universidade e realizou estudos sobre a cultura hip hop. Numa breve conversa com o professor, há pontuações acerca do que as leis de criminalização de expressões da cultura periférica representam dentro das sociedades. “Podemos pensar no aspecto puramente político-ideológico do grafite, que é: 'se vocês me negam o espaço da cidade e a fala, eu tomo. Eu entro. Eu ocupo esses espaços’. A questão é que essa ocupação do espaço público sempre foi problemática. Afinal, de quem é o espaço público? Pois se privatiza ele o tempo todo. A gente vive numa sociedade que troca liberdade por segurança”, acrescenta. 
 
Na ocasião da aprovação da lei pelo prefeito Luciano Rezende, em 19 de maio deste ano, a notícia se espalhou por jornais e TVs como uma medida para garantir mais segurança à população, além de limpeza da cidade. E sobre esse conceito de cidade limpa, Fredone Fone acrescenta. “Quando paramos para pensar, vemos que medidas como essas não são feitas para proteger moradores da periferia. Elas são feitas para proteger lugares ricos, espaços da classe média. Essas leis só frisam que nós grafiteiros não podemos circular pelos lugares onde estamos circulando. E, ao apoiar isso, a mídia faz suas matérias sem nem se dar ao trabalho de ir ver os muros da periferia, também cheios de grafite. Ela foca nos muros pixados dos bairros de classe média. Isso diz muito sobre para quem essas leis são feitas”, analisa. 
 
O que Fredone aponta recai sobre a questão da propriedade privada, problematizada não só por ele, mas por Nascimento ao destacar que o direito à moradia é um direito universal. Já o direito à propriedade é jurídico. Desta forma, o poder financeiro é que define quem pode ou não ter o direito a imprimir alguma marca na cidade e, assim, o que vai ser visto como algo aceitável ou vandalismo. “Acredito que existem várias formas de se fazer vandalismo na cidade. Pintar uma parede é a menor delas. E a pixação está enquadrada em crime ambiental. Mas se comparada às atividades da Vale, Arcelor e Samarco com o meio ambiente, vemos que o nosso vandalismo não é nada”, destaca Kika.
 
 
Em meio a esse cenário de quem tem poder aquisitivo e patrimônio é quem deve ser defendido, está a ação da polícia em coibir o lado mais fraco da história.   “A polícia foi feita para defender o patrimônio, não as pessoas. Só que a gente sabe que as pessoas que têm patrimônio são ‘patrimônios’ também. E quem não tem patrimônio já é um marginal em potencial. Juntando a isso, o pixo, por ser uma atividade noturna em sua essência, já é uma ação marginal pelas características das nossas cidades serem cheias de criminalidade atrelada à noite. Assim, a imagem do grafiteiro já traz algo de marginal e, ainda pior, a imagem de que ele vai atacar a propriedade alheia, o patrimônio. E daí, o Estado criminaliza esse jovem”, pontua Nascimento. 
 
É nesse contexto que o simples ato de assinar o próprio nome num muro, escrever uma frase ou desenhar algo em locais “proibidos”, torna-se transgressor – o grande ponto que une o grafite e o pixo. Caminhar pela cidade hoje é perceber uma rede simbólica de vozes que anseiam por fala. As paredes, quase todos elas, falam ao estampar tags, nomes de grupos de grafiteiros, alertas e as famosas letras que se mostram incógnitas para a sociedade – talvez porque não é para que a sociedade entenda mesmo, mas apenas veja, mesmo que seja na forma de vandalismo. E ainda assim há explicações para isso, como  Kika diz: “Algumas formas de vandalismo precisam existir, são necessárias para o questionamento do sistema”. 
 
 
O documentário A Febre tem previsão de lançamento para julho e João tem planos sobre o local, talvez embaixo da Terceira Ponte, em Vila Velha. Numa comparação com o PIXO (2009) – que apresenta a intervenção no contexto de São Paulo –, se mostra com o mesmo potencial de questionamento, de apresentação de uma realidade desconhecida e,  acima de tudo, da protagonização de pessoas que raramente são vista e escutadas, como destaca Fredone. “O grafite era feito por uma grande parte de pessoas vindas da periferia. As coisas foram mudando com o aumento de praticantes de diversas alas sociais. Isso é bom para a propagação dessa arte, mas, por outro lado, as pessoas da periferia foram ficando em segundo plano, já que os porta-vozes procurados pela mídia e governo não são mais da periferia”. 
 
E enquanto a nova lei de Vitória tenta se firmar como uma medida de que previne atos de depredação, além de educar jovens por meio campanhas informativas, a cidade segue sendo pintada, pixada, grafitada (como queiram classificar). A sociedade é incitada às denúncias por telefone e o ambiente noturno urbano se mostra cada vez mais hostil, não só para a população que se trancafia em casa por acreditar na construção de medos como esse de que lugares pixados são perigosos, mas certamente para  o grafiteiro que lida com a polícia e, constantemente, é confundido com um bandido pelas autoridades que não analisam as consequências disso. “Pior do que essa juventude pixar a minha casa é vê-la presa ou sofrendo retaliação das autoridades sem questionarmos sobre qual é o crime maior: uma parede pixada ou um jovem sofrendo violência física e psicológica?”, questiona Nascimento. 
 

Mais Lidas